1890 - A Maldição da Torre

[...] E se a própria Torre estivesse no centro?

Redonda e atarracada, cega como um coração rasteiro,

Feita de pedra marrom, sem igual no mundo inteiro.

— Robert Browning

Anno Dominnis 1865, Bananal — Província de São Paulo, Estados Unidos do Brazil.

O índio vampiro, procura por um lugar para descansar, a luz do dia está chegando. Ele a pode sentir em seus ossos e com ela virá fatalmente sua morte.

Saturno entra no antigo casarão abandonado, onde a poeira e a sujeira dominam tudo, logo encontra um canto onde o sol não lhe tocará em momento algum do dia.

Satisfeito, cobre-se com velhas folhas de bananeira, prepara-se para o sono diurno quando ouve um lamento. Olha para o lado e vê o fantasma de um português idoso, com o pescoço cortado, chegando a ter sido quase decapitado por um golpe que aparenta ser de foice, devido ao ângulo, tentando chamar sua atenção.

— Ô, índio! Me ajuda eu! Me traz o sangue do João africano!

Saturno resmunga algo e começa a dormir com dificuldade. O dia inteiro escutou aquela ladainha e a noite foi ter com fantasma:

— Qual o seu nome?

O ser espectral parece muito feliz em ter alguém com quem conversar após décadas sozinho naquele casarão abandonado.

— Eu sou o Pedro Antônio de Oliveira! Olha o que aquele escravo sujo fez comigo?

Ele abriu a cabeça etérea mostrando que esta ficou pendurada apenas por alguns tendões.

Sem se impressionar, o vampiro apenas cruzou os braços.

— Já parou para pensar, que se não tivesse o escravizado, hoje poderia estar vivo?

Foi a vez do fantasma cruzar os braços, irritado.

— Mas, se preto nem é gente, eu escravizo é mesmo!

O vampiro dá de ombros e recolhe seus poucos pertences. Vai procurar algum sangue para beber e outro local para dormir durante o dia, sem ser incomodado.

— Ei! Ei! Vai me ajudar ou não? – Disse o fantasma.

Ele se digna a olhar o pobre condenado mais uma vez.

— O espírito de João africano não está por aqui.

O português morto dá uma risada.

— Ah! Deve ter ido para o inferno, pelo que fez comigo.

Novamente o índio dá de ombros.

— E se tu é tão bom, porque não está no céu?

O fantasma parece por um momento ficar muito ofendido, ia replicar algo quando para, assumindo uma atitude pensativa e gradualmente desaparece.

O vampiro sorri de satisfação e se embrenha no matagal atrás de alimento.

Cada vez mais ele vive próximo aos humanos.

Anno Dominnis 1891, Vila da Concórdia — Província de São Paulo, Estados Unidos do Brazil.

Faz pouco menos de cento e cinquenta anos que Ivan foi destruído, e, até algum tempo atrás, o único objetivo de Saturno era matá-lo. Agora, continua com a sua não-vida totalmente integrado aos habitantes civilizados, onde pode se misturar e caçar livremente.

Anda pelas pradarias, de onde enxerga a torre que está há dezenas de quilômetros, e ele já divisa a silhueta da construção na escuridão.

Percebe que a vegetação começa a escassear, os galhos retorcidos lançam suas longas sombras sob a luz da lua cheia. Sua missão é simples: queimar o antigo esqueleto da bruxa preso na cúpula da torre, e apesar de não acreditar em maldição, o imortal se rende às evidências quando percebe que as plantas definham no chão e as carcaças de diversos animais apodrecem no solo. Solo este que é fértil apenas para vermes e doenças.

Sente no ar o mal que habita ali, ainda que estes espíritos não ousem incomodá-lo, pois sabem que ele é também, um ser das trevas.

O vampiro carrega na sua mula quatro barris de pólvora e uma pederneira, pedra para colocar fogo na tocha embebida em cera e óleo, que leva apagada e nas mechas que explodem a pólvora.

A lua observa tudo do alto com uma mórbida antecipação pelo que Saturno vai fazer.

A brisa quente da noite traz ainda, um cheiro pútrido às narinas sensíveis do imortal. A bruxa, uma velha negra, há pouco mais de cinquenta anos havia lançado uma maldição terrível: os netos de seus assassinos iam morrer dolorosamente de peste. A velha foi decapitada e seu corpo largado na cúpula da antiga torre; seus restos foram colocados sobre um velho banco de madeira. Pouco depois desse acontecimento, tudo começou a dar errado no vilarejo. A colheita não crescia, o gado não vingava e a vila foi se empobrecendo.

