O laço da pomba falsa – DTRL 25
Tema: magia negra
Colaboração: Lee Rodrigues

     Pode a morte ser um roteiro de terror? Isto ninguém consegue afirmar. Como garantia, melhor é partir carregando uma moeda, para que a “travessia do barqueiro” possa ser custeada se for exigida! Do contrário, imagine a angústia de ser espectador da decomposição do próprio corpo. Falando de forma geral, ele perde a água e resseca, assume um tom amarelo e enrugado. Em seguida, ocorre um ataque de primeira linha de bactérias que, famintas, invadem a carne. Depois, bolhas surgem e se rompem sobre a pele esverdeada; deixando o corpo irreconhecível, porém, suculento para os insetos. Além dessa agonia, há os transtornos que antecedem os registros da lápide: a falta de consciência em relação ao que realmente está acontecendo; a ausência de ouvidos capazes de escutar os gritos de desespero; e a audição do pranto dos entes queridos.  
 
     Erroneamente, as pessoas costumam postergar a preparação para esses fatos, os quais cedo ou tarde chegarão a todos. No entanto, tal será o cenário da história de adiante.
 
     Os aspectos relevantes começaram logo após a missa de sétimo dia de um finado de nome Vitor, ocasião na qual a viúva deste, chamada Elaine, protagonizou a cena que veio a se tornar uma das anedotas mais famosas que já ocorrera no cemitério de Congonhas. Tendo as bençãos e orações sido finalizadas na capela, a mulher, junto da filha de três anos, foi visitar o pequeno mausoléu. Um discreto cortejo de familiares, meia dúzia no máximo, acompanhava em silêncio e a certa distância, de maneira que as duas pudessem chegar com privacidade ao túmulo. Posteriormente, o sossego da situação foi interrompido pelos gritos da esposa. Os parentes ficaram aterrorizados quando conseguiram compreender o que a mulher gritava: “socorro... ele está pedindo pra ser solto... foi enterrado vivo!”.
 
      Que desgraça!
 
     O desespero da filhinha, que chorava assustada sem entender o que acontecia, foi consolado pela avó. Enquanto que Elaine, histérica, foi abraçada firmemente pela irmã, a qual alegou que a hipótese era impossível, uma vez que o morto havia passado por autópsia! No entanto, foram necessários mais de cinco minutos para que a viúva esboçasse reações lúcidas, com frases do tipo: “realmente, deve ter sido minha imaginação”. Mas, até então, foi inevitável o constrangimento. Observar a mulher paranoica, exigindo a presença de um coveiro para que a tampa de mármore fosse violada e o marido libertado, não foi uma sensação agradável. Como já fora dito, péssimos são os corpos em decomposição! Se naquele momento o esposo fosse um esqueleto seco, certamente a cena traumática não teria ocorrido.
 
     Após deixar o cemitério, Elaine foi conduzida para casa na companhia da irmã e do cunhado. Durante o percurso, procurou transmitir a impressão de estar calma e reforçou que a culpa do ocorrido fora sua mente cansada em decorrência da morte de seu homem, o Vitor. Ele morreu quando saia de manhã, ao ser atropelado por um motorista bêbado, praticamente na porta de casa! Na ocasião, Elaine estava se preparando para ir trabalhar – na época, como funcionária pública do INSS - e escutou o som da frenagem e a batida do carro no muro: Vitor Fora esmagado entre a lataria e os tijolos. A mulher desceu e viu o esposo agonizando. Ligou para a ambulância, chorou e se lamentou. Ele morreu ao lado dela. Infelizmente, a filhinha Dayane acompanhou a cena de perto. Inclusive, se abaixou e apanhou o globo ocular ainda viscoso de sangue, dizendo: aqui mamãe, o olho do papai... “bota” na cabeça dele.
 
