O ritual da inspiração - DTRL25

Éramos quatro em torno da mesa, os únicos ali. Noite. Palrávamos e gargalhávamos efusivamente, enquanto o taverneiro cochilava no balcão, alheio ao nosso burburinho, apoiando o queixo numa das mãos.

Ao meu lado, à esquerda, Hélio apontava alguma coisa no jornal com bastante convicção.

— São os bancos, Damião, são os malditos bancos!

Damião o contradisse, mas foi infrutífero.

— Tu és um ignorante, Damião. Permaneças na literatura, que é o que sabes fazer.

Damião era um pretenso poeta, com ares de parnasiano. Ali, tomado por uma completa ebriez, era o que menos falava. Há uns dois anos publicara um pequeno livro que não foi de agrado geral. Era conhecedor das rimas, mantinha uma métrica rigorosa nos versos, porém era uma literatura insípida. Estava sentado ao lado de Honório, que por sua vez estava do meu lado direito.

Aquela simples taverna ainda não havia aderido à nova moda da iluminação elétrica, presente em vários pontos da cidade do Rio. Havia algumas velas presas na madeira da mesa e alguns lumes à base de óleo sobre o balcão. Mas possuíamos luz suficiente para o exercício da leitura, então Damião recitou alguns dos seus maus poemas, o que nos fez calar por alguns instantes. Após terminar, voltamos ao nosso colóquio, um tanto aliviados.

O repertório de assuntos edificantes já estava se esgotando e nós, doutos cavalheiros, não poderíamos nos ater a assuntos frívolos. Porém já não mais suportávamos falar de literatura, economia ou política. Um silêncio pairou sobre nós durante alguns segundos.

Durante esse breve período de tempo, eu olhei para um braço de Honório e encontrei um tema que poderia suscitar uma conversa um tanto quanto instigante.

— Honório, há tempos eu noto esta cicatriz no dorso da tua mão — levantei-a pelo punho e expus a cicatriz para os demais — Por que não nos conta de onde e quando ela provém?

Ele manteve-se em silêncio por algum tempo, fitando a chama bruxeleante de uma vela, e então começou a falar.

— Este é um assunto do qual não me apetece confidenciar com outros — disse, polindo os vidros do pincenê com um lenço —, é algo que muito me atormentou e ainda me é motivo para pesadelos — e então encaixou o pincenê sobre o nariz.

Esta última colocação me deixou ainda mais instigado e os demais igualmente curiosos, inclusive Damião, que ergueu seus olhos lânguidos e mirou-os na direção de Honório. Este último era o mais velho de nós quatro. De meia idade, ostentando um farto bigode, grisalho assim como os cabelos, exercia a profissão de jornalista e já havia escrito versos magníficos em seus tempos áureos. Corpulento e robusto, mantinha, entretanto, modos delicados e seu coração era a pura gentileza. A má vontade com que se referiu à cicatriz foi um espanto para mim, que já o conhecia com alguma profundidade. Acontece que naquela época eu estava iniciando a minha carreira no jornalismo, e Honório me considerava seu aprendiz.

Todos continuavam em silêncio, fitando-o.

— Qual, Honório! — disse Hélio — Tu sabes que estamos entre amigos, não? Diga, diga, não se acanhe!

Honório suspirou. Com efeito, aquele assunto o deixava bem desconfortável. A cicatriz, que ele escondia com a outra mão, consistia de um ferimento que, quando sofrido, fora bem profundo. O rasgo começava do meio do dorso da mão direita e subia pelo pulso até não sei onde, pois o resto estava recôndito pela manga do paletó. O curioso era que ao longo da cicatriz pequenos cortes retos, na horizontal, talvez de um centímetro ou menos, se sobrepunham a ela e enfileiravam-se um ao lado do outro, bem juntos. Estes traços miúdos não eram marcas de sutura, eram também, como disse, cortes.

— Tudo bem, cavalheiros, vós me convenceis... — o resto do grupo comemorou em silêncio — Mas saibais que faço isso mais pelo meu aprendiz, o Jorge, que, na ocasião de minha morte, pois não desejo exposição deste fato enquanto pisar sobre esta terra, pode transformar meu relato numa bela crônica.

(A qual eu já redigi e causou enorme reboliço na época em que foi publicada)

Silenciamos todos e demos toda a nossa atenção ao relato de Honório.

— Senhores — ele iniciou —, para que tenham plena compreensão dos porquês desta misteriosa marca em meu corpo, é mister que eu retorne para alguns dias antes do aparecimento dela — tossiu e ajeitou o pincenê — O ano era 1889, o dia, cavalheiros, dezesseis de novembro. O início da República deixou a imprensa a todo vapor. Saíamos à rua, redigíamos matérias em profusão... era uma labuta das maiores! Naquele dia eu voltava da redação, já era quase meia noite, não passava bonde, então optei por uma erma rua que me proporcionava um caminho mais curto.