Quando completou a maioridade do último neto das dezenas de assassinos da bruxa, a peste veio até a vila e passou a ceifá-los, um a um. Nessa época, o índio estava de passagem pelo antigo vilarejo, quando ouviu os cânticos fúnebres pela alma dos mortos, e, curioso, indagou o que tinha acontecido.

— É a peste, seu moço! Por causa da maldição, ela há de levar todos os netos dessa terra! — choram, angustiados, os moradores da Vila da Concórdia.

Faz séculos que perdeu seu amor, a vampira Ajíra, e, depois disso, nunca teve interesse por ninguém. Porém, nessa noite, uma das jovens do vilarejo chama a atenção do vampiro. Seu nome é Angellina. Os olhos negros como a noite, do vampiro, encaram os da menina, que são da cor do mel mais doce. Ela repara no índio e abaixa o rosto, muito envergonhada. Sua mente é um livro aberto, e Saturno se delicia em saber que ela o acha belo, mas que a decência a obriga a desviar o olhar. Nesse instante, ele se apaixona, como vampiro e como o homem que um dia fora, e decide: essa moça vai ser sua companheira pela eternidade. “Mas, como pode convencê-la?” – reflete.

Em sua terceira noite no Vilarejo da Concórdia, na praça central em frente a Capela da Piedade, em meio ao chegar e sair dos trens da parada, ela repara que o índio a observa com olhar carinhoso e abaixa o rosto, um tanto envergonhada. Finalmente, após algumas tentativas, ele consegue falar com ela.

As pessoas passam cumprimentando-se e retirando seus chapéus. Olham o vampiro com certa desconfiança.

Os homens acendem a fogueira tão comum naquela região, durante os festejos juninos.

O vampiro não entende o que se passa em seu coração.

— Boa noite, formosa donzela, poderias me dizer teu nome? – diz ele emulando o jeito dos brancos nobres de falar.

Ela fica vermelha de vergonha e responde:

— É Angellina Maria Silva, meu senhor. Sua criada! — responde com os olhos baixos.

Ele sorri.

— As pessoas me chamam Augusto de Toledo — mente, pois um nome como “Saturno” causaria muita estranheza no ano de mil oitocentos e noventa e um.

Após meia hora de conversação, sua influência é óbvia. Tudo o que ele diz, ela concorda, e o imortal quer saber se ela será dele por toda a eternidade, mas quando a moça vai responder, um dos homens em volta da fogueira, que os observava, levanta-se.

— Calma lá, peregrino! Tu és estranho nestas regiões — diz o homem, completando depois — Eu desejo a mão desta donzela!

Os olhos negros de Saturno o fitam com raiva, mas ele não pode fazer nada. Angellina tem que desejar a sua transformação.

— E o que propõe para resolver este problema, senhor...? — pergunta o índio, aparentando calma.

— José Lael Augusto! — diz o homem, batendo no peito. — Proponho que o mais velho do povoado resolva!

— “E que resolva a meu favor!” — O vampiro lê nos pensamentos dele.

Chamam o líder do povoado, um senhor de meia-idade, ao qual falta muitos dentes, e, depois de explicada a situação, uma moça virgem desejada por dois homens e sem pais que possam decidir por ela, o líder toma sua decisão. Saturno sabe de maneira antecipada ser do interesse de José, por isso manipula os pensamentos do homem.

— Esta donzela, Angellina, é muito preciosa, a meu ver — diz o líder. — O homem que desejar tê-la por esposa não deve ter apenas um grande dote, mas tem que ter coragem também. Por isso, proponho que acabe com a maldição da bruxa queimando seu esqueleto e levantando a cruz de ferro que jaz tombada no alto da torre amaldiçoada! — discursa ele.

O povo da vila concorda, murmurando palavras de espanto, e, ouvindo estas palavras, José empalidece, enquanto o índio boceja, entediado.

— Vamos partir agora mesmo? — pergunta o vampiro, sorrindo.

Todos os olhares se voltam para José, que é um orgulhoso filho do lugar.

— Eu... Eu... tenho que fazer os preparativos. — diz ele, muito sério.

— Ótimo! Amanhã à... “tarde”... vocês partirão! — avisa o ancião da vila, sem notar que o imortal trocou de sua boca a palavra “manhã”.

Saturno compra a peso de ouro quatro barris de pólvora com os quais promete explodir a torre, e vai dormir sob as palmas do povo, pois o dia se aproxima velozmente. Entra no quarto alugado, pedindo que não o incomodem em hipótese alguma. Inventa o fato de que estará muito ocupado o dia inteiro. Tira tudo de dentro de seu enorme baú de couro, entrando nele, e o fecha totalmente por dentro, de modo que luz alguma penetre seu interior. Dorme um sono sem sonhos, completamente negro, e, à tarde, após o sol se pôr, ele surge entre o povo como um herói sob gritos de viva e choro emocionado das mulheres. Seguem estrada à frente, prontos para darem fim à maldição da bruxa.

