Após a curva (DTRL25 - Estradas Desertas)

Hoje o Sol parece um farol, me guia pelas pistas enquanto eu dirijo meu carro, uma lata velha modelo 1982. O dia não apresenta a menor sombra de chuva, nem nuvens há no céu. Ótimo. Concentro-me tanto nas estradas que quase perco o foco ao meu redor. Um zumbido engraçado grita no meu ouvido.

— Já chegamos?

— Não, não. – digo despertando.

Ah. É apenas a Jéssica.

— Não fique aí sonhando. Diga-me quando chegarmos.

— Tá.

Meia hora depois a estrada começou a ter trechos bifurcados fazendo com que o carro balançasse e afetasse cada vez mais o humor de Jéssica. As árvores iam aumentando de tamanho na beira da pista dando uma profundidade interessante. Tenho como hobby as estradas, são fascinantes. Ainda mais viajar sem um destino pré-definido, a intenção é encontrar um belo campo onde possamos fazer um piquenique, lanchar, fotografar e depois arrumar um hotel para passar a noite. Ela ama a natureza tanto quanto o pai.

— Ligue o rádio. Está quente. Estou cansada.

— Decida se vai pedir ou reclamar primeiro. – bufei – Sua impaciente.

Ela pirraçou, ligou o rádio ela mesma e calou-se. Não sei que estação era aquela, mas a música era a minha favorita: Somewhere Over the Rainbow. Um espetáculo pra se ouvir debaixo dessas árvores, as folhas caindo como se fosse outono.

— Cara, olha só que droga essa estrada. – disse ela.

— Tem uma curva ali à frente. Quer seguir ou virar? – perguntei sorrindo.

— Vire a curva, a estrada deve ser melhor lá.

Certo, eu viraria então. Mas algo de estranho me chamou a atenção, um brilho intenso vindo do alto de uma árvore. Distraído, acabei passando da curva e Jéssica me deu um empurrão no ombro que quase me fez perder o controle do carro.

— Teimoso! Teimoso! – berrava.

— Veja pelo lado bom: os buracos na pista acabaram.

A partir daí o tempo foi ficando mais seco e abafado. Pus o braço pra fora, apoiando-o na janela.

— Quer ter seu braço arrancado por alguém?

— Credo, Jéssica! Não seja dramática.

Mesmo assim recolhi o braço e fechei a janela.

— Você viu aquilo? – eu disse.

No exato momento em que fechei a janela um homem com uma mulher e duas malas esticou o braço como que pedindo um taxi, estava a 80km por hora, passei tão rente a beira da estrada que quase tive a impressão de que ele queria mesmo puxar meu braço. Porém, parei. Dei ré com cautela.

— Você tem problemas? Se for um assaltante ou um louco qualquer? – ela sussurrou.

— Deixe disso, ele tem duas malas, deve ser viajante. Deve estar precisando de informação.

— Ou carona. – insinuou.

O cara tinha uma blusa xadrez vermelha e uma boina, do tipo boa pinta, a mulher loira usava óculos de sol e um vestido amarelo, uma belezura. Casal jovem. Botei um sorriso no rosto e perguntei como fazem os vendedores de loja:

— Precisam de ajuda?

— Olá, somos viajantes. Estamos indo para Pensilvânia. O carro quebrou lá do outro lado, sabem como chegar lá?

— Ah...

— O caminho para a Pensilvânia está lá atrás, naquela curva. Sabe, John? – me deu um peteleco na orelha – aquela que não viramos.

— Como você sabe? – cochichei.

— Tinha uma placa e você não viu porque estava dormindo. – disse ela aumentando o tom de voz.

— Desculpem-me por isso. Essa é minha filha, Jéssica.

— Puxa, que pai jovem. – disse a mulher.

Realmente, sou apenas 16 anos mais velho que Jéssica. Após os cumprimentos, ele coçou a cabeça olhando para trás.

— Ah, então é só voltar. Obrigado, viu? Vocês podem me ajudar com meu carro?

Com um sorriso forçado e sem o consentimento de minha filha impaciente, fui com eles até mais ou menos o meio da floresta. O carro, um conversível, estava um caco, com o capô enterrado num tronco e saindo fumaça. Emprestaram-me ferramentas, mas aquilo não tinha jeito, o motor pifou.

— A garota parece que queria ter ido até a Pensilvânia, se quiserem voltar lá, podemos ir com vocês até o posto mais próximo? Chamarei um guincho de lá, aqui não tem sinal de telefone.

— Suas malas estão bem amarradas lá em cima? – perguntei a eles.

