LUA CLARA - DTRL 25
LUA CLARA - DTRL 25
Jéssica foi criada por seus avós em um sítio no interior de São Paulo e os considera como pais. Sua mãe, solteira, mora na capital e quase não tem contato com a filha, embora sua relação com ela seja boa.
Quando criança, Jéssica esperava ansiosa pelas férias de dezembro e janeiro, período em que seu primo saía do Sul Catarinense para passar alguns dias com os avós e brincar com ela.
Jéssica e Rafael têm a mesma idade e sempre foram muito amigos: corriam juntos pelo sítio, andavam a cavalo, chupavam manga retirada do pé, nadavam no córrego perto dos cafezais... conforme as crianças cresceram, o encontro do final de ano ficou cada vez mais esperado, principalmente depois da última despedida deles no aeroporto, quando Jéssica roubou um beijo de Rafael.
Receosa pelo que fez, este ano não foi ao aeroporto com os avós para buscar Rafael. Quando chegaram em casa, tentou olhar para o primo com naturalidade.
— Oi, primo.
— Oi, prima! — Rafael depositou as malas no chão e correu para dar um grande abraço em Jéssica. — Estava morrendo de saudades! — Sussurrou no ouvido da garota, o que fez os olhos dela brilharem.
Por dois dias, eles se paqueraram e trocaram olhares sedutores na ausência dos avós. Em um dia de lua cheia, quando ela estava tão clara que a noite mais parecia dia, Jéssica convidou o primo para um piquenique nos cafezais de seu avô. Alegou que seria um encontro para contarem como foi o ano de ambos e também para narrarem histórias de terror, como faziam quando crianças, mas deveria ser escondido para que seus avós não proibissem. Rafael topou e disse que iria na frente preparar o ambiente e fazer uma pequena fogueira.
Conforme combinado, à meia noite e meia Jéssica pegou sua cestinha com os sanduíches, sucos, frutas, refrigerante e, de última hora, decidiu colocar também uma garrafa de vodka. Ela estava ansiosa e temerosa ao mesmo tempo. Desde que se lembra do mundo, seus avós a proíbem de sair em noite de lua cheia, pois dizem que os maus espíritos se aproveitam da confiança das pessoas na claridade para fazerem suas vítimas. Mas ela nunca acreditou nestas histórias.
Cuidadosamente, atravessou o portão de madeira e emergiu estrada adentro, calafrios percorrendo sua espinha cada vez que uma coruja piava perto de si, nos galhos das enormes árvores do caminho. Dez minutos de caminhada e ela avistou o cafezal. O tempo mudara rapidamente: a lua já não estava tão clara como antes, coberta pelas nuvens que anunciavam uma forte chuva. O vento soprou frio e Jéssica apertou contra si o casaco que vestia.
Quanto mais a garota se aproximava do seu destino, maior era a sensação de perseguição: constantemente, olhou para os lados e para trás; várias vezes jurou ter visto uma sombra se mover rapidamente atrás de si, mas repetia que aquilo era apenas sua adrenalina se manifestando.
— Jéssica? Pensei que não viria mais!
— Desculpe-me, primo. O caminho é meio longo e também esperei para ter certeza de que nossos avós estão em sono profundo.
Rafael estreitou os olhos e não disse mais nada. Apenas correu ao encontro da prima e a beijou com ferocidade.
A cesta que a garota tinha nas mãos caiu ao chão, e Rafael deitou Jéssica no pano xadrez de piquenique estendido no solo.
Os dois jovens entregaram-se à paixão.
No ápice do amor, onde loucura, fantasia e realidade se misturam, um grito pavoroso ecoou por todo o sítio, arrancando calafrios dos jovens apaixonados.
Deitados de costas, olhando o céu com relâmpagos e trovões, foi Rafael quem quebrou o silêncio.
— Você ouviu aquilo?
Ela sentou-se rapidamente.
— Você também ouviu? Pensei que fosse apenas minha imaginação! — Assustada, a jovem se vestiu.
— Ei! Foi apenas um animal. Provavelmente uma presa trucidada.