No caminho, Saturno até tenta conversar com José, mas este parece que quer ignorar o índio, cospe de lado com desprezo a cada nova tentativa de puxar assunto e, após horas de caminhada, a mata vai ficando cada vez mais fechada. Saturno se orienta facilmente na noite enquanto se lembra dos olhos cor de mel e cabelos de Angellina. Seu corpo e sua alma haveriam de ser seus.

José vai ficando para trás sob o peso de sua carga, assustado com os barulhos na mata, que são normais, com os bichos vivendo seu curso natural.

Pelo menos, até chegarem à entrada da fazenda decadente, que, pelo tamanho do lugar, percebem que fora muito bela e importante, mas hoje, o capim e a sujeira invadiram o lugar e é estranho que não se ouça ruídos de insetos ou animais. Parece que até os insetos preferem ficar longe desse lugar tenebroso.

O vampiro, tranquilo, avista a torre há pouco mais de um quilômetro, enquanto no assustado José escorre um suor frio. Ao passarem pela casa grande, eles observam muitas luzes de lamparinas acenderem sozinhas e apagarem em seguida, e todas as janelas da casa se fecham com um estrondo para se abrirem lentamente em seguida. As velhas dobradiças enferrujadas fazem um som agoniante.

— Socorro! — grita José, largando sua carga no chão.

Apavorado, ele está prestes a abandonar sua missão e voltar correndo para o povoado, quando, de repente, uma mão descarnada sai do solo, agarrando seu tornozelo e fazendo com que o homem caia. O chão úmido em volta dele se abre em diversos lugares, e os mortos o agarram com força. José, com a mão direita livre, saca a espada e começa a cortar as mãos que o prendem. Está em pânico, e, apesar de arrancar muitos membros podres, outros tomam seus lugares. Logo uma multidão de zumbis com a carne dependurada e podre prensa José, que grita quando o chão cede, arrastando o rapaz para o fundo, e Saturno apenas olha, surpreso.

Alguns zumbis cercam o vampiro, olhando-o com desconfiança, enquanto de dentro do buraco, José solta gritos agudos, acompanhados de uma sinfonia produzida por seus ossos se partindo. Olhando bem em volta, o índio dá de ombros. Afinal, aquele homem não é problema seu.

— Que morra em agonia — diz entredentes.

Mas, quando resolve continuar seu caminho, os zumbis avançam, tropeçando em sua direção. Um deles toca com certo receio o peito de Saturno, e logo o corpo do zumbi vai ao chão, aberto ao meio como uma maçã podre.

Na mão do imortal, seu punhal brilha, assim como seus olhos, ansiosos por uma boa luta. O filho da noite abre passagem, pedaço a pedaço, pela multidão de mortos que se ajunta em torno dele e o seu caminho. São arrancadas dezenas de membros e cabeças podres que voltam à superfície depois de anos debaixo da terra. Esses zumbis não têm pensamentos, não sentem raiva e nem dor. Saturno tem que os reduzir a muito pouco para pará-los. Não basta cortar um braço ou uma cabeça, a horda de zumbis continua a atacá-lo.

Uma voz chama seu nome dentro de sua mente.

— “Satuuuuurno...”

O vampiro não escuta, ocupado como está em picar os desmortos. A voz chama seu nome novamente, e ele escuta. Nesse momento, a multidão de zumbis o cobre, pisoteando, batendo e mordendo seu corpo, e ele não sente, pois sua mente está muito longe. Sente-se transportado em espirito, andando por uma planície verdejante durante o dia, coisa que não faz a séculos, reconhece o local como sendo aquela terra assombrada, e onde a torre deveria estar há apenas uma enorme fogueira em volta da qual dança uma multidão de índios.

Na medida em que ele se aproxima, os cânticos diminuem, até que todos ficam em silêncio absoluto e observam o vampiro, que está próximo agora.

O mais velho deles se adianta para falar:

— Saturno!

— Como sabes meu nome?

O velho tem um semblante abatido.

— Temos observado você há muito tempo... — avisa

O imortal tira distraidamente seu relógio de bolso, cujo ponteiro está parado no exato momento em que havia entrado no sítio maldito.

— Há muito tempo, nós adorávamos o fogo e as criaturas que nele habitam. Sacrificávamos homens, mulheres e crianças, fossem amigos ou inimigos. O que não imaginávamos é que todas as almas deles e as nossas iam ficar presas nesta fogueira infernal! Muito depois, a torre foi construída neste lugar amaldiçoado. Por muito tempo, esperamos alguém para nos libertar, mas todo mortal que chega logo é absorvido pelo mal que habita esta terra... Imploramos a você, Saturno, o vampiro, que destrua a torre! Liberte-nos! — grita o velho.

