O Corpo de Laura

O velório acontecia no cemitério municipal, haviam poucos presentes. O cadáver mutilado só deixava o rosto exposto. Laura, a albina, fora encontrada com as pernas e braços arrancados perto de uma caçamba de lixo nos subúrbios da cidade. Ainda viva, em um delírio febril, falava coisas sem nexo sobre demônios que disseram precisar de seus membros. Fora levada ao pronto-socorro mas morreu no caminho, ainda na ambulância. A polícia afirmara que ainda não tinha pistas sobre o autor do crime brutal. Laura não tinha inimigos e nada fora roubado dela, sendo que sua mochila havia sido encontrada ao lado do corpo mutilado da garota, em meio a uma poça com o sangue misturado ao chorume fétido que escorria da caçamba de lixo. No velório estava Vera, sua benfeitora, que soube da notícia através de uma ligação do hospital. A senhora de 64 anos passou muito mal no meio do caminho e teve de trocar seu velho monza por um taxi para chegar ao destino. Vera havia ajudado Laura após a morte dos pais, tomando para si a tutela da jovem e gerenciando o pequeno patrimônio que a filha única recebera de herança até que a mesma atingisse a maioridade.

Entre os presentes também haviam três amigos de faculdade. Laura era muito reservada por conta de sua aparência e fizera muito poucos amigos durante os três cursos que estudou sem chegar ao final. No último deles conhecera os três amigos que a acolheram no seu círculo social. Carlos, Inácio e Cida estavam em choque durante o velório, os óculos escuros e as maquiagens não afastavam a feição de pavor dos rostos magros dos jovens, o mesmo semblante de pavor que tiveram ao saber da notícia por Vera, que era o mais próximo de um parente que Laura possuía. Os demais presentes no velório, menos de uma dúzia de pessoas, apenas conhecia a reservada garota de vista. Seis deles eram inquilinos de Laura que alugara os imóveis deixados a ela de herança pelos pais mortos em um acidente de carro quando ainda era uma criança. Os demais eram vizinhos de Vera e acompanharam a garota albina cada vez mais introspectiva crescer na casa da tutora.

A anomalia congênita afetava muito Laura que evitava sempre o contato com outras pessoas. A necessidade de evitar a luz do sol também contribuiu para uma infância reclusa de janelas fechadas e cômodos escuros. Sempre estudiosa, Laura tirava boas notas e era sempre observada pelos professores de modo a não sofrer com a honestidade perversa das outras crianças. O nível médio fora uma difícil experiência, sua introspecção e aparência batiam de frente com os impulsos hormonais da adolescência, o isolamento novamente foi a melhor saída. Após terminar o colégio, Laura decidiu fazer a faculdade, mas indecisa, mudou várias vezes de curso até parar de vez em Antropologia, onde conhecera Carlos, Inácio e Cida, os três amigos que a acolheram socialmente.

A noite já havia caído, o enterro atrasara por um problema no carro elétrico encarregado de levar o caixão. Os homens presentes, incluído dois dos amigos, juntamente com o coveiro bêbado do cemitério, tiveram de levar o caixão nos ombros. O coveiro que liderava o grupo de carregadores improvisados tropeçou deixando o caixão de Laura cair e expor o corpo mutilado da jovem que estava vestida com terno e calça brancos com as mangas e pernas da calça cortadas e costuradas para se adequar aos membros decepados da jovem. Os carregadores olharam furiosos para o coveiro bêbado enquanto a senhora Vera desmaiava no colo de duas vizinhas. Na queda o pescoço da jovem destroncou-se para trás tornando a cena ainda mais macabra. Três dos carregadores agiram e pegaram o corpo de Laura cuja boca agora estava aberta com a cabeça em um ângulo de 45º fazendo com que o sangue escuro e grosso que descia da boca da jovem caísse no paletó do homem que a levava no colo. O líquido malcheiroso contaminou o ambiente, mesmo no ar livre, com um aroma nauseabundo de carne apodrecida. O fedor azedo de carne morta entrava pelas narinas dos presentes sendo amplificado ao chegar nas papilas gustativas da língua pela cavidade nasal. Sentiram literalmente o gosto daquele sangue podre da jovem moça trucidada. Duas mulheres fizeram jeito de vômito, uma delas consumou o ato do lado de uma árvore.

