Corações magnetizados nas interconexões da morte - Dtrl 25

Três coisas que detesto: noites, estradas e o frio. Naquele momento, as três eu tinha sido exposto. Estava com as mãos no bolso, voltando de algo um pouco que comprometedor a se dizer, absorto em pensamentos sobre qualquer coisa. Um leve barulho de uma latinha de cerveja rolando na calçada fez-me perceber em qual situação eu estava. Minhas mãos tremiam levemente, meu corpo encontrava-se muito abaixo de sua temperatura normal, de minha boca uma fumaça branca fugia. O que deveria sentir nesse instante? Quando olhei ao meu redor, notando que estava só naquela estrada, algo muito parecido com o medo assumia controle de meus impulsos. A luz dos postes era extremamente frágil de forma que seria um pouco difícil adivinhar o que estava próximo a uns dez metros. Caminhei, ainda na mesma posição, pé sobre pé reafirmando ao meu próprio eu a minha segurança.

Qualquer coisa é melhor do que enganar-se. Uma ilusão criada pode ser uma péssima estrada há um futuro calamitoso. Agora eu sei muito bem que não deveria ter continuado a caminhar por ali. Poderia ter-me escondido em qualquer canto, voltar correndo de onde tinha vindo... as alternativas eram inúmeras. Apesar disso, continuei a caminhar, uma curta jornada que decretaria meu fim. Para sempre estaria atrelado ao que me foi imposto. Mas naquele momento eu não tinha essa consciência, queria ser forte, fugir daquela vergonha na qual estava. Essa quem sabe foi a pior distração, normalmente nós seres humanos quando caminhamos nessas calçadas cotidianas estamos tão alheios a tudo, tão concentrados em uma só coisa que não importaria se uma estrada é escura e vazia, o que importa é apenas concluir o que se está em mente.

A calçada ainda não chegara a seu fim, enquanto a estrada parecia monótona como em seu início. Assobiava uma canção antiga para afastar as energias negativas ao meu redor, meu calçado era o único som além do que eu fazia com a boca. Nenhum respiro de vida próximo. Nada, exceto por aquilo que surgira do nada, de repente, produzindo um repugnante som ao devorar algo que espatifava por suas garras. Havia em seus olhos vermelhos um ímpeto de sobrevivência. Mas, aquela criatura não detinha uma forma humana. Sua pele era arroxeada como se estivesse sofrido de asfixia, nos lugares onde deviam estar os ouvidos encontrava-se duas pequenas antenas curvas, todos seus dentes eram caninos, grandes e cobertos por sangue. A criatura era pequena de braços e pernas curtos, entretanto, possuía mão e pés imensos, dotados de sete dedos pontudos.

Foi nesse instante, quando aquilo fitou os meus olhos, um filete de suor escorreu pelo meu corpo. Eu não podia me locomover, meus pés criaram raízes no solo de concreto. Os antigos carros abandonados, os muros pichados e as velhas habitações foram as testemunhas de meu fim. Um enorme terno era tecido ao meu redor, de um roxo intenso quase negro. Podia sentir todas as partes de meu corpo modificando-se conforme o tecido descia sobre mim até alcançar os meus pés. Não podia ver, mas penso que naquele momento deveria ter assumido um aspecto estranho. Entretanto, minhas mãos agora eram livres, meu corpo era livre, sentia-me intenso como as solitárias estrelas no céu imenso e escuro. Algo em mim havia se alterado. Sim, naquele momento eu deixava de existir, como humano, para ser além das limitações de um homem.

– Vá, traga-me o que desejo – A entonação de sua voz era contínua e forte. Não podia saber, de forma alguma, o que ele desejava. Porém, o meu corpo já parecia estar ciente de qual era a minha designação. Fiz uma meia reverência, abaixando a cabeça por estar amedrontado a olhar novamente em seus olhos. Sai então a passos lerdos sem saber onde os meus pés estavam levando o meu corpo, que já não estava sobre o meu controle. A criatura segurava entre suas garras o resto daquela coisa, eu conhecia-a bem, pois também a possuía, mas agora estava em suas mãos. Aquilo era macabro, porém era real, ou ao menos toda a conjuntura me faria assim crer. Deixei o ser sozinho encarando o vazio com o sangue e os dejetos daquilo escorrendo por sua boca.