Todos os mortos começam a lhe pedir o mesmo.

— Eu não sei... Eu...

— Liberte-nos! Para que alguns possam ter paz e outros possam receber sua justa punição — implora o velho

— Destrua a torre! — pedem as almas próximas.

— Mas... e a bruxa? — quer saber o imortal.

A visão começa a se desfazer, e as vozes dos mortos respondem nas profundezas de sua mente.

— A bruxa é também uma prisioneira... Destrua seu crânio... E a maldição dela... terminará...

Quando volta à realidade, encontra uma massa compacta de zumbis sobre si. O fedor é insuportável, e Saturno faz força para se mover. Não acontece nada. O peso é gigantesco.

A mula foi devorada pelos zumbis até os ossos, e o índio corta a alça de couro que segura os barris de pólvora, percebendo que os mesmos se vergam sob o peso dos desmortos, bate com força a pederneira contra o pavio e avisa aos gritos:

— Ei, amaldiçoados! Se não saírem de cima de mim, vou explodir todo mundo!

O pavio acende, consumindo lentamente, e ele percebe então, que os mortos não têm intenção alguma de soltá-lo, nem que seja para salvar suas carcaças imundas. O vampiro se desespera, e esse desespero lhe dá forças.

— Saiam... De cima... De mim! –

O esforço dá resultado. Joga dúzias de zumbis para cima, e corre rapidamente em busca de refúgio, carregando consigo os outros três barris de pólvora, esperando que eles sejam suficientes para destruir a torre.

“Que estranho... onde está a explosão?” — pensa o índio.

Talvez um daqueles trapos de seres humanos tenha caído sobre o pavio, apagando-o. O emaranhado de zumbis começa a se desfazer, virando-se de maneira ameaçadora em sua direção, quando a explosão brutal destroça os restos de homens, lançando membros em chamas e ossadas em todas as direções.

Uma dúzia de ossos farpados perfura as costas do imortal. O vampiro ignora o ferimento e segue adiante, com os barris às costas e tendo que picotar alguns zumbis persistentes pelo caminho. A torre está cada vez mais próxima, e o vampiro observa que ela não parece tão imponente de perto. O reboco cai das paredes, a ferrugem e a poeira dominam tudo naquele lugar esquecido por Deus.

Pintada de branco inicialmente agora, sua cor é suja, maltratada pelo tempo, todos os seus sentidos sobrenaturais dizem que este lugar é mais perigoso do que aparenta.

A torre tem cerca de dezoito metros de altura, com apenas uma janela próxima ao topo. No alto da construção, pode-se ver uma grande cruz de ferro tombada que lança uma sombra invertida sobre todos os que chegam à entrada.

O portal da torre foi arrancado por dentro, onde uma grande escuridão, como uma boca aberta, espera para devorar qualquer visitante. Ainda do lado de fora, Saturno derrama uma boa quantidade de pólvora em volta da torre, largando os barris em pontos estratégicos em que percebe colunas de pedra.

Tocando de leve as paredes daquela construção maldita, nota que a temperatura é muito alta. Parece até que a fogueira infernal ainda arde lá, muito tempo depois de o fogo físico ter se apagado. A voz da bruxa grita em sua mente:

— Ora, ora, Saturno, se tentas me derrubar, devo me defender! Ahahahahhahaha!

O vampiro não se assusta com o que pensa ser um blefe, mas, quando entra na torre, é tomado de uma súbita fraqueza. A cada passo em frente, dores intensas percorrem seu corpo. Precisa achar a escadaria, mas, após andar o que pareceram quilômetros, está tão fraco, que cai para trás, e, para sua surpresa, está novamente fora da torre, com falta de ar.

Isso vai ser mais difícil do que havia imaginado. Quando tenta invadir o local, volta a ser barrado por forças negras, acaba saindo de novo com a estranha fraqueza que lhe entorpece o corpo e a mente. Cerra os olhos e finalmente entra correndo, acabando por bater o rosto contra a escada no centro do aposento.

Ele então percebe, o que está lhe acontecendo: quando fica com os olhos abertos, o feitiço paralisa seu corpo e lhe dá a impressão de que anda um longo percurso.

Começa a subir as escadas rapidamente de olhos fechados, e, mesmo ouvindo provocações, ofensas e gritos da bruxa medonha, os degraus semi-apodrecidos também não ajudam, quebram sob seu peso quase o atirando de volta ao solo, a risada da bruxa fica próxima, cada vez mais próxima, até Saturno abrir os olhos. Observa em volta e nota que está em um imenso aposento vazio. A escada sem corrimão sobe rumo à eternidade e, para baixo, apenas o nada. A ilusão é tão real, que o índio quase cai da escada.