— Eu não sei, Rafael. Vó Lena sempre disse para não sair em noite de lua clara, e...
Novamente ouviram outro grito, ainda mais triste e agudo que o anterior.
Rafael também se vestiu e abraçou a prima.
— Não tenha medo, Jéssica. Algum predador deve estar caçando e fazendo suas vítimas. Ele já, já irá embora, assim que saciar sua fome.
— E se vier atrás da gente?!
— Não virá. Vamos aproveitar nossa noite, tá bom?
Enquanto os jovens se beijavam, os pés de café perto deles balançaram.
Jéssica deu um pulo para o lado, com suas pernas e mãos trêmulas.
— Não falei, Rafael? — Sussurrou a garota, amedrontada.
Rafael foi até a cesta e pegou a faca que Jéssica havia colocado.
Um cheiro podre, muito ruim, invadiu todo o ambiente, causando náuseas nos jovens. A garota tapou o nariz e se aproximou do rapaz.
— O que pode ser isso, primo?
— Eu não sei.
Um som parecido com um gemido foi ouvido e logo outro pé de café balançou.
— Rafa, vamos embora daqui! Agora!
— Se a gente correr, ele atacará. Fique parada e calada. Tome. Segure esta faca em posição de ataque.
— Aonde você vai? Não me deixe!
— Calma! Só vou pegar uma tocha da fogueira. Seja lá qual for, animal sempre tem medo de fogo.
O cheiro podre estava cada vez mais forte e mais perto.
Enquanto Rafael buscou a tocha de fogo, a criatura passou correndo na frente de Jéssica várias vezes, enquanto ela continuava a segurar a faca com as mãos frias e trêmulas.
— Rafael!
Quando a garota gritou, a criatura peluda – de mais ou menos um metro e sessenta, com pés de cabra, pernas curvadas, braços e mãos humanas, mas com garras grandes e afiadas, cabeça oval com orifícios abertos no lugar de orelhas e nariz, quatro pares de chifres, sendo um deles enrolado para trás, como de bode, e outro grande e pontiagudo; rabo comprido e fino como uma serpente – parou a sua frente e soltou um grito que pareceu mais um urro de urso: escancarou sua boca fétida, que lembrava um sanguessuga com vários dentes pequenos e afiados, uma língua de duas cabeças que se movia rápido em meio a saliva grudenta e esverdeada.
Jéssica paralisou diante da criatura horrenda como se estivesse em um sonho. Rafael correu e lançou a tocha para o monstro, que a mastigou e a cuspiu para o lado. A criatura se bandeou para o lado de Rafael, que puxou a mão da prima e correu para o meio do cafezal. Agacharam-se no meio de um arbusto e o jovem colocou a mão sobre os lábios, indicando silêncio. A garota assentiu com a cabeça, enquanto lágrimas de pavor escorriam por seu rosto.
Cochichou no ouvido do primo:
— Eu conheço uma caverna por aqui. É um pequeno buraco, mas, talvez, dê para gente esperar amanhecer.
Rafael concordou e pegou a faca das mãos da garota.
— Você vai na frente para me conduzir.
— Ok.
Eles olharam para os lados e, sem enxergar qualquer sinal do monstro, correram agachados em meio aos pés de café.
— Ah! Meu Deus! Aquele cheiro horrível de novo!
— Corra, Jéssica! Ele está se aproximando!
Os jovens correram o mais rápido que puderam, mas a criatura alcançou-os e cravou suas garras no ombro de Rafael, que caiu ajoelhado.
A jovem gritou, mas foi repreendida por seu companheiro:
— Cale a boca e corra!
Rafael gemia de dor, porém segurou firmemente na faca e fincou-a na mão do monstrengo, que o largou, soltando um grande urro.
Com a mão no ombro esquerdo encharcado de sangue, correu para encontrar a prima, contudo, perdeu-a de vista. Agachou-se novamente e observou.
— Psiu! Psiu!
— Jéssica?
Por mais que Rafael olhasse, ele não via a garota, até que uma pequena pedra acertou a testa do rapaz e ele finalmente olhou na direção correta.