O homem que colocara o corpo apressadamente de volta ao caixão voltava correndo para a sala do velório com uma das mãos na barriga e a outra na boca, estava prestes a vomitar e queria a digna privacidade do banheiro da sala. Os carregadores desfalcados pelo coveiro bêbado e pelo homem que correra de volta continuavam, com muito esforço, a macabra procissão em direção à cova. Lá, um coveiro, este sóbrio, os aguardava. Já atrasado, o coveiro disse com firmeza para o colega bêbado e moleirão ajudar a passar as cordas que desceriam o caixão na cova. Os dois se apressaram e, sem mais cerimônias tamparam a cova com a terra escura e bem adubada do cemitério. Já era noite e o trabalho foi feito com a ajuda da luz de celulares dos presentes. Vera acordava do desmaio já na volta dos que foram até a cova de Laura, a mãe postiça da jovem perdera os momentos finais do enterro.

Os três amigos entram no Passat todo detonado que o tio de Inácio dera para o único sobrinho, três anos antes, quando soube que o mesmo ia fazer faculdade na capital. Carlos ia no banco do passageiro e Cida atrás. No carro, o silêncio era absoluto. Tiraram os óculos escuros e Carlos ia removendo a maquiagem. A face toda escarificada de Carlos, bolhas meio cicatrizadas revelavam os tons em vermelho vivo ao passar próximo de alguma das luzes da cidade. Cida, no banco de trás parecia estar distraída com as imagens passando na janela, sua maquiagem branca fazia com que seu rosto magro refletido no vidro da janela tivesse uma aparência fantasmagórica.

Cida e Carlos abrem a velha casa alugada de três cômodos enquanto Inácio estaciona o Passat detonado na garagem sem telhado. Carlos senta no sofá, ainda calado. Cida segue andando pela casa bagunçada, até chegar ao banheiro, sem fechar a porta, senta no sanitário, abaixa a saia preta e a calcinha até o chão e começa a mijar. Uma leve dor no ventre a faz olhar para baixo: Sangue!

- Droga! - Xinga Cida do banheiro.

- O que houve? - Pergunta Carlos ainda sentado no sofá.

- Tem sangue no meu xixi!

Inácio vai entrando pela porta após estacionar o carro e pega metade da conversa.

- O que aconteceu?

- Ela disse que está mijando sangue.

- Eu também, estou assim já faz dois dias – respondeu Inácio.

Inácio senta no sofá. Carlos tenta beijá-lo. Ele afasta o rosto.

- Não quero isso agora.

- Por que me evita? Não dá pra pegar AIDS duas vezes, Inácio.

- Não é por isso. É que você está horrível sem maquiagem.

- Que se foda! Não vou me esconder atrás de maquiagem para sempre!

- Se tudo der certo, logo estaremos livres dessa merda, Carlos.

- E você acredita ainda naquele plano bizarro? Não seja imbecil, Inácio, fomos precipitados ao escutar aquela puta.

- Você concordou com a ideia, Carlos – diz Cida voltando do banheiro – afinal, essa era nossa única chance.

A jovem vai até a cozinha e pega duas caixas de isopor. Coloca as alças, uma em cada ombro, e as leva para a sala. O conteúdo da caixa já fedia, nenhum deles pensou na geladeira antes do velório. Inácio levanta rápido do sofá, fecha a porta e puxa as cortinas.

- Puta que pariu – diz Carlos.

- Não tem como fugir agora, Carlos, você concordou – responde com certa raiva, Cida.

