O Mergulho do Cutelo - DTRL 25

“As práticas canibais, ou antropofágicas, são tão antigas quanto à humanidade. Um tipo bem documentado é o canibalismo famélico, que aparece em períodos de extrema escassez de alimentos, como aconteceu na Guerra dos Trinta Anos (1618-1648).”

A medida do tempo sempre foi relativa... E para mim, a medida do espaço também. O pulso fortemente amarrado deixava os dedos roxos e dormentes.

“O alemão Fritz Haarmann, conhecido como o vampiro de Hanôver, foi condenado em 1924 pelo assassinato de 30 garotos. Ele fazia salsicha da carne dos meninos, não somente para consumo próprio, como também para venda.”

Os vermes nascem da podridão, não precisam de luz, se proliferam e se transformam. A mente se torna limpa como água cristalina, tão clara, tanta certeza. Às vezes me questionam, ou fingem que não existo, não me importo. Ele sabia o que fazer, já havia feito muitas vezes.

“Em 1981 o japonês Issei Sagawa comeu sua professora e deixou um registro escrito da cena: ‘Corto seu corpo e levo a carne à boca inúmeras vezes. Então fotografo seu cadáver branco com ferimentos profundos. Faço sexo com seu corpo”

Talvez pensem que o medo seja meu amigo, mas gosto mesmo é da coragem. E isso ele conhecia muito bem. Fez diferente dessa vez, limpou cuidadosamente todo o material e a mesa com álcool... Ele não quer morrer rápido.

“Em 2002, Bernd-Jürgen Brandes, encontrou Meiwes depois de ver um anúncio na internet: procura-se ‘jovens corpulentos entre 18 e 30 anos para abate’. Além de matá-lo com seu consentimento, Meiwes cortou seu pênis e ambos degustaram-no flambado.”

Tenho pensado sobre o mundo e como blasfemam em meu nome, não quero almas, corpos são mais reais. Só fico ledo quando não brinco com marionetes, quero ver o brilho deles, é tudo tão entediante. Os olhos fixos na carne ainda viva.

“Em 2007, Marco Evaristti ofereceu um jantar para seus amigos mais íntimos. O prato principal foi macarrão agnolotti, sobre o qual foi coberto com almôndegas feita com a gordura do próprio corpo retirada em uma operação de lipoaspiração.”

E o sorriso escapa sem que eu perceba. O cutelo desce uma, duas, três vezes. Seus olhos se abrem e se fecham, ele sente dor, mas não sente medo... E sim, satisfação.

...

Ela: As noites sempre foram reconfortantes, apesar das visitas que nunca cessaram. Na escuridão se sentia protegida, abraçada pelas sombras e acalentada pelo silêncio como uma suave e longa canção de ninar, observava calada a luz pálida que entrava pela fresta na parede, lembrava das longas caminhadas à beira da estrada, longe... Muito longe, das pedras estalando sob seus pés e a fina linha de luzes piscando, como vaga-lumes, no horizonte. A cidade mais próxima ficava a quilômetros. Nas noites, não importava para onde ela fugisse ao apagar do sol ele sempre vinha, mesmo agora depois de morto, vinha visitá-la.

Ele: Fazendo o mesmo caminho de todos os dias notou a sujeira acumulada nas calçadas úmidas, seus passos eram calmos e ritmados, contava os quadrados na via e desviava dos mendigos e das poças de urina e sangue. Aquilo tudo era tão normal e tão absurdo ao mesmo tempo, afinal, não importava o que fizesse as ruas nunca estavam limpas e os vagabundos se banqueteavam com as pedras compradas com dinheiro de esmola. Só que hoje... Hoje é um dia depois de ontem. E o que aconteceu ontem não é fácil de esquecer. A mão enfaixada latejava e ainda sangrava um pouco. Ele tinha passado a noite toda trocando a atadura e vendo o sangue vermelho escuro manchar o branco como uma obra de arte viva, irresistivelmente linda.

Ela: Seu pai não era uma boa pessoa e ela não era muito inteligente, quando lhe mandavam fazer algo, fazia. Por esses e outros motivos não estranhou quando seu mais novo dono mandou que cortasse o pai em pedaços, pensou como o corpo era frágil, se quisesse poderia ter feito isso há tempos. Mas não fez.

Ele: Os becos eram estreitos e fétidos, as paredes, as fachadas velhas e pichadas como em uma cidade normal, os mendigos o seguia e pediam clemência. Ele era frio como deveria ser. E na verdade... A maioria dos pedintes já conheciam o preço, porém poucos estavam dispostos a pagar. Na porta do estabelecimento dois sujeitos aguardavam. O homem examinou-os, apontou para o menor e o mandou cair fora dali, o pequeno não relutou. Girou a chave duas vezes, esmagou uma barata que corria ao seu encontro e entraram. O cheiro na sala era insuportável, mas nenhum dos dois parecia perceber.