     Mesmo tendo reestabelecido a paz exterior, internamente a viúva questionava se o que escutara no cemitério era realmente alucinação, uma vez que, para ela, a voz foi bem audível. Então, acabou recordando-se de um trabalho de amarração para o amor que havia feito quatro anos antes, na ocasião em que o marido havia deixado a casa para, supostamente, ir morar com outra. Enquanto isso, o veículo era conduzido pelo cunhado. A irmã estava no banco da frente e Elaine no de trás, fazendo carinho na cabeça da filha. Porém, quando se recordou do trabalho de amarração, os dedos, que passeavam nos cabelos loiros da pequena, ficaram rígidos.
 
     Enfim, chegaram à casa. A irmã e o cunhado entraram e ficaram por cerca de uma hora, garantido que a mulher enlutada realmente estivesse mais calma. Ao saber da morte do Vitor, o departamento de recursos humanos concedeu férias de 30 dias para Elaine; não que isso fosse ser muito, mas de certa forma era o mínimo que o INSS podia fazer, além de bancar as despesas funerárias e a aquisição de um caixão com madeira lustrada e de boa qualidade. Nos primeiros quatro dias após o fatídico acidente, a irmã da Viúva, também, dormiu na casa para fazer companhia. Não havia consolo, mas o pior era o trato com a filha. Pois, sendo muito pequena, não conseguia absorver a compreensão da situação: acreditava que o pai voltaria a qualquer momento.
 
     Quando a visita deixou a residência, Elaine urgiu em ligar para Vanessa; uma amiga que era Umbandista. A intenção era discutir sobre o trabalho de Amarração para o amor e, de certa forma, tentar traçar um paralelo com as supostas vozes escutadas no túmulo. Elaine era Católica e nunca havia se relacionado com outras religiões. Porém, há quatro anos, o desespero de ver o Vitor saindo de casa a fez consultar uma mãe de santo que oferecia trabalho especial, cujo resultado seria o retorno da pessoa amada em - no máximo - trinta dias. O rodapé do cartaz, descascado e colado em um poste de luz próximo ao ponto de ônibus, possuía a descrição “pagamento somente após os resultados”. Esta última frase foi a jogada de marketing que garantiu o exercício da consulta.
 
     Durante o tempo em que trabalhou na repartição pública, e manteve a relação de amizade com Vanessa, Elaine nunca comentou sobre ter realizado o trabalho de amarração. Em muitas ocasiões as amigas discutiam religião, debatendo as semelhanças entre a fé Católica e a fé Umbandista. Sempre a jovem sentia vontade de confessar a realização do trabalho, e como os resultados foram realmente rápidos e impressionantes, porém, sentia vergonha de fazê-lo. Mas, em relação aos eventos da missa de sétimo dia, não havia ninguém para auxiliá-la ou aconselhá-la; o cartaz descolorado já sumira do poste há muito tempo e, inclusive, o estabelecimento onde a consulta com mãe de santo ocorrera não mais existia. Talvez até morta a mandingueira já estivesse! O jeito era conversar com Vanessa.
 
     Dayane dormia no sofá. Estava com um pequeno pote contendo leite e cereais de milho, os quais não foram totalmente comidos. A TV ligada transmitia desenhos infantis, colocados com a intenção de distrair a mente da menina. Se este efeito foi alcançado não se sabe, mas o sono veio rápido! Então, aproveitando o relativo momento pacífico e privado, que havia na casa, Elaine fez a ligação para a amiga, a qual atendeu imediatamente. Obviamente, os primeiros itens da pauta foram relacionados ao atual momento. Vanessa, mais uma vez, procurou buscar consolos para a amiga, utilizando-se de diversas frases prontas e genéricas (se precisar de alguma coisa, pode pedir!), mas que foram pronunciadas de coração sincero.
 
     Passando-se alguns minutos, e sentindo que a situação estava ficando mais adequada para o desejado assunto, Elaine comentou o ocorrido da manhã do dia, relacionado às vozes do marido, escutadas à beira do túmulo. Adicionalmente, revelou ter realizado a “magia amorosa” no passado e alegou que temia a possibilidade de tal fato ter relação com as audições no cemitério. Vanessa escutou tudo, pacientemente, e em indagou:
 
     - Me fala como o trabalho foi feito. Você se lembra?
     - Sim. Foi da seguinte forma...
 
     E passou a contar os detalhes...
 