Pedi mais vinho ao taverneiro, que acordou num sobressalto.

— Ia pela rua deserta, o céu era brumoso e a noite estava um tanto fria — o taverneiro apareceu com o vinho e Honório bebericou certa dose — Deu-se que na primeira esquina, correspondente a uma antiga mercearia que hoje já não há, notei uma luz bem curiosa. Caminhei um pouco mais e parei há alguns metros, no meio da rua. Tratava-se de um tecido negro e retangular estendido na calçada — sobre a mesa, com os dois indicadores, Honório demarcou as proporções do tecido —, com um círculo desenhado a giz, no centro. Em cada lado do pano havia uma vela de material rubro, não era parafina, o qual exalava o odor um tanto pungente quando derretia, como enxofre ou algo parecido.

Notei que o taverneiro também estava atento às falas do meu amigo.

— Tal fumaça me causou alguma náusea, porém eu cheguei mais perto. Aquele ainda era o tempo dos lampiões, meus caros, mas o poste ali perto estava com o lampião apagado. Eu já estava diante daquele estranho arranjo de objetos. O cheiro oriundo das velas embrulhava-me o estômago, era como se fossem fitas de cadáveres ou qualquer coisa já putrefata. Não obstante tais adversidades, aproximei o rosto e examinei aquele círculo — Honório pegou um copo e mostrou-nos — Vejam, cavalheiros, o círculo possuía diâmetro um pouco maior do que a boca desse copo — pousou-o delicadamente sobre a mesa e prosseguiu — Mas era impossível continuar expondo as narinas àquele cheiro nauseabundo, por isso afastei-me alguns metros, mas ainda de olhos pregados naquilo. Já me preparava para continuar a caminhada quando, ao olhar para o caminho em frente, vislumbrei um homem parado, trajando roupas negras e maltrapilhas, encobertas por um sobretudo em estado não muito mais adequado. Ele ostentava, porém, um impecável lenço escarlate amarrado em seu pescoço, que pendia ao longo de seu tronco.

Hélio esfregava-se de espanto e curiosidade, mantendo sempre o copo de vinho consigo.

— Meus senhores, aquele homem dava arrepios! Virei o rosto para o lado, um rato guinchava e corria ao longo da sarjeta, meus pés, entretanto, não se moviam; e então voltei os olhos para aquela medonha direção: o diabo do homem ainda estava lá. O medo que me dominava estava prestes a me fazer fugir dali, mas meu espírito de jornalista impeliu-me a investigar aquele estranho mais a fundo. Caminhei lentamente em sua direção, com o olfato sendo castigado por aquelas velas; ele também fazia o mesmo, andava em direção a mim.

Pedi que o taverneiro cerrasse as janelas, pois uma forte corrente de ar invadia o recinto. Após eu ter meu desejo atendido, meu amigo seguiu com a narração.

— Deixei que ele tomasse a palavra, então proferiu: “Noto que tu ficaste perplexo diante de objetos tais” ele apontou para as velas e o pano “Mas saibas que posso realizar qualquer desejo que tiveres, basta que aquiesças aos meus mandos”. Não botava fé nas palavras do homem, mas interessava-me por ele, pois aquilo poderia render uma boa matéria. Como bom jornalista que era, bem mais moço e aventureiro, resolvi entrar no jogo do estranho. Ele indagou-me desse modo: “O que mais desejas, meu jovem?” Refleti um pouco e então respondi à pergunta — Honório jogou o largo tronco contra o recosto da cadeira e avisou-nos — Antes de revelar qual foi o meu pedido, cavalheiros, saibais que tal ato envergonha-me até hoje, e estou cônscio de que ele arruinar-me-á a excelsa carreira de poeta assim que for publicado, pois minha carreira foi, como narrarei a seguir, construída com base em magia negra.

Ouvindo estas últimas palavras, com as mãos trêmulas Hélio largou o copo sobre a mesa, acendeu o cachimbo e pôs-se a fumar.

— O que pedi — Honório prosseguiu —, mesmo descrente do poder daquele homem, foi que eu desejava ser um grande poeta. Ele ouviu e balançou afirmativamente a cabeça, dizendo: “Teu pedido há de ser realizado, querido mancebo, mas é mister que sigas às ordens que lhe darei. Estás de acordo?” Eu respondi que sim. Então me disse: “É preciso que colhas um pouco do sangue d’algum vate que admires e que tu queiras ser equivalente” Disse que o faria e ele prosseguiu: “Traz tal substância para cá a esta mesma hora, e então o espírito de Ghoght realizará o que tanto anseias, sem nenhum preço a cobrar”.