Responderam que sim e ficaram conversando um com o outro no banco de trás. A cara de Jéssica nunca esteve tão fechada e ela estava também agarrada a seu crucifixo. Tentei acalmá-la cantando. Devo ser um pai irresponsável, mas esses dois me parecem gente fina.

Após retornar e deixá-los num posto resolvemos voltar para a estrada que seguia reto. (O tal do medo).

Algo desagradável aconteceu a poucos metros daquela curva: o pneu estourou. E pior, eu não tinha um único estepe.

— Mas como pode? Nem tem buracos aqui e eu não corro com essa lata velha. – dei um soco no capô.

— Isso é praga? – perguntou-se franzindo a testa.

— Eu fico aqui e você vai até o posto a pé, compre um pneu bom. Dois se for preciso. – foi a decisão.

Fiquei receoso, pois ela tremia de medo deles voltarem tão logo. Realmente não foi com a cara deles. Mesmo assim, fui com o passo apertado, deixando o carro todo trancado. Lá na frente pude ver o casal vermelho e amarelo vindo. Impossível deixá-la; dei meia volta. Fiquei encostado no carro e quando passaram, viram o estrago na roda. Ofereceram-se para ajudar a trocar, mas recusei.

— Podemos ajudar, o guincho está vindo. Pegue um de nossos pneus bons, compramos outro na Pensilvânia, assim poderá ir embora mais rápido, o posto está um tanto longe. – falou a mulher – Sou Tammy e ele é o Ed.

— Obrigado, mas deixarei o carro aqui e eu e Jéssica iremos comprar o pneu. Vamos com calma, quando chegarmos lá o guincho já terá vindo.

O tal de Ed pôs a mão em meu ombro e o apertou.

— Estamos oferecendo ajuda, rapaz. – disse – Por que não pega ferramentas comigo pelo menos? Você mencionou que esqueceu as suas em casa.

Sim, mencionei.

— Ok.

A feição dele naquele momento apresentava um sorriso forçado. A mulher Tammy ficou conversando com Jéssica. Peguei um macaco e chave.

— Ei! – disse ele puxando meu braço.

— O que você quer? – indaguei um tanto irritado.

— Bela garota a sua, hein?

— Se se aproximarem dela, eu...

— O quê, John? Vai me bater, me matar? – riu-se.

Fechei o punho esperando o momento para acertá-lo, porém isso seria provocativo o suficiente para deixá-lo irado. Acalmei-me e consegui me soltar, peguei as ferramentas, arranquei-a de lá, que parecia entediada com a conversa de Tammy, e saí a passos apressados. Um assobio longo fez-nos olharmos para trás e então vi a mulher tentando soltar-se das mãos de Ed de relance. Um disparo. Jéssica levou as mãos à cabeça e gritou, estávamos bem no meio da estrada, as árvores recebiam agora uma rajada forte de vento, como que se tivesse vindo do disparo da arma. Tammy sangrava; a mão no ombro. As folhas dançavam acima de nós.

— Ele é louco, John! Eu tinha esse pressentimento.

— Não corra. – alertei – Ele atirará na mesma hora.

Tomei a coragem nos ombros e, arrastando Jéssica à força, dei passos firmes com o cenho fechado. O vento e os risos compulsivos daquele cara ressoavam.

Ele resolveu falar:

— O que foi, John? Isso tudo é medo?

Soltou-a e ela correu para a floresta chorando. Deixei Jéssica dentro do carro e continuei andando em direção a ele. Ficamos frente a frente, ele abaixou a arma distraindo-se com o choro desesperado da mulher. Então tive pequenos grandes segundos de vantagem para dar-lhe um soco e pegar a arma, assim poderíamos fugir rapidamente e gritar por pessoas na estrada. Já estava entardecendo. Feito isso, verifiquei, ele estava caído na terra. Peguei Jéssica e fomos a todo vapor para aquela curva que levava a estrada do posto.

Dois tiros passaram voando por nós, então paramos, travados de medo. Ele era insistente. Virei-me depressa e apontei a arma que roubara dele para sua testa, com a mão no gatilho, ameacei atirar.

— Atire e eu atiro de volta. Nela. – e apontou para minha filha escondida em minha blusa.

Rendi-me, a vida de Jéssica era tudo, que ele me levasse, mas não a ela. Tomou-me a arma e fomos até o conversível onde Tammy chorava e soluçava tentando estancar o sangue.

— Não recuse ajuda, cara. Isso é errado, muito errado. Você já devia saber disso. – e deu uma investida em mim, prensando-me num tronco. Agarrou minha garganta enquanto apontava para Jéssica.

— Veja só, posso matar os dois de uma vez só! – e gargalhou.

Seus olhos frios e seu sorriso torto fitavam-me e lançavam suas chamas. Eu não tinha um plano sequer.