     Recordar-se daqueles eventos foi fácil e traumático ao mesmo tempo. Na época em que as primeiras brigas ocorreram, Elaine tinha vinte e nove anos; Vitor, trinta e seis. Estavam casados há um ano e viviam relativamente bem. Até o dia em que a esposa percebeu que o banco de passageiro, do carro do marido, frequentemente ficava posicionado de forma estranha: quase totalmente baixado. Na sequência, a atenção dada para o assento do veículo a fez encontrar diversos fios de cabelo presos no estofado, longos e castanhos, sendo que os dela eram curtos e loiros! Na verdade, tratava-se de evidências pobres para que qualquer suspeita fosse levantada. No entanto, foram as primeiras peças de um quebra cabeças montado no período de quase um mês.
 
     Nesse interim, as brigas aumentaram e, para piorar, ocorriam por motivos simples e injustificáveis. Vitor andava estressado, queixava-se das contas altas, reclamava constantemente de fortes dores de cabeça e, em lugar dos abraços calorosos, passou a oferecer-lhe as costas na cama, de modo que o sexo já não ocorria mais. Até o dia em que, sem motivos aparentes, não retornou para a casa e, usando-se de apenas uma ligação, disse que ficaria fora por alguns dias para repensar a vida. Não houve negociação.  Por mais que Elaine insistisse no fato, apresentando todas as provas que colhera, Vitor não confessava que estava com outra; que era, provavelmente, a dona dos fios castanhos! Esta foi, então, a separação.
 
     Morando sozinha, a esposa emagreceu muito. Era notável o sofrimento: pálida, não se maquiava mais para ir ao trabalho; não queria sair com as amigas; não queria ir visitar os parentes; e, pior, não queria ser visitada também. Todas as pessoas ao redor se preocuparam, pois conheciam o quanto a moça gostava do marido. Costumeiramente, ela o chamava de “meu morzão”. Vitor era alto e forte, falava baixo com uma voz quase rouca e, para completar, seu maxilar era largo e o perfil era acentuado por um nariz naturalmente comprido e pontudo. Além disso, constantemente mantinha a barba por fazer, o que a esposa adorava! As amigas sempre perguntavam por que Elaine gostava “tanto” dele. Como resposta, a jovem dizia que ele foi o único homem cujo toque a fazia se sentir uma “menina” novamente. O entendimento dessa resposta pode levar a várias conclusões, as quais não precisam ser discutidas ou exploradas.
 
     Não há como definir se o que Elaine sentia era amor ou paixão. Porém, o sentimento foi forte o bastante para fazer com que ela, em um ato de desespero, anotasse o número de telefone da mãe de santo “Dona Preta de Uganda”, que constava no velho cartaz, colado no poste próximo ao ponto de ônibus. A ligação fora feita naquele mesmo dia, quando Elaine explicou, à própria Dona Preta, superficialmente o problema. Consequentemente, a consulta fora marcada para a manhã seguinte.
 
     - Como era o lugar? Era um terreiro? – Questionou Vanessa.
     - Que eu me lembre, não. Era uma casa simples, e tudo ocorreu em um quartinho nos fundos mesmo! – Respondeu Elaine.
 
     E continuou detalhando a consulta...

     Quase cômico, na época, foi o fato de que Dona Preta de Uganda era, na verdade, uma mulher de pele branca que transpirava jovialidade. Apostar que a mãe de santo tinha mais de 35 anos era certamente um lance arriscado. Usava um vestido vermelho e preto, relativamente curto, e caminhava ostentando fortes pisadas com salto alto. Os olhos eram escuros e grandes, e combinavam com o sorriso largo que ela manteve no rosto durante todo o percurso entre portão até o cômodo, onde a consulta fora feita. Enquanto a acompanhava, Elaine se sentiu envergonhada por se submeter àquela situação. No entanto, tarde era para se arrepender: acabara de se sentar à mesa onde os búzios seriam jogados.
 