Ela: Toda manhã fazia o mesmo, acordava bem antes do sol, se lavava da sujeira noturna na pia imunda onde ficava a mercadoria, e colocava para cozer os pedaços nobres cortados e temperados na noite anterior.

Ele: Negociaram, e após um grito abafado o mendigo saiu pela porta com uma nota suja trancada no punho de um lado, e do outro um cotoco enrolado com um torniquete improvisado. Dentro do estabelecimento o homem de olhar brando vestiu-se com um avental de plástico e começou o trabalho.

Ela: Depois de pronta a sopa era levada ao quarto dos fundos, um lugar escuro, imundo, coberto por fezes e lixo. Há dias ele estava ali, como um rato jogado na sujeira... Os clientes ainda vinham, a garota aprendeu a fazer o trabalho, nunca teve problemas com isso.

Ele: Sobre a mesa, pedaços de carne já meio apodrecidos que ele colocava para moer com moscas e tudo mais que tivesse sobre o aparelho. Sem higiene alguma ele moía os pedaços enegrecidos. Com uma calma absoluta. Por um instante ateve seu olhar distraído ao próprio braço, o sangramento havia parado, os pelos escuros escondiam parte da pele branca e sardenta, era um bom braço... Parecia ter bem mais carne que o do sujeito para o qual ofereceu cinquenta... Passou pela sua cabeça quanto valeria o próprio braço ou a perna... Levantou as calças, parecia tão saborosa quanto o braço. O sino na porta recepcionou o cliente e acordou o homem de seu torpor. O velho magro de semblante cansado acompanhado de uma menina raquítica.

Ela: alto, baixo, descarnado, esqueléticos, crianças, velhos; mas na maioria... Viciados. Dependentes de todo tipo de tóxicos e desesperados por mais, já não tinham nada a oferecer, a não ser o próprio corpo. Assim chegavam à porta do estabelecimento. Ricos, pobres, gordos e magros, eram os compradores, porém todos tinham um brilho estranho nos olhos, também eram viciados – em carne humana.

Ele: O velho baixou a cabeça, fechou o punho, respirou profundamente, como que tomando fôlego para seu último salto. Um sorriso apontou nos lábios do homem atrás do balcão, dívida é dívida, não era homem de perdoar.

Ela: Ele também tinha nos olhos o fulgor do vício, ela pode perceber isso desde que o viu atrás do balcão imundo, não sabia bem do que se tratava. Sabia apenas que estava sendo entregue para pagar um débito do pai, entretanto o medo já não a acompanhava há anos, tinha endurecido pelos golpes da vida apesar da pouca idade.

Ele: Ninguém podia enganá-lo, vender a filha pequena por drogas parecia injusto, decidiu por sua lei, ficar com os dois. O velho daria muita carne, mas a menina... Bom, seria mais útil viva. Olhou para o braço enfaixado novamente – estava começando uma nova etapa de sua existência – sua devassidão o consumia.

Ela: O açougue era o mais sujo que ela já vira, um cheiro horrível tomava conta do local, demorou alguns dias para ela se dar conta do que acontecia por ali, mas aprendeu rápido. Fazia, sem dificuldades, os cortes nos clientes e no homem, toda tarde ele fechava a porta desenfaixava o braço, estendia sobre o balcão e pedia para que ela cortasse. Depois deixava as partes cuidadosamente posicionadas numa vasilha com temperos. Era uma rotina... Depois do braço esquerdo e pedaços do direito começaram as pernas.

Ele: Desde o início sabia que o fim estava próximo, não podia viver sem alimentar seu desejo, e não o faria por muito tempo, seu corpo se esvaia. Já não podia fazer nada sozinho, sentia falta das visitas noturnas ao quarto da garota, mas o anseio pelo gosto da própria carne era mais forte que tudo. Desprovido dos membros superiores e inferiores, se transformara em uma figura grotesca e absorta sendo alimentada com nacos de suas nádegas.

Ela: O sangramento começou depois dos cortes daquela tarde. E não parou. Na manhã seguinte quando a sopa estava pronta a menina encontrou o cadáver sobre as fezes. Por um momento não soube o que fazer, sentou na cadeira, olhou a sua volta, estava livre finalmente. A sopa na caneca parecia saborosa, nunca tinha provado. Até aquele dia... A vida é feita de oportunidades, enquanto estivesse no comando estaria segura. Voltou ao trabalho, os sábados são os dias de mais movimento.

O tempo não para a fim de que você sofra. No refrigerador, pendidos por ganchos de ferro pedaços de corpos humanos jazem no silêncio frio e úmido enquanto são embalados pela batida sincronizada do mergulho do cutelo.

Satisfação. Continuo existindo.

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Referências: http://www2.uol.com.br/vivermente/reportagens/da_cultura_a_perversao.html

Tema: Comidas

Nota: Faz um tempo que não participo decidi tentar dessa vez... quem sabe não volto a escrever com mais frequência. Espero que gostem!

Eliane Verica
Enviado por Eliane Verica em 06/11/2015
Reeditado em 07/11/2015
Código do texto: T5440277
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