— Acabo com isso tudo, com ela, com vocês, quando eu quiser! – berrou – Está vendo essa aqui? Foi piedosa com vocês dois, então tive que a punir. – disse com raiva – O que eu te falei, Tammy? Por que não pegou a garota?

— Eu... eu não sei, Ed! Eu não quero saber, estou farta!

Foi o bastante para que ele me soltasse e pudesse recuperar o ar. Não demorou nada, uma série de quatro tiros foram desferidos em Tammy. Ela caiu se contorcendo.

— Eu te odeio, Ed! – disse ainda.

— Há, há! Viram isso? Eu acabo com vocês assim. – e estalou os dedos.

Jéssica estava tão aterrorizada que não conseguia emitir som algum. Seus olhos nadavam em lágrimas.

— Quero você pra mim. – disse pondo a mão no queixo dela.

Movi-me involuntariamente.

—Shhh! – pôs a mão nos lábios em pedido de silêncio - Eu posso acabar com ela, sabe disso. Veja...

— Não verei nada, seu desgraçado! Chega de pedir que “vejam”. Vá arranjar um público para assistir este seu teatrinho.

Dei-lhe um belo chute e três socos seguidos que fizeram com que caísse desmaiado. Quando notei, Jéssica estava com uma pistola apontada para ele, tremendo feito vara verde, mas preparada para puxar o gatilho a qualquer minuto.

— Pai, se você não acabar com esse imbecil, eu mesma acabo.

— Não podemos agir por conta própria. Pare já com isso, vamos aproveitar para fugir.

— Não, não vamos!

Anoiteceu, a floresta que já era escura foi coberta pelo véu da noite. Bati na mão de Jéssica, jogando a arma para longe, peguei a outra, pus no cinto e puxei-a contra sua vontade. Agora, nesse horário, seria pouco provável que alguém parasse para nos ajudar, porém se conseguíssemos chegar ao posto estaríamos a salvo. Estendi minha mão para ela esperando a resposta.

— Chamemos a polícia. – falei – Confie no seu pai.

— Ok. – deu-me a mão.

Porém o infeliz ergueu-se como um zumbi e acertou-me. Acordei atordoado e com uma forte dor de cabeça. Primeiro pensamento: Onde está minha filha?

— Sabe, John, às vezes temos que ser fortes. A vida nos dá cacetadas e nós devolvemos com cabeçadas. Entende-me? – escutei-o de algum lugar.

Percebi que estava amarrado a cordas à árvore e em meu pescoço uma grossa corda de sisal fazia pressão. Ed estava atrás de mim.

— Minha filha. – disse com certa dificuldade.

— Está comigo. Você pode tê-la de volta se for um bom garoto. – e mais uma daquelas risadas.

— Seu palhaço de merda... Traga minha filha. – a dificuldade de falar aumentava.

— Posso cortar seu pescoço quando quiser. – disse quase sussurrando.

Essa voz de louco de hospício deixava-me cada vez mais furioso.

— O que quer?

— Nada demais, apenas sua filha. Eu lhe pago, tenho 10 mil em minha mala.

Assenti.

— Certo.

— Você é um homem inteligente, John.

Afrouxaram-se as cordas, levantei-me e cerrei os olhos para poder enxergar. Uma tocha acendeu e vi seu rosto, inchado, risonho e suado.

— Aqui, pegue essa mala e vá. – disse passando-me a mala – Pode checar.

Abri, várias notas estavam em ligas, aquilo provavelmente era dinheiro roubado de bancos. Ele deve ter feito Tammy o roubar.

— Estávamos aqui desde as 7 da manhã. Você foi o único que parou por aqui. Devo agradecer-lhe pelo prêmio. Não é fácil dar um golpe numa estrada quase deserta.

“Um golpe”.

Fingi sorrir.

— Posso me despedir?

Desconfiado, levou-me até o carro. Deu-me 3 minutos e virou de costas, olhando a todo instante para os lados como se aguardasse a polícia.

— Querida, você está bem?

— Pai! – abraçou-me chorando - Estou com medo. Está escuro. Quero ir pra casa.

Sorri.

— Decida se quer reclamar ou pedir. –disse.

Ela deu-me seu crucifixo, recusei, mas ela insistiu. Sussurrou em meu ouvido:

— À sua esquerda há uma pá que estava no carro.

— Certo. – falei. – Eu te amo. Volto logo, está bem?

Levantei-me devagar, arrastei a pá com o pé devagar e encenei.

— Tudo certo, Ed! Cuide bem dela. – falei com o sorriso mais descarado do mundo.

— Bom rapaz! – alegrou-se.

Jéssica apavorou-se sem entender a cena. Ficou desesperada chamando-me e tentando se soltar das cordas.