     - Lembro que eu fui logo perguntando como iria funcionar. Ela me disse que primeiro jogaria búzios para identificar a causa do problema e, depois, iria receber a visita da entidade dela, pra ver o que deveria ser feito. – Disse Elaine – É assim mesmo que essas coisas funcionam? – Questionou.
   - É mais ou menos assim. Até agora, parece que está tudo certo! – Garantiu a amiga.
 
         Então, Elaine continuou o relato...
 
     Dona Preta solicitou que a jovem explicasse os motivos que a incomodavam. Então, a situação relacionada à separação foi detalhada. A mãe de santo observava atenciosamente, quase sem piscar: balançava a cabeça e sorria em determinados momentos, transmitindo confiança e cumplicidade. Depois, tirou os sapatos, abriu um tecido branco sobre uma peneira de palha, cobrindo-a até as pontas forrarem toda a mesa. Em volta do tecido, colocou colares feitos de miçangas, cujas cores representavam diversos Orixás. Acendeu uma vela ao lado do defumador de Oxalá e, em direção oposta, colocou um copo com água filtrada.  
 
     Finalmente apanhou os búzios, já lavados em misturas de colônias e, com as mãos fechadas, saudou Orunmilá. Depois, saudou diversos espíritos: femininos; masculinos; e, também, desencarnados. Após concluir esses procedimentos, parou a mão ainda fechada, segurando as conchas, e perguntou o nome completo do casal que deveria ser amarrado e as respectivas datas de nascimento. Após escutar as informações, esfregou as mãos freneticamente: o barulho dos búzios era semelhante ao som produzido pelo chocalho de uma cascavel. Depois, soltou as peças na mesa e as observou como se lesse um manuscrito divino. Elaine, por outro lado, observava impotente, aguardando a interpretação, o que não tardou a acontecer.
 
     - Sete conchas abertas, nove fechadas... A busca pela verdade leva ao encontro da revelação... Siga o caminho que está nas costas da pomba que não é branca. Quem responde é uma pomba guerreira. Ela também diz que, embora haja esperança, o sofrimento é inevitável. – Disse dona Preta.
 
     Para Elaine, a revelação da mãe de santo soou como uma verdade absoluta. Tanto que os olhos se encheram de lágrimas pesadas, como se ela estivesse vendo os fatos ao invés de apenas escutá-los. Na sequência, Dona Preta pegou as nove conchas que caíram fechadas, levantou as mãos, sacudiu as peças e as atirou na mesa novamente.
 
     - Acalme-se menina moça. O que foi seu ainda o é! Seu homem tá inebriado com o rebolar de uma mulata, mas se a pomba diz que ele volta... Ele volta!
     - O que podemos fazer para reverter essa situação? – Disse Elaine, demonstrando a aflição de uma criança prestes a abrir um presente.
 
     - Quem vai dizer ainda não chegou, mas se a menina moça quiser, posso chamar agora!
     - Por favor, chame!
     - Você quem pede!  – Disse Dona Preta, preparando-se para receber a entidade com a qual costumava trabalhar.
 
     Era nítido o nervosismo de Elaine, que apenas observava a movimentação. A mãe de sando se levantou, fechou as cortinas, tampando o sol que entrava pela única janela do cômodo e acendeu diversas velas pretas e vermelhas, que estavam fixadas nos cantos da mesa. Logo depois, abriu uma gaveta que havia em uma cômoda ao lado e apanhou uma folha de papel e uma caneta; também pegou um chapéu preto, o qual ela colocou sobre a cabeça: a aba era longa, de maneira que os olhos ficaram cobertos. Em seguida, acendeu um cigarro – utilizando-se da chama de uma das velas – deu sucessivas tragadas, liberando a fumaça que serpenteava pelo ambiente, ao mesmo tempo em que entregava a folha de papel e a caneta para Elaine, alegando que tudo o que a “entidade” solicitasse deveria ser anotado.

      - Nossa, que estranho. Eu nunca vi uma mãe de santo trabalhar dessa forma! – Alegou Vanessa, enquanto escutava o relato da amiga.
     - Eu também achei muito estranho, principalmente o que aconteceu em logo depois!  
     ...
 