— Droga! — reclama em sua língua nativa.

Não acredita no que vê, fecha os olhos e sobe, ouve um tropel de cavalos vindo em sua direção, mas o ignora, escuta uma daquelas estranhas máquinas dos brancos à vapor se aproximando em alta velocidade.

Ele ignora, até escutar a doce voz de sua mãe índia ninando-o. Por pouco, não abre os olhos, e, quando pensa que aquilo não vai acabar mais, bate a cabeça no teto baixo e finalmente abre os olhos. Há uma porta de madeira podre, e o índio a abre, atravessando e entrando em um quintal verdejante onde José o espera do outro lado, olhando-o de lado. Há sobre um banco de madeira envelhecida os restos da bruxa, o crânio um pouco mais ao longe, caído no chão.

O imortal balança a cabeça.

Deve ser outra ilusão, pois viu José morrer. O humano está meio de lado, escondido nas sombras, apenas sorrindo. Quando se endireita, virando-se para frente, o índio vê que a metade oculta de seu rosto está descarnada com os ossos aparecendo entre a carne semidevorada.

— Boa noite, Senhor Augusto... Ou devo dizer Saturno? — pergunta com uma voz distorcida.

O índio avança.

— Que bobagem. Você é apenas uma ilusão! — diz consigo mesmo.

— E tu? Nem uma criatura da noite é mais!

O potente soco que o atinge não é ilusão, não estão mais na torre, e o solo é coberto de cascalho, onde Saturno rala o lado do rosto. A dor é intensa, o que é estranho, pois, como vampiro, um pequeno ferimento desse não deveria causar dor alguma, a não ser que fosse produzido por algo benzido ou fogo. Qualquer machucado deveria sarar em questão de segundos. Passando a mão no rosto, vê que sangra muito.

De alguma maneira, a bruxa o tornou humano novamente. Uma luz quente o atinge, e ele olha para o alto. Quando o sol lhe banha em cheio, Saturno fica tão espantado, que não pode evitar um segundo golpe de José, agora um zumbi. O chute acerta no seu estômago, e ele cai próximo do banco onde o cadáver da bruxa está.

O índio fica de joelhos, sem ar, e o zumbi agarra sua cabeça torcendo-a, arranhando-a com as unhas quebradas, e, sendo agora um homem mortal, ele sente muita dor.

Saturno pega com dificuldade sua tocha, acendendo-a com a pederneira. Os restos da bruxa estão próximos. Ele pode até morrer, mas vai levar a maldita consigo.

O pescoço do imortal, agora transformado em humano pela bruxa, estala perigosamente, quando a mão do zumbi o torce, e uma lágrima de dor corre de seus olhos. Suas mãos estão prontas para colocar fogo no cadáver seco.

Com os olhos fixos, José só espera um sinal da velha para matar Saturno. O sorriso sádico se abre em sua boca até as orelhas, em um rosto desfigurado, mostrando o prazer que sente.

Olhando o céu de relance, o índio nota que o sol nasce e se põe ininterruptamente, alternando o dia e a noite em velocidade impressionante de luz e escuridão.

Sente um novo estalo, seu pescoço está prestes a se romper, de repente, num instante surge uma ideia, Saturno sorri e pensa: “Tudo o que nasce, morre.” Quando está quase jogando a tocha para terminar o serviço de satisfazer a vingança dos moradores da vila, ouve a voz da bruxa:

— José, pare. Solte o rapaz.

O zumbi grunhe de raiva e não solta o índio.

— Largue ele agora ou sua alma vai borbulhar nas profundezas desta torre! Sabes que eu tenho esse poder... — ameaça a velha.

O zumbi bate os pés como uma criança raivosa, porém solta Saturno.

O espectro da bruxa se revela, não como está no momento, mas como ela era quando viva. Vem mancando, apoiada em uma bengala, o rosto enrugado e no olho direito uma catarata lhe fecha completamente a visão.

— Ora, ora, rapazinho! — Ri a velha. — Então vai mesmo me queimar? Mesmo após lhe dar o que mais deseja? Sua vida de volta?

Fica parada com as duas mãos apoiadas sobre a bengala sólida. O vampiro, agora humano, ainda tem a tocha apoiada sobre os restos da bruxa. Ele não os vê, mas sabe que estão lá.

— Para mostrar-lhe como sou bondosa, eu ainda farei melhor: sairás daqui e terás Angellina. Tudo o que precisas é levá-la embora daquelas terras, pois todos lá morrerão!

A bruxa aponta o dedo enrugado em direção ao índio.

— Jura? — Saturno começa a retirar a tocha de cima dos restos, hesitante.

— Claro que juro, menino. Vá embora e viva feliz! — guincha o fantasma da bruxa.

