A Presença do Medo
Ele tinha medo.
Assistia a filmes de terror, principalmente os que envolviam fantasmas, demônios e aparições. Depois, na hora de dormir, deixava a televisão ligada, e programava o sleep time para que ela num amanhecesse ligada, e sua mãe reclamasse por horas. Não dormia bem quando sozinho em casa.
Naquele dia ele não estava com medo, mas estava sozinho em casa. A ventania lá fora fazia as janelas assoviarem uma estranha sinfonia desafinada, porém macabra. Sentou-se no sofá e olhou para a imagem de Jesus Cristo presa à parede. Sentiu arrepio e desviou o olhar para a tevê desligada. Sua mente parecia procurar algo para assustá-lo. A impressão de uma silhueta no reflexo da televisão desligada o fez colocar uma toalha sobre ela.
Voltou ao sofá.
A chuva desabou. Sua mãe não estava em casa. Ele foi até o quarto dela e revirou algumas gavetas procurando algum trocado para jogar no fliperama do bar do outro lado da rua. Não achou nada. Apenas uma foto sua, aos oito anos, na escola. Lembrou-se daquele dia imediatamente. O dia em que os alunos brincaram de Jogo do Copo, e o espírito num queria deixa-lo abandonar a brincadeira. Dias assustadores que se seguiram aquele. Era como se todo seu medo tivesse iniciado naquela terça-feira, na festa junina da escola, quando antes os alunos brincaram com o espírito do copo. Ele não queria, mas insistiram. Ele brincou. E passou a sentir a presença. A presença.
Seus pensamentos voltaram para o presente. Voltaram para a sala, fitando sua tv coberta por uma toalha. Resolveu se levantar e tomar um banho. Encarou sua imagem no espelho. A chuva estava silenciosa agora. Estranhamente silenciosa. Ficou então encarando suas expressões no espelho. Seus dezesseis anos haviam passado rápido. Ainda virgem, cheio de espinhas na cara, sem namorada, sem um esporte para praticar. Baixa estima. Algo que talvez seu pai também sentisse antes de se matar. Ele não se lembrava disso, tinha apenas dois anos. Mas lembra do barulho do tiro.
Abriu a portinha do armário do banheiro e retirou seu barbeador. Queria desenhar os poucos pelos que estavam lhe nascendo sob o queixo. Ao fechar a portinha, não se viu. Seu reflexo havia sumido. Deu um pulo assustado para trás, e sem querer, cortou o dedo com o barbeador descartável. Fechou e abriu a portinha por diversas vezes, e sua imagem não voltava. Foi até a sala e retirou a toalha de cima da tv. Sentou-se no sofá e ficou tentando se achar no reflexo negro do aparelho de 42 polegadas. Não havia nada. Apenas uma pessoa de pé, ao lado do sofá, acenando devagar com a mão esquerda, enquanto segurava um copo com a direita.
Então se levantou e foi para o banheiro. Fechou a porta e passou o trinco. Abriu a água fria do chuveiro no máximo, e antes de entrar no boxe, ainda espiou no espelho para se vê. Desta vez sua imagem estava lá. Rosto suado, e as espinhas mais avermelhadas do que nunca. Elas sempre ruborizavam quando ele estava suado ou nervoso. Épocas de provas na escola ele parecia um maracujá. Cheio de marcas na pele de seu rosto redondo e vermelho.
Entrou debaixo da água do chuveiro e apoiou as mãos na parede deixando que a enxurrada batesse sobre suas costas também cheias de acnes. Tentou entender o que havia acabado de presenciar. Sua mente estava novamente lhe pregando peças, e não poderia ser por conta da brincadeira do passado. Ele já havia superado aquilo tudo. Apenas ficou impressionado. Só isso! Sua cabeça criara todo o resto.
Abriu os olhos e olhou para o registro prateado em forma de hexágono do box. Seu reflexo estava lá, distorcido pela umidade e gotículas d’água. Passou a mão esquerda e limpou as gotículas. Lá estava seu reflexo distorcido. Sua barba rala, e seus cabelos molhados caindo sobre o rosto. Ele sorriu sentindo-se ridículo. Passou a mão novamente. Sua silhueta continuava lá. Ele fez careta e sorriu novamente. Pegou o frasco de shampoo e lavou os cabelos de olhos fechados. O aroma de chiclete o fazia se lembrar dos tempos de criança.
Abriu os olhos e encarou o registro novamente. Havia uma marca de dedo nele. Ele então limpou e chegou perto para o olhar algo estranho no reflexo. Havia uma mancha escura no canto do círculo do registro. A prata estava molhada. Ele passou novamente a mão e se aproximou.
Havia alguém ali. Acenando, segurando um copo.
A última coisa que viu foi o copo se espatifar na parede a sua frente.
A última coisa que ouviu foi uma risada aguda e penetrante invadir seus ouvidos antes de tudo ficar escuro e com gosto de sangue.