     Mesmo estando as velas acesas, a falta da luz solar de outrora incomodava. Dona Preta permaneceu imóvel por alguns segundos, fumando o cigarro que acabara de acender. Elaine não sabia direito o que fazer, ficou apenas segurando a caneta e a folha de papel em branco, preparada para anotar possíveis instruções que tardavam em ser pronunciadas. Até que um cheiro forte de rosas surgiu no ar, como se um frasco de perfume barato fosse aberto. Um calafrio subiu-lhe à espinha quando percebeu que as chamas das velas começaram a se mover violentamente, embora nenhuma corrente de ar fosse notada. Depois, o silêncio foi interrompido quando a mãe de santo com uma voz infantilizada, aparentando ser de uma menininha de dez anos de idade começa a rir baixinho.
 
     - Tem uma vadia segurando o seu "omi", não tem? O que "inhá" quer que eu faça com ela? – Disse a entidade, supostamente utilizando-se do corpo de Dona Preta.
     - Não quero fazer mal a ninguém! Só quero o meu marido de volta! – Falou Elaine.
     - Pomba Gira Rosa Caveira faz "mar" pros outros não! Quer a ajuda ou não quer?
     - Quero com todas as minhas forças!
     - “Entoce”... Consiga um coração fresco de boi, dois bonequinhos de pano, um pedaço de arame farpado e um vaso com terra de cemitério.
     - E faço o que com isso dona Rosa?
     - Pra "cumeçar", me escute!
 
     Elaine se esforçava para segurar a respiração, tentando evitar as baforadas fortes do cigarro queimado que a mãe de santo, agora incorporada, soltava por baixo da aba do chapéu preto.
 
     - "bote" nos bonecos seu nome e o dele. Coloque dentro do coração do boi e enrole com o arame farpado. Enquanto enrola, deixe o arame furar sua mão, “pro” seu sangue se unir na amarração. Depois, coloque dentro do vaso com terra de colhida de cemitério.
     - E o que eu faço com isso?
     - Deixe na sua sala. – Disse a entidade, gargalhando freneticamente.
 
     Após dizer essas últimas palavras, Dona Preta se levantou num pulo, girando em volta de si mesma com as mãos nos quartos, gargalhando e cantarolando.
 
     - “Enquanto a Pomba gira... Gira... Gira junto a sua saia. Gira, Pomba Gira, gira, e que o trabalho se faça”.
    
                                         &&&
 
     - Nossa Elaine, estranho hen! – Disse Vanessa, após escutar o término do relato.
     - Eu também pensei a mesma coisa. Mas, o que você achou?
     - Sei lá, é que Pomba Gira não costuma trabalhar dessa forma. Pelo que você me contou, e pelo que você disse que escutou hoje no cemitério, não sei não, essa mãe de santo deve ter incorporado um espirito ruim!
     - Como assim, espirito ruim? – Questionou Elaine, aflita após a informação dada por Vanessa.
     - Algumas pessoas acham que estão incorporando entidades boas. Mas, acabam incorporando espíritos de baixa vibração. Pelo que você me contou... Sei lá, está com cara de ser magia negra. Parece que essa amarração foi feita nos espíritos de vocês. E o que houve na sequência? – Questionou Vanessa.
     - Depois a mãe de santo... Sei lá, acho que desincorporou. Ela disse que eu mesma poderia comprar os itens, ou então eu dava o dinheiro pra ela comprar. Eu preferi esta última opção.
     - Mas, você acompanhou ela no processo?
     - Sim. Eu só não vi se a terra era de cemitério, mas coloquei os bonequinhos dentro do coração de boi e enrolei o arame farpado. Depois, colocamos tudo em um vaso de flores que está até hoje aqui em casa. – Disse Elaine, de fato olhando para o referido objeto, que estava sobre a mesa de centro.
     - E o resultado? Veio em trinta dias mesmo? – Questionou Vanessa, afoita para saber o desfecho da história.
     - Trinta dias nada. Uma semana depois ele voltou! Sem pensar duas vezes, fiz o cheque e fui pagar a tal da dona Preta.
     - Nossa Elaine, realmente isso está muito estranho mesmo! Com certeza, as vozes que você escutou tem relação com esse trabalho! Vocês estão amarrados pelos espíritos, por isso eu acho que o Vitor não está conseguindo partir em paz.
     - E agora?
     - O mínimo seria resgatar os bonequinhos. Depois, eu levo no centro que eu frequento e vejo com o médium o que podemos fazer. Você quer que eu vá na sua casa amanhã, para fazer isso com você?
     - Por favor amiga!
 