Saturno abre um sorriso de canto a canto do rosto, retira a tocha de sobre os restos mortais e se vira para ir ao encontro de seu destino.

O zumbi de José, que anteriormente fora um homem orgulhoso, quase chora de frustração. O jovem indígena dá dois passos e para, lembrando-se das almas presas em agonia neste lugar demoníaco. Ele olha com o canto do olho puxado e a bruxa levanta a cabeça, curiosa.

O zumbi fecha o punho, cheio de ódio incontido, o olho de Saturno brilha levemente e seu punhal brilha fora da bainha.

— Se eu fosse tu, não faria isto... — diz a bruxa, ansiosa.

A ilusão em volta do jovem rapaz se desfaz. Está em um aposento arredondado com uma única janela, no alto da torre. O zumbi não espera a ordem, atacando muito rápido, o índio passa velozmente por ele. Seu punhal brilha dentro da escuridão, cortando a cabeça do morto-vivo, que vai ao chão, e, mesmo com o crânio no solo grunhindo de raiva, o corpo do zumbi continua correndo até bater na parede suja. O cadáver seco da bruxa está a poucos metros à frente, Saturno atira a tocha de qualquer jeito naquela direção.

Ele erra, e a tocha cai alguns passos antes do lugar onde está o esqueleto.

— Merda!

— Pare! Ou vou te transformar em sanguessuga novamente! — berra a voz espectral.

Saturno pensa por um instante e chuta a tocha, que acerta os restos da bruxa, incendiando-a de imediato. Os ossos acendem como gravetos secos, o fantasma da bruxa começa a ficar distorcido, gritando de um jeito assustador.

— Aaaaaaahhhhhhhhhhhhh! Vampiro, tu és! – grita e conjura a velha bruxa.

Em instantes, o imortal sente os seus caninos voltarem a crescer, e o rosto para de sangrar. Pouco mais adiante, próximo à janela, está o crânio da bruxa. Saturno o pega com as mãos, sentindo a força maligna daquela peça macabra, vai esmagar o crânio, quando ouve passos vindo por trás dele. Vira-se, mas é tarde demais, o zumbi José vem a toda velocidade, com a cabeça rindo loucamente debaixo do braço. O ser da escuridão leva um esbarrão, e os dois acabam caindo pela janela sem vidros por dezoito longos metros.

O crânio da bruxa salta de suas mãos, cai longe da torre e o vampiro desaba no chão como uma pedra, quebrando várias costelas, que logo se recompõem.

No solo, continua sua luta com o zumbi, que, mesmo sem cabeça, parece vê-lo. Saturno nota que, no cinturão do zumbi, há ainda um par de armas carregadas. Retira uma, atirando contra o barril carregado de pólvora na base da torre.

O zumbi puxa o índio pelo braço, e este erra por milímetros. A cabeça de José solta do corpo diz algo, provocando-o. No calor da luta, o imortal não escuta. Com um forte chute, lança para longe o incômodo. O nariz de José afunda para dentro do crânio que rola para junto da torre amaldiçoada.

Sacando a outra pistola, o imortal empurra o corpo abobalhado e atira. O tiro certeiro atinge o risco de pólvora no chão e o pó é consumido velozmente, terminando em uma grande explosão. O primeiro barril, ao explodir danifica a estrutura da construção, a torre começa a desabar logo na segunda explosão, e o índio vibra enquanto a cabeça solta do zumbi grita. Porém, quando o terceiro barril explode, a queda da torre muda de lado, indo para cima do espantado índio.

— Ah, merda!

Mesmo correndo em alta velocidade vampírica, é alcançado por algumas toneladas de pedra bruta.

Alguns minutos de silêncio permeiam o ambiente depois do enorme estrondo.

— Hahahahahahahahahahahahahahahahaha! — Uma rouca risada ecoa.

O crânio da bruxa escapara ao desabamento.

— Ora, ora. Então o vampirinho não conseguiu me acertar... — caçoa ela, satisfeita.

Um pequeno tremor sacode o lugar onde esteve a torre. Um assobio maligno atravessa o ar e todas as almas presas no lugar começam a lamentar em agonia. As pedras que formam a base da torre voam às alturas em um estrondo assustador, quando uma mão negra feita de trevas e morte, emerge do chão seguida por uma cabeça gigantesca que o encara com o único olho inteiro de sua face maligna. No outro lado, é apenas uma caverna fumegante. A criatura abre os pulmões e solta um urro demoníaco, livre após tantos milênios do mundo inferior.

— Oh! Acordamos você? Venha, ó, meu Senhor Belial, e devaste estas terras! E que alguém o detenha se tiver o poder e a coragem! — grita a bruxa.