— Seu pai entregou-lhe para mim. Não é ótimo, querida?

Num movimento quase imperceptível abaixei-me e consegui pegar a pá. Mas Ed foi rápido, já desconfiava de que eu fingia. O plano inicial seria pegar a mala, chamar a polícia e voltar, mas a ideia de Jéssica parecia mais eficaz. Virou-se com sua risada de coringa e preparou-se para atirar sem dó, quando algo de novo veio do nada e interferiu, desferindo um tiro contra ele.

Por incrível que pareça era ela, Tammy, numa versão assustadora e abominável, coberta de sangue com seu vestido quase fluorescente e os cabelos desgrenhados dentro dos olhos, foi o que me salvou. Pude sentir a morte tocar meu peito, mas naquele instante, aquilo me parecia mais um sanatório. Tammy estava com a voz fraca mas conseguia falar.

— Obrigado. –agradeci de coração.

— Disponha. Agora é com você.

Apesar de seus vários ferimentos, não tinham pegado em pontos vitais, então ela se mantinha viva. Jéssica cobriu os olhos e ficou agarrada aos joelhos chorando. Ed não se mexia.

— Não sinto o pulso. Você atirou no peito, acho que ele se foi.

— Corra e chame a polícia, diga que você teve de revidar.

— Mas e você? – perguntei preocupado.

— Ficarei bem.

Ficamos ainda observando o corpo; nada. Então abracei fortemente minha filha e também Tammy que salvou minha vida. Pedi que viesse comigo, mas somente Jéssica quis vir, alguém tinha de ficar de guarda. Despedi-me.

— Cuide-se. – a Jéssica disse.

— Eu é que sou grata por terem me libertado.

Foram as últimas palavras dela. O monstro ergueu-se mais uma vez ardendo em fúria e ódio, pegou a pá que estava bem ali ao lado e cravou-a no estômago de Tammy e ainda deu-lhe coronhadas com a arma que encontrou na terra e mais tiros. Foi horrível. Horripilante.

Abraçamo-nos e ajoelhamos no chão. Era o fim. A tocha na mão dela apagou-se ao cair ao chão e tudo ficou um breu só. Nenhuma voz, choro, nada, apenas as aves da noite gorjeando. Jéssica arrepiou-se e pude sentir que ela conseguiu se levantar.

— O que está fazendo?

— A respiração dele. Ele está bem aqui.

Então ela entregou-me algo familiar. Uma adaga. Provavelmente ela encontrara no conversível.

— Pense rápido!

Acendeu um fósforo e num impulso ataquei em todas as direções, senti a faca cortando carne, despedaçando tudo e um corpo caindo.

Rapidamente peguei meu celular no bolso para iluminar e vi Ed desfigurado, minhas mãos cobertas por sangue e pedaços do rosto e do braço. Chacoalhei aquilo tudo. Olhei para Jéssica, as lágrimas escorriam de seu rosto, ela soluçava e me encarava.

— Você está vivo. – ela disse.

— Nós estamos.

Olhei para ela, tão jovem, tão frágil. Como pude ser um pai tão irresponsável? Ela tremia tanto, estava tão pálida, pus a mão em seu rosto e tentei abraçá-la, mas fui impedido.

— Eu só queria fazer um piquenique e tirar umas fotos.

Ainda podemos fazer isso. – encorajei-a.

Foi aí que percebi que em seu peito uma faca estava cravada.

— Ele foi mais rápido, pai. Não fique triste.

Desesperei-me. Passei por um momento de loucura, dor, sofrimento, um mix de todo sentimento ruim do mundo. Ela caiu em meus braços, tentei retirar a faca, mas a dor era imensa.

— Filha, você ficará bem, eu juro. Vou te levar até o posto e chamar os bombeiros. Aguente firme, tá?

Ela balançou a cabeça negativamente.

— Tudo bem, pai. Eu te amo demais.

Levantei com as lágrimas caindo em seu rosto e com ela no colo, pus-me a andar, um passo firme seguido de outro, logo estava correndo muito mais do que pensei que conseguisse. A estrada estava escura demais, nenhum carro passava, nem uma pessoa, uma bicicleta. Ninguém.

Consegui chegar até o posto em vinte minutos de corrida, completamente sem fôlego. Caí de joelhos e fitei a minha esquerda. Um caminhão estava parado, os frentistas não estavam lá, deveriam estar na loja de conveniências. Um homem barbudo desceu, fitou a mim e a Jéssica em meus braços. Sorriu maliciosamente.

— Aceita carona?

Anna Julia Dannala
Enviado por Anna Julia Dannala em 26/11/2015
Reeditado em 28/11/2015
Código do texto: T5461150
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