— Espírito de quem? — interrompeu Damião.

— Ghoght, Damião, espírito de Ghoght. Suplico-vos que não profirais este nome, pois tal alma espreita-me a todo o tempo, esgueira-se junto à minha sombra e pode também arruinar vossas vidas — Honório disse isso com extrema severidade, não parecia troça — O estranho caminhou para trás e desapareceu na escuridão atrás de si. Os dias que se seguiram foram de muita reflexão. Deveria prosseguiu naquilo? E quanto ao poeta, de qual poeta deveria tirar o sangue? E como colher o sangue desse vate? Passou-me pela cabeça homens como Machado de Assis e Olavo Bilac, mas seria deveras laborioso conseguir o sangue de tais gênios. Optei então por alguém mais próximo de mim, um vate menos pomposo, mas igualmente genial. Refiro-me a Ramos Corrêa, homem pobre, mas que possuía grande habilidade no versejar. Certa feita, caminhando pelos arredores do meu bairro, notei uma grande confusão. Pessoas aglomeravam-se em círculo e gritavam efusivamente: tratava-se de dois homens lutando, e o meu poeta era um deles.

O vento lufava na janela, Hélio soltava baforadas com o cachimbo, Damião escutava Honório com notável atenção.

— Indiferente ao desenrolar da contenda, notei apenas que o outro combatente, por intermédio de uma navalha, havia desferido um corte num braço do meu poeta. Percebi que um retalho da blusa que ele usava caíra no chão, e havia algum sangue nela. Aguardei até que a briga acabasse e apanhei discretamente o retalho de pano. Naquela noite, retornei ao local misterioso. Lá estava o pano negro, as velas... Esperei por alguns minutos e então o homem surgiu por entre a bruma. Parou diante de mim e disse: “Trouxeste o que te pedi?” Entreguei-lhe o retalho manchado de sangue e perguntei-lhe se era suficiente. Ele não respondeu, apenas depositou o pano no círculo desenhado no tecido e afastou-se. Eu estava cético quanto àquilo, mas continuei observando: o estranho ergueu os dois braços e proferiu alguns ditos em língua desconhecida; na medida em que falava sua voz tornava-se mais áspera, já não era mais a dele. Notei que a chama das velas começou a queimar com mais violência, o cheiro tornava-se ainda mais insuportável e a fumaça que elas emanavam era mais abundante; toda esta fumaça uniu-se e pairou sobre o tecido preto, formando uma nuvem cinzenta. Após alguns instantes, notei que desta nuvem surgiram dois pontos luminosos, dourados, como olhos. Eu era incapaz de desviar a visão daqueles dois focos de luz, eles hipnotizavam-me.

O taverneiro nos trouxe mais vinho como cortesia, mas apenas para escutar o relato mais de perto.

— O que senti no momento, senhores, foi o mais impressionante. Era como se todo o Belo, todas as Musas invadissem meu pensamento; era algo estonteante. A criatura de fumaça, após isso, desfez-se e confundiu-se com a escuridão; seus olhos de ouro também desapareceram. O estranho, com a voz de costume, falou: “Teu desejo foi realizado, mancebo, és a partir deste momento um magnânimo vate!” Com efeito, nos dias que se seguiram, minha mente tornou-se deveras efusiva, contudo eu ainda não havia escrito poema algum. Ocorreu que certa noite, ao chegar à porta de casa após voltar da redação, num instante em que, da porta, volvi o rosto para trás, eis que me surge aquela criatura, do outro lado da rua. Abri depressa a porta, mas, antes de olhar para dentro de casa, volvi o rosto outra vez e a criatura havia sumido. Quando desloquei a visão para dentro, o ente apareceu diante de mim. Meu peito congelou de espanto, e novamente o olhar dourado prendeu-me por alguns instantes, desaparecendo a seguir. Horas depois, quando já deitado sobre a cama, na escuridão dos meus olhos cerrados surgiu uma linha turva, dourada, reluzente; tentei abrir os olhos, mas era impossível. O traço de ouro começou a ficar cada vez mais nítido, a ganhar forma e então percebi que se tratava de um verso, um decassílabo. Por fim, abri os olhos, peguei da pena e anotei aquilo; cerrei-os novamente e o verso seguinte surgiu em minha mente, escrito a ouro. Apenas sei, cavalheiros, que escrevi todo um poema daquela forma — Honório bebeu mais algum vinho e prosseguiu — Os dias que se sucederam foram muito prolíficos. Escrevia em média vinte longos poemas por dia. O ser esporadicamente visitava-me e concedia mais e mais inspiração, e eu versejava o máximo que era capaz. Entretanto, as visitas da criatura tornavam-se cada vez mais frequentes e me deixavam muito aturdido. Já não era capaz de piscar os olhos sem que um verso se formasse; minha visão era, e é ainda hoje, permeada de manchas douradas. O ser visitava-me em casa, na rua, na redação, sempre durante as noites, que eram insones; eu quase era capaz de visualizar o brilho das minhas céleres sinapses; não mais suportava uma mente tão carregada e então resolvi dar um fim àquilo.