Saturno joga para cima toneladas de entulho que estavam sobre ele. Já ouviu demais e está furioso. Ele foi enganado e usado pela bruxa para libertar um poderoso demônio, e o pior é que, apesar da fúria extrema que o consome, não tem ideia do que fazer.

— Ah, és tu, sanguessuga? — pergunta a bruxa em tom de sarcasmo.

— Sua desgraçada! O que fez?

Ela faz um movimento de meio-círculo com sua mão fantasma.

— Estás dispensado agora, rapazinho.

O segundo punho feito de escuridão do faminto demônio sai do chão, e ele começa a forçar o corpo para cima.

“Se tivesse mais barris de pólvora...” — pensa o imortal por alguns instantes.

De relance, vê a cruz tombada, semissoterrada, e lembra do que disse o povo amaldiçoado do lugar: a cruz vai derrotar a bruxa e talvez mande o demônio de volta. Mas e ele? Não será também destruído? Afinal, é igualmente um ser amaldiçoado. O vampiro para por alguns instantes, o crânio da bruxa ri mais alto, vendo a incapacidade do índio em tomar alguma decisão. A risada se apaga de repente, quando vê o jovem correr em direção à cruz caída. O ser noturno fecha os olhos, respira fundo e pega a peça. Suas mãos se incendeiam em um fogo azulado. Uma dor intensa percorre seu corpo todo, mas ele não desiste, tem de continuar até o fim.

— Pare, estúpido! — grita o crânio da bruxa em pânico.

O vampiro corre até a caveira, e, dos escombros da torre, o imenso demônio começa a sair. A aparência maléfica dele é indescritível. Mesmo sendo inumano, o imortal sente seu sangue gelar de medo à visão dele.

— SSSSSSSATURNO! — murmura o ser infernal em sua gutural voz milenar.

As mãos do vampiro estão em carne viva, consumidas pelo fogo sagrado, ele levanta bem a cruz, apontando para o crânio da bruxa morta.

— Não! Não! Ó, Senhor da Escuridão, proteja-me...!

Crack!

O grito da bruxa é interrompido pela cruz que despedaça o último elo dela com o mundo dos vivos.

Saturno larga a peça de metal, e, enquanto as suas mãos ainda pegam fogo, a cruz começa a soltar uma luz cegante que parece preencher todo seu corpo, mesmo quando ele tenta cobrir os olhos com a capa preta.

O imortal corre, afastando-se o máximo possível daquele lugar, quando escuta um barulho arrepiante de sucção. Os destroços da torre e tudo que há à sua volta, são sugados para dentro do buraco onde está o demônio Belial. A magia da bruxa era a ponte de transporte do ser infernal para o nosso mundo, e, com sua destruição física, esse elo é rompido.

A força mística da cruz empurra o demônio para as profundezas de onde havia saído, mas o ser infernal se agarra fortemente ao nosso mundo.

Os poucos zumbis inteiros começam a ser sugados, voando pelos ares rumo à cratera, as almas condenadas passam zunindo ao seu lado, gritando fortemente, e o vampiro índio sente o próprio corpo sendo atraído. Ele entra em desespero, tentando se agarrar a um fino arbusto que se quebra imediatamente. Em seguida, segura-se em uma árvore mais grossa, onde consegue se firmar e vê uma enxurrada de zumbis e almas penadas passando por ele.

Um forte tranco em sua perna esquerda quase faz com que voe pelos ares. Olha para trás com certa dificuldade e se espanta quando olha o zumbi que um dia fora José, agarrado com firmeza à sua bota esquerda, enquanto, com a mão direita, o zumbi segura a própria cabeça queimada e amassada.

— Dão fai escafar a pinha fingança, Saturdo! — grita o zumbi José, estranhamente fanho por conta do nariz esmagado.

A árvore começa a envergar, a raiz enfraquecida saindo lentamente para fora do solo. Dobrando o corpo, o imortal bate o zumbi contra o chão uma, duas, três vezes, e logo a cabeça de José salta rumo ao buraco.

— Dããããããooooo! — grita ele, sugado pela cratera no chão.

Apesar de estar sem cabeça, o zumbi não larga o vampiro. Saturno, então, se lembra que pode alterar a própria forma. Concentra-se e começa a diminuir o tamanho de seu pé, até um ponto em que a bota escorrega e o corpo do morto voa pelos ares, levando a bela bota consigo.

É tarde demais, o tronco da árvore rola com Saturno agarrado a ela. A raiz apodrecida não aguentou o peso, e o vampiro começa a ser sugado pelo buraco.

Desesperado, aproxima-se mais e mais da criatura infernal, e o demônio caolho sorri com grotesca satisfação, pois terá a quem torturar indefinidamente por sua derrota, e, há cem metros do buraco, o tronco da árvore emperra, travando entre dois destroços.