A garota estava encolhida em um buraco na entrada de um matagal que dá acesso ao córrego onde brincavam quando criança. Rafael, cautelosamente, se aproximou.
— Jéssica, eu não posso entrar aí. Primeiro: eu sou grande demais para esse buraco; ele é muito estreito. Segundo: estou ferido, cheirando a sangue; rapidamente ele nos encontrará.
— Então, o que faremos, Rafa? Que bicho é aquele? Vivi minha vida inteira neste sítio e nunca vi nada igual!
— Creio que aquilo seja um chupa-cabra.
— Mas isso não existe! — Espantou-se com a resposta do primo.
— Enquanto corria dele, passei por dois animais mortos no caminho, com os olhos arregalados pelo terror e sua carcaça totalmente seca, como se tivessem sido sugadas. Só pode ser o chupa-cabra!
— Pior ainda! Eu não vou deixá-lo aí fora sozinho. Gosto muito de você!
Rafael beijou a prima.
—Também adoro você, e por isso quero que saia daqui e volte para o sítio. Conte ao nosso avô o que aconteceu, enquanto eu distraio a criatura.
— Mas, Rafa! Como?!
— Mas nada! Espere até ouvir meu grito, para que saiba que ele não está perto, e corra! Sem olhar para trás, está me ouvindo? — Rafael foi firme e severo.
Mesmo apavorada, sabia que seria sua única alternativa para se salvar e buscar socorro para ele.
— Tome cuidado! Vou buscar o vovô para te ajudar. Tome. Enrole meu casaco no seu ombro para estancar o sangue.
Rafael a olhou pela última vez e correu.
Assim que gritou, Jéssica correu em direção contrária ao cafezal, rumo à casa de seus avós.
Rafael conseguiu, com isso, a atenção da criatura, que não tardou em se aproximar. Entrou pela mata tentando se desvencilhar das aranhas e cobras pelo caminho. O céu estava cada vez mais barulhento, anunciando um grande temporal. Sentiu novamente o cheiro forte de ovo podre, o que indicou que o chupa-cabra estava por perto. Podia até escutar seu grunhido, que mais parecia o de uma onça rouca.
Vagarosamente, o rapaz passou pela mata fechada e saiu na praia do córrego. Ele conhecia bem aquele lugar, o que contou um ponto em seu favor. A escuridão ficava cada vez maior, de modo que ele já não conseguia ver muito longe. Sentou-se próximo a algumas plantas próprias da beira do córrego para tentar se camuflar e começou a orar.
Mas aquela criatura estava cada vez mais perto, e parecia se aproximar lentamente somente para causar mais temor no rapaz. Sua respiração acelerada parecia alimentar a fome dela, que se divertia ao perceber o cheiro de medo exalar de Rafael.
O chupa-cabra passou correndo várias vezes a sua frente só para vê-lo apavorado, e assim que ele saiu para a praia, a criatura parou em frente a ele e escancarou sua enorme boca nojenta. Rafael jogou as duas mãos cheias de areia em seus olhos vermelhos. A criatura urrou e balançou os braços rapidamente, de forma que o acertou e o arremessou ao longe. Ele se levantou meio zonzo e não teve outra alternativa senão correr. Pulou dentro do córrego e atravessou a nado o outro lado. A criatura parou na beira da água, utilizando-se dela para lavar os olhos. Enquanto isso, Rafael ganhou tempo e tentou voltar para casa, onde Jéssica já deveria estar.
Percebeu que a criatura, em vez de pular no córrego, trilhou outro caminho. Concluiu que, talvez, não soubesse nadar.
Aproximando-se da casa – àquela altura, podia vê-la – Foi empurrado pelas costas e lançado ao chão.
Aquele cheiro... aquele rugido.
"É o meu fim!" - Pensou.
Virou-se e, ainda sentado, arrastou-se para longe do chupa-cabra, que parecia sorrir e zombar dele. Encostou-se a um barranco; estava encurralado, sem saída.