Um noctívago passou caminhando pela rua, vi sua silhueta pela porta.

— Voltei ao estranho — Honório prosseguiu — e supliquei-lhe que desfizesse o ritual, pois para mim aquilo já beirava o insuportável. Ele respondeu-me que não era possível reverter um pedido que se faz a Ghoght. Disse-me: “Tu escolheste ser um vate, um prolífico vate, Ghoght fez de ti o que desejaste”. Mas respondi-lhe que não, que toda aquela profusão de ideias estava me destruindo, que já não era mais capaz de concentrar-me em nada, não podia dormir. O estranho apenas lamentou e disse que nada podia fazer, que ele era apenas um enviado de Ghoght. Todavia em não podia resignar-me com aquilo. Caí de joelho aos pés do estranho e implorei que ele fizesse algo por mim. Debalde. Mantinha-se ereto, resoluto em não socorrer-me. Um ímpeto de fúria dominou todo o meu corpo e eu avancei sobre o estranho. Desferi alguns murros incertos, ele apenas se afastava bamboleante; entretanto, num certo momento, ele tomou-me de surpresa, pois revidou: abriu um talhe em meu pulso direito com uma lâmina que trazia oculta consigo, e que brilhou com a luz da lua quando ele a embainhou. Voltei minhas atenções ao ferimento e, quando procurei pelo homem, ele já havia desaparecido. Furioso, chutei todas aquelas velas e esbandalhei o tecido negro, que ficou maculado com o meu sengue — meu amigo ficou alguns instantes em silêncio e concluiu — Esta é, pois, a origem desta horrenda cicatriz — ele arregaçou a manga direita do paletó até o cotovelo e mostrou-nos que o rasgo subira por todo o braço — Na verdade, cavalheiros, esta monstruosidade já tomou conta de todo o meu corpo e ultimamente anda muito inchada e dolorida — ele expôs o outro braço, a cicatriz já havia chegado até ali — Cada um destes pequenos traços ao longo do corte principal, que mais parecem marcas de sutura, são na verdade versos que não escrevi e que ficaram marcados em meu corpo; tais cortes surgem em minha pele todos os dias — o jornalista abaixou a meia do pé esquerdo e nos revelou um novo pequeno corte, que ainda estava vermelho, pois havia se formado já na manhã daquele dia — Desde a cicatriz eu não mais fui capaz de escrever um único verso sequer, toda a poesia que permeava a minha mente desapareceu.

*

Deu-se que em casa, após chegar da taverna, Honório, com o torso desnudo e trajando apenas roupas de baixo, deitado em sua cama, sentia uma dor lancinante por todo o corpo. A extensa cicatriz que tomava seus dois braços, pernas e tronco havia se avolumado consideravelmente e latejava, como se algo estivesse na iminência de irromper do interior de seu corpo. A pele dos braços não suportava mais e começou a fender, deixando vazar uma pasta espessa e branca dali. Ele berrava de dor e pânico, mas não se movia. O mesmo aconteceu com as pernas, e por último com o tronco. Aquela espessa substância irrompia com ainda mais violência e trazia consigo muito sangue. O clímax se deu quando seus órgãos internos saltaram para fora com extrema violência, assim como os ossos dos braços e pernas. Já estava morto.

No dia seguinte, seu corpo foi encontrado inteiramente decomposto. Tudo o que havia dentro dele brotou para fora com ferocidade, dilacerando o delgado invólucro da pele, como uma flor na primavera, desabrochando na mais pura e bela poesia.

TEMAS: "Estradas desertas", "Magia Negra" e "Criaturas fantásticas".

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Bom dia, amigos do Recanto. É um prazer participar de mais um DTRL. Espero que tenham gostado do conto, pois foi tarefa complicada escrever uma história "de época". Embora tenha lido e pesquisado a respeito, temo que não tenha sido inteiramente fiel ao vocabulário do início do século passado, e tampouco tenha descrito adequadamente os costumes daquele tempo. Espero não deparar-me com algum especialista em século XX aqui nos comentários (rs). Obrigado por lerem e boa sorte a todos :)

Marcel Sepúlveda
Enviado por Marcel Sepúlveda em 08/11/2015
Reeditado em 12/02/2017
Código do texto: T5442051
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