     As duas continuaram a conversar.
 
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     Mais tarde, quando as primeiras horas da madrugada chegaram, Elaine estava sozinha no quarto, tentando dormir. Inevitavelmente, tinha a cabeça carregada de diversas memórias que a impediam de conseguir atingir o sono. Refletia e custava a acreditar totalmente na conversa que tivera com Vanessa, que lhe explicou sobre a possibilidade macabra relacionada ao trabalho de amarração, onde os “espíritos” do casal estariam presos por magia negra. Também, se recordou dos gritos de socorro do marido, escutados à beira da cova naquela mesma manhã. O quarto estava gelado e, apesar disso, a viúva estava descoberta, usando apenas uma camisola. Foi quando a porta se abriu.
 
     - Que foi meu bebê? Quer dormir com a mamãe é?
 
     A pequena não respondeu. Caminhou silenciosamente e foi para o colo da mãe. Elaine sofria por não conseguir entrar no mundinho da filha e lhe explicar o que realmente havia acontecido, que o pai não retornaria mais.  Dayane não havia chorado ou se lamentado pela morte, ainda não sabia a profundidade dessa palavra, apenas repetia que queria o “papai” dela, pedindo que a mãe ligasse, exigindo que voltasse logo para casa. E quando alguém tentava explicar que tal retorno nunca aconteceria, a menina parecia não dar ouvidos. Elaine já não sabia mais o que fazer a esse respeito.
 
     - Vim "espelar" papai! – Resmungou Dayane.
     - Pode dormir aqui comigo então. Eu estava acordada também, pensando no papai, na minha última conversa que tive com ele!
     - Ele falou "o que pa você" mãe?
     - Foi na semana passada. Ele disse que estava na hora de te acordar, pois você tinha que ir pra a creche. Aquela foi a última vez que conversamos. Depois, ele foi embora de vez. – Disse Elaine, tentando, mais uma vez, explicar que Vitor Jamais voltaria. – E qual foi a última coisa que o papai disse pra você, meu amor? – Questionou.
     - O papai disse: "bigado" filha. 
     - Por que o papai te agradeceu filha?
    - Porquê eu peguei o olhinho dele no chão, e dei "pa voxê".
     - Como assim? Quando ele te falou isso?
     - Quando eu "tava" no meu "quato", na minha caminha.
     - Como assim filha, me explica isso direito!
     - O pai "tava" sentado lá na minha cama. Depois ele disse "pa" eu ficar com "voxê" mamãe... Porque ele também vai "paxar" aqui.
 
     Elaine ficou paralisada. A mente foi dominada por uma mistura de diversos sentimentos; dentre eles, obviamente, o medo. A naturalidade com a qual Dayane acabara de falar sobre a presença do pai – que supostamente estaria no quartinho dela - não levantava suspeitas sobre possível falsidade de argumento, ainda mais pelo fato de se tratar de uma criança de três anos de idade, que há poucos meses estava aprendendo a falar. O quarto, com a luz apagada, permanecia gelado e escuro. Pela janela entrava a fraca luz azulada do luar da madrugada. A porta ainda estava fechada, como Dayane havia deixado ao entrar. Nesse momento, as lembranças da conversa com Vanessa voltaram a assombrar a mente da viúva. Afinal de contas, o que realmente estava acontecendo?
 