Um raio pode ser visto, e um enorme trovão, ouvido. O bicho se aproximou lentamente, de novo com a boca escancarada. Rafael lançou-lhe pedras, mas ele as cuspiu, cheias de goma verde grudenta. Agarrou-o pelos braços e o ergueu. Rafael era maior que aquele ser estranho, mas não possuía a metade de sua força. O chupa-cabra cravou seus dentes afiados no pescoço do rapaz, sugando-o e deliciando-se com seu sangue.
De repente, sentiu projéteis entrando em suas costas, perfurando sua carne uma, duas, três vezes. Contudo, o êxtase causado pelo sabor do sangue humano não o deixava se mover, e cada vez ele sugava mais rápido.
Jéssica correu e cravou a faca no pescoço dele, que atirou Rafael ao chão. Joel, avô dos jovens, tentou atirar no bicho novamente, porém teve sua espingarda arrancada de suas mãos e lançada ao longe. Jéssica foi correndo ver como estava o ferido, mas a criatura a chicoteou com seu rabo de cobra e, ao bater a cabeça no solo, caiu desacordada.
O monstro arrancou a faca do pescoço, atirou-a ao chão e se virou para Joel caminhando lentamente, encarando-o, desafiando-o e apavorando-o. Agarrou o velho pela cintura e o prendeu entre suas pernas. Com dois solavancos, arrancou seus braços para que ficasse quieto; os gritos de Joel foram terríveis e agudos. O bicho cravou sua boca no pescoço do homem, arrancou um pedaço enorme e o engoliu inteiro. Depois, sugou aquele ferimento com toda sua ferocidade, até que o velho deixou de esboçar reações e desfaleceu nas mãos de seu algoz.
Jéssica acertou uma bala bem no orifício onde seria o ouvido do chupa-cabra, de forma que deixou o corpo de Joel cair junto dos braços arrancados. Com uma gosma verde saindo pelo nariz, o terrível ser se virou a jovem e caminhou trêmulo em sua direção. Ela atirou mais duas vezes e acertou a face do bicho, que caiu aos seus pés. Ainda soltou o último urro que arrepiou os pelos do corpo da garota. Ela caiu ajoelhada, aos prantos.
— Jéssica?!
— Rafael?
Correu para vê-lo. A chuva caía, fria, impetuosa, lavando sangue, gosma verde, e temor.
Rafael, lentamente, abriu os olhos e sorriu para Jéssica.
Uma caminhonete se aproximou no momento.
Uma senhora de cabelos brancos desceu do automóvel e olhou toda aquela cena, aterrorizada.
— Eu avisei a vocês para não saírem em noite de lua clara! — Disse, entre lágrimas.
— Vovó, precisamos levá-lo ao hospital.
Helena e a neta colocaram o rapaz e os restos mortais de Joel na caminhonete e seguiram viagem.
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Depois do sepultamento do avô, os primos conversaram sobre o ocorrido.
— O que vocês farão agora, Jéssica? Por que não vem viver conosco em Santa Catarina?
— Não, Rafael. Vovó e eu continuaremos a cuidar do cafezal que vovô tanto amava.
— E o chupa-cabra?! E se existirem outros iguais a ele por aí?
— Isso nunca saberemos, pois não vamos mais sair em noite de lua clara, assim como nunca saberemos ao certo se aquilo era mesmo um chupa-cabra.
— Shiii! Fale baixo, Jéssica! Lembra-se do que aconteceu quando vovó disse aos policiais que um desses atacou o vovô? Eles quiseram levá-la ao hospício! É bem mais fácil e barato para as autoridades ignorá-la do que procurar e enfrentar a criatura. Eu bem que voltei ao local, porém não encontrei o corpo do bicho. Ficou noticiado como um ataque de lobo e não se falou mais nisso.
— Ok, Rafael. É por isso que, enquanto não se vê com os próprios olhos e sente aquele horrível cheiro, não se acredita nele. Mas, cuidado: em noite de lua clara ele pode estar em qualquer lugar esperando por algum incrédulo desatento.
[ tema: Criaturas Fantásticas ]
V. HONORATO