Carlos fica parado se lembrando do momento em que enfiou a faca várias vezes na barriga de Laura, lembrou de Cida tentando ao mesmo tempo enforcar a garota, as unhas pintadas de preto afundando na garganta da jovem albina que gritava horrívelmente. Estava chapado naquela noite. Precisou de muita vodka e energético para tomar coragem. O plano de Cida era nefasto, em uma pesquisa na internet vira que certos grupos no centro-oeste da África matavam pessoas albinas e comiam seus corpos no intuito de curar doenças. Os três tinham AIDS, doença que pegaram em alguma orgia ou seringa compartilhada de crack. A AIDS facilitava a entrada de novas doenças no organismo, principalmente doenças de pele. Algum dos três havia pegado sarampo e passara aos outros, desde então, só maquiagem para sair. Carlos já estava cansado daquilo, cansado da maquiagem, das dores, da fila do SUS para pegar os remédios. Quando sua amiga drogada teve a ideia de comer a moça albina da faculdade, ele não pensou duas vezes.

Cida voltava da cozinha novamente onde fora buscar o copo de sangue de Laura que haviam retirado após decepar a última perna da moça com o cutelo. O cutelo de açougueiro fora o plano B, a ideia inicial era cortar os membros com um serrote, mas os ossos foram um empecilho e acabaram sendo cortados mais facilmente com o cutelo. A moça já estava desmaiada nessa fase. Os três sempre a cultivaram em banho-maria, como um cachorro vira-latas encontrado na rua com fome e com frio. A aproximação mais efetiva se deu após a ideia de Cida de utilizar de antigos conhecimentos africanos para a cura daquela doença desgraçada. O argumento utilizado por Cida para convencer os amigos fora o dos pastores evangélicos que, alegadamente, curavam gente enferma na televisão, ela nunca havia visto uma cura de AIDS mas se divertia vendo pessoas afirmando categoricamente terem sido curadas de uma dor aqui, outra ali. No entanto, o custo do método africano era maior, talvez por isso funcionasse. O desespero complementou a lógica obtusa da ideia de Cida.

Inácio toma o copo de sangue da mão de Cida e, com as mãos trêmulas querendo que aquilo chegue logo ao fim, começa o ritual macabro. Joga o conteúdo do recipiente no chão da sala, fazendo um círculo de sangue meio coagulado e já cheirando a podre. Se arrependeu de deixar o copo fora da geladeira, a intenção fora de não congelar, mas o resultado foi o cheiro de sangue podre em um azedume de carniça tomando conta de todo o ambiente enclausurado da casa velha. Os três se prostraram de pé dentro do círculo, um de frente para o outro. No calor da ação haviam arrancado os quatro membros da pobre Laura, Inácio agora imaginava que não seriam necessários quatro membros já que eles eram três. Imaginou se teria sido o primeiro a chegar àquela conclusão tragicômica.

Cida pegou um braço da caixa de isopor, Carlos outro, para Inácio sobrou uma das duas pernas extremamente brancas da garota albina. Cida tirou um papel do bolso e lendo-o recitou uma frase irreconhecível, em algum dialeto africano. Repetiu a frase três vezes. “Agora comam!” disse ela. Os estômagos se reviravam. Nenhum deles conseguia parar de pensar em Laura ao mastigar a carne fria e crua da jovem. Carlos vomita um jato que vai parar nas pernas e na saia de Cida que, estranhamente sem se irritar com ele, diz com os olhos arregalados ao engolir um pedaço de carne: “coma mais um pedaço, morde e engole logo!” Carlos obedece e abocanha outro pedaço do braço da garota albina que havia esfaqueado e estuprado duas noites antes. Inácio, após mastigar e engolir vários nacos de carne branca, joga a perna que comia no sofá e senta dentro do círculo de sangue. Os dois amigos fazem o mesmo.

Estavam ofegantes, parece que haviam corrido quilômetros. A adrenalina passava, era substituída aos poucos pela esperança de se verem livres daquela doença maldita. Cida começa a rir, um sorrido nefasto que aumenta para uma gargalhada hedionda, ela sentia, sentia que toda a doença estava sendo extirpada de seu corpo. Carlos estava sentado olhando sem piscar para o braço que acabara de comer. Inácio tentava procurar algum indício de mudança em seu corpo. Nada, não sentia nada diferente. Estaria Cida sentindo algo mesmo? Estaria ela delirando?

- Obrigada, Laura! Obrigada sua puta albina! - gargalhava alto Cida, com a boca escandalosamente aberta, cheia do sangue podre de Laura.