     Minutos depois, cogitou perguntar se Vitor havia dito alguma outra coisa; no entanto, faltou-lhe coragem. Além disso, os olhos fechados de Dayane evidenciavam que, finalmente, ela estava conseguindo dormir. Então, com cuidado, repousou a cabeça da menina confortavelmente no travesseiro e se levantou, caminhou até a porta, colocou a mão na maçaneta e segurou firme. Pensou em abrir e ir diretamente investigar o quartinho da filha, para comprovar os fatos reportados pela pequena. No entanto, ao invés disso, se limitou a colocar o ouvido direito na madeira, com a intenção de poder escutar o que acontecia do outro lado.
 
     E ela escutou!
 
     Conseguiu ouvir passos no corredor da casa; o som aumentava e revelava que (quem quer que fosse) estava indo na direção do quarto onde Elaine estava trancada com a filha.
 
     - É ele! Só pode ser ele! – Pensou, com o coração batendo acelerado.
 
     Novamente, retornou o ouvido à porta. Mas, dessa vez, pressionando a madeira com força.  Com isso, percebeu quando o som dos passos se aproximou até a soleira. Cogitou abrir, a mão soada chegou a deslizar na velha maçaneta, mas o medo foi maior. Então, fez o contrário: segurou a chave e deu duas voltas, trancando a porta. Nesse momento, notou uma coisa cujo efeito foi o arrepiar de quase todos os pelos do corpo: conseguiu sentir, perfeitamente, o típico cheiro do Vitor, sendo exalando através da fresta do batente da porta trancada! O mesmo cheiro gostoso, que o corpo quente do marido produzia, quando este retornava do banho.
 
     - Meu deus! É realmente ele! – Pensou novamente, com os olhos cheios de lágrimas.
 
     Para Elaine, era óbvio que a presença do marido morto, de alguma forma, estava no outro lado da porta. Olhou para cama e viu Dayane dormindo tranquilamente, e temeu a possibilidade dela acordar e perceber o que estava acontecendo. Então, cautelosamente, deu mais uma volta na fechadura e, pisando com a ponta dos pés, retornou à cama. Tentou de alguma forma aguçar a audição, como se fosse uma lebre sendo espreitada pela onça, mas nada escutou além da ligeira respiração da filha e dos latidos noturnos dos cachorros da vizinhança. Era uma verdade assustadora, mas que, ao mesmo tempo, trazia um gosto doce à boca!
 
     Não ocorreram outros eventos dignos de nota. E a viúva acabou adormecendo.
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     Era quase onze horas da manhã do dia seguinte, quando Vanessa foi à casa da amiga, como fora prometido. No entanto, logo à porta, foi recebida por uma surpresa fantástica e desagradável!
 
     - Eu desenterrei como combinamos. Mas, por incrível que pareça, não estava mais lá! – Disse Elaine.
     - Como assim? Você tem certeza do que está falando?
 
     A Umbandista foi imediatamente convocada para entrar. Uma vez na sala, contemplou diversos pedaços de jornal velho, espalhados no chão. Em cima havia o vaso de argila, de onde saiam generosas porções de terra preta e fedida; supostamente extraída em um cemitério, como dissera a mãe de santo na época. Em seguida, Elaine mostrou o arame farpado totalmente enferrujado e uma mancha podre, molhada e embolorada na terra, que deveria ser o que sobrara do coração do boi. No entanto, faltava a presença dos itens mais importantes: os dois pequenos bonequinhos de pano, que foram amarrados pela mandingueira.
 
     - Você está brincando comigo!
     - Eu queria que fosse brincadeira! – Respondeu Elaine.
 
     Vanessa se abaixou e observou a sujeira que saia do vaso. Sentiu-se enjoada quando percebeu que diversos insetos – tatus, formigas e baratinhas – dançavam no meio da terra, e engoliu em seco quando se lembrou de onde aquilo poderia ter sido extraído, caso a mãe de santo não houvesse mentido. Então, apanhou o galho de plástico das rosas sintéticas, e revirou um pouco o barro preto, mas nada encontrou além de diversas minhocas. Realmente, os bonequinhos não estavam enterrados como deveriam. Então, levantou a cabeça e contemplou a face de Elaine, cujos olhos claramente ansiavam por uma solução. Enquanto isso, Dayane estava sentada no sofá assistindo desenhos, hora ou outra observando a investigação das duas amigas, porém, alheia ao que realmente acontecia.
 