O impacto é tão forte, que a mão esquerda do imortal se solta. Mesmo quando tenta se esquivar das pedras maiores que voam, é constantemente acertado de todos os lados por destroços menores.

Ouve algo se arrastando por trás de si e se vira, apreensivo, para olhar. O demônio abre a boca e solta um cheiro podre. A língua é enorme, negra e gosmenta, e vem como uma serpente pelo solo, em sua direção, Saturno olha em volta, procurando algo com que possa se defender.

Encontra seu punhal bem próximo, preso sob um imenso bloco de pedra. Com a mão livre, ele tenta puxar a arma, quando sente a língua do ser infernal tocar seu pé descalço. Depois começa a enrolar na perna do índio, puxando-o para trás. Com a pressão extra, o galho enverga e estala quase a ponto de se partir. O imortal, afinal, consegue arrancar debaixo da rocha o punhal afiado. Puxa-o pela lâmina e atira imediatamente com toda sua força em direção ao rosto do demônio.

Sortudo!

Acerta o único olho vermelho do ser infernal, e este vaza como um enorme ovo podre. Ferido, Belial berra, e toda a terra treme com seu urro. Ele solta uma das enormes mãos, cobrindo o rosto, e é imediatamente sugado para o fundo da cratera fervente. Grita de fúria, e ainda derruba tudo à sua volta com a mão negra enorme. A língua solta a perna do jovem vampiro, mas é tarde demais, pois o galho se quebra e Saturno rola, e ele é sugado pelo buraco. Tenta se segurar em diversos lugares, porém não consegue se firmar. Agarra-se à borda da cratera, com o corpo sendo violentamente puxado para o fundo. As suas garras fiadas se cravam no chão com força, só que os seus dedos começam a escorregar lentamente pela borda do profundo buraco que chega até o início do Inferno.

Após alguns segundos que pareceram eternos, tudo fica silencioso. Espantado ao perceber que seu corpo deixa de ser sugado, Saturno fica imóvel, seguro pela ponta dos dedos, completamente imóvel por não acreditar que tudo terminou. Um raio de luz azulada começa a subir de dentro do buraco engrossando aos poucos, e, aliviado, o índio se senta próximo à borda da cratera, vendo o espetáculo onde milhares de almas livres de sua prisão sobem aos céus, felizes. E ele pode escutar, do ponto mais profundo do buraco, os gritos doloridos dos condenados ao tormento eterno, e, após a última das almas libertadas subir aos céus, o chão se fecha lentamente, selando para toda a eternidade os condenados.

O vampiro se levanta, vira as costas e vai para longe desse lugar maldito. Sob a luz da lua cheia, volta para encontrar sua prometida, Angelline. Anda longas horas pela floresta fechada noite adentro. Não teme a escuridão, sabe que nada que possa existir nessa floresta o incomodará, e chega à vila quando faltam poucas horas para o amanhecer. Escuta os cânticos fúnebres ao longe.

“Esta vai ser a última vítima da maldição” — pensa, feliz.

O líder da vila vem em sua direção.

— Senhor Augusto... achamos que não voltaria...

O velho observa com olhos atentos as roupas rasgadas e as mãos queimadas de Saturno.

— Onde está Angelline?

Um olhar estranho brota no rosto do homem.

— E José? Onde está ele? — Quer saber o líder.

— Está morto. Agora, onde está Angelline?

O imortal começa a ficar nervoso, e novamente recebe o olhar estranho.

— E a bruxa? Vocês destruíram a bruxaaaaaa?

O vampiro está furioso agora, pega o velho pelas golas da camisa e o levanta para o alto.

— Eu quero saber agora, onde está Angelline ou eu arranco suas tripas! — grita, irritado.

— Ela... Ela morreu — afirma o senhor, muito assustado.

Larga-o. Seu estômago parece ter dado um nó. Ele vai andando em direção à casa onde a moça está sendo velada, dentro de um caixão cheio de pequenas flores amarelas cujo nome desconhece. Olha para o rosto pálido da garota por quem se apaixonou, seus olhos fechados para sempre. Todos param de rezar e olham para o vampiro com certa piedade, enquanto este se curva e beija levemente os lábios mortos dela, levantando em seguida. Se pudesse, ele derramaria um rio de lágrimas por ela, mas apenas vira e vai embora.

Poucos minutos depois, o sol nasce, e Augusto, como se lembrarão dele para sempre, nunca mais foi visto por aquelas paragens da Vila da Concórdia, até os dias atuais, quando a chamam de Suzano.

Humberto Lima
Enviado por Humberto Lima em 28/06/2007
Reeditado em 29/08/2020
Código do texto: T544853
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