     - Tem certeza de que, em outra ocasião, este vaso não foi mexido?
     - Absoluta! Ficou aqui na sala desde o dia em que eu o trouxe da casa da mãe de santo!
     - O Vitor nunca mexeu?
     - Não.
     - Você nunca viu sua filha brincando com o vaso?
     - Nunca!
  - Você lembra claramente de ter colocado os bonequinhos dentro do coração, e enterrado aqui?
     - Como se fosse ontem!
 
     Explicações razoáveis não foram encontradas. Pior era o fato de que, sem estes itens, a amiga não sabia o que fazer para anular a magia realizada por Dona “Rosa Caveira”. Fundamental era que, no mínimo, os objetos que simbolizavam a união do casal fossem desenterrados do vaso. Elaine, por outro lado, comprimiu a memória, levou a mão à têmpora, fechou os olhos e meditou. Mas, não alcançou nenhuma recordação que pudesse justificar o desaparecimento dos bonequinhos de pano. Sem resolução, Vanessa se despediu, alegando que o desparecimento dos objetos impediria a realização do que ela chamava de “desamarração de amor”. Então, restava apenas buscar informações, com outros colegas Umbandistas, a respeito de quais procedimentos paliativos poderiam ser aplicados.
 
     - Quando você for dormir, faça um círculo de sal ao redor da sua cama. Isso vai afastar maus espíritos!
     - Mas o Vitor não era uma pessoa ruim!
     - Eu sei amiga, mas esses trabalhos podem atrair coisas estranhas. Tome cuidado. Qualquer coisa pode me ligar, não importa a hora.
     - Pode deixar! - Disse Elaine. Fechou o portão e retornou à sala.
 
     Usando um par de luvas, recolheu a terra espalhada sobre os jornais e a colocou novamente no vaso. Limpou o chão, organizou a mesinha de centro e deixou tudo da mesma forma como estava anteriormente. Inclusive, replantou as rosas sintéticas no barro preto. O resto do dia transcorreu de forma tranquila. Elaine permaneceu pensativa e silenciosa, deitada no sofá da sala, ao lado da filha. Em diversos momentos, ficava com o olhar fixo no nada, apenas meditando nas coisas que a amiga havia dito naquela manhã. Mais tarde, após a janta, que ocorrera por volta das nove da noite, mãe e filha subiram ao andar superior da casa, para irem dormir. Elaine não se ofereceu para passar a noite junto da menina, como fizera anteriormente. Conduziu-a ao quartinho, e a colocou na cama despedindo-se com um beijo na testa.
 
     - Mãe, o papai vai passar aqui hoje de novo?
     - Sim filha. Daqui a pouco ele vem!
 
     E saiu, fechando a porta com uma leve batida.
    
     Ao entrar no quarto de casal, Elaine não fechou a porta. Despiu-se e colocou uma camisola: a favorita de Vitor. Perfumou-se, soltou os cabelos e deitou-se. A janela estava fechada, mas a ausência de cortinas permitia que a fraca luz da lua entrasse no quarto, dando uma tonalidade azulada para a pele da viúva. Sozinha no escuro, ficou quieta e manteve os ouvidos atentos a qualquer barulho que surgisse. Pouco tempo depois, os degraus de madeira da escada rangeram-se e converteram-se à nítidos sons de passos, como se alguém caminhasse pelo corredor, em direção ao quarto.
 
     Elaine escutou perfeitamente, e entendeu o que estava acontecendo: ela sabia quem estava chegando. “Pode vir meu morzão! Não importa se você está vivo ou se está morto, o que realmente importa é que você sempre estará amarrado à mim” – Pensou.
 
     Meteu a mão embaixo do travesseiro e tateou dois objetos pequenos de pano, ainda sujos de terra.


     E o som dos passos aproximava-se cada vez mais do quarto.  
 
Fim
Velho Gonçalves e Lee Rodrigues
Enviado por Velho Gonçalves em 26/11/2015
Reeditado em 27/11/2015
Código do texto: T5461167
Classificação de conteúdo: seguro