Mais uma manhã, não uma manhã comum como as outras. O fato não estava relacionado a minha pernoitada, muito menos pelo meu ato repugnante antes de tudo, nem mesmo por aquele encontro. Mas sim ao que eu fiz na madrugada, isso apagava qualquer desprezo a minha ação anterior ao encontro com o humano-animal. Embora aquilo se encaixasse como horrendo, eu continuava a fazer. Durante poucas horas eu já havia me transformado em escravo daquela criatura. Em minhas mãos encontrei sangue, todo o meu corpo cheirava a ele. Pior do que matar é carregar o fardo do assassínio para onde se vai. Poderia ter a justificativa de estar sendo controlado por algo superior, porém não era consolo algum para a minha consciência. Foi a minha mão que perfurou os peitos daqueles humanos inocentes. Foi ela que extraiu aquilo deles. Ainda vivo, pulsando, era eu que os entregava e observava ser engolido por deleite por aquele bicho.

À tarde daquele dia me seria inesquecível então. Estava sentado na orla do mar poluído da cidade de Mauá quando dois homens se aproximaram de mim, olhando, concentrados em minha pessoa.

– Senhor, Honório Fulgêncio?! É preciso que venha conosco – Um dos homens começou a falar ainda muito concentrado em mim. Seu olhar era inquisidor, eu já sabia por que, não tinha como negar. Mas será que a minha desculpa seria aceita por eles?

– Entendo – Levantei-me e ofereci os meus pulsos para serem algemados. Entretanto, nesse momento, aconteceu que a criatura surgisse no meio do mar levantando devagar sua cabeça para me observar. O vi de relance, entretanto, o suficiente. Minhas mãos flutuaram no ar, meus pés arrastavam-se a plena velocidade na areia pesada, um dos homens tentou sacar o revólver de sua cintura, mas meus pés acertaram o seu maxilar, fazendo-o bambear e cair no chão. O outro homem com uma expressão horrorizada não se movia, parecia calcular se a melhor escolha era lutar ou fugir.

No entanto, antes de tomar sua decisão uma de minhas mãos já estava o segurando e a outra adentrou o seu peito. Havia alcançado aquilo, bombeava em minha mão, era quente, foi quando comecei a puxar. O homem incrédulo olhava para o céu, mas não conseguia gritar. Minhas mãos trêmulas retiravam o coração de seu peito, com muito esforço. Era como se algo dentro dele tentasse resistir a minha invasão, porém era tarde. Nesse mundo humano não existe força alguma que seria capaz de resistir ao meu poder que me foi concedido. De joelhos ele caiu, seu coração pulsava em minhas mãos, a criatura de longe parecia extasiada, pequenos gritinho ruidosos saia de sua boca. Sua língua enorme correndo por seu rosto e uma de suas mãos assinalava o outro policial que tentava uma fuga. Três passos foram o suficiente para alcançá-lo.

– Deus... pai nosso... ave-maria... santo céu do Jesus... me ajuda... Socorro! – O homem gritava mesmo sem antes eu o tocar. Aquilo me doía, falo com toda a minha sinceridade, mas mesmo assim ainda não podia me controlar. Ou não sei... talvez toda aquela situação tenha despertado algo dentro de mim. Algo fora do comum. Um desejo insano de matar, de servir o meu amo, beijar os seus pés, ser o seu servo por toda a eternidade. Unhas enormes e fortes cresceram em minha mão, em quatro atos rasguei os braços, as pernas e sua cabeça. Tudo para depois remover o precioso... o seu coração, a vontade minha naquele momento era devorá-lo. Mas eles não me pertenciam, pelo menos não agora, não nesse momento.

Com os dois órgãos em mãos eu me estirei no chão, apenas meus braços levantados, em minhas duas mãos, agora normais sem as garras, os dois corações pulsantes. A criatura os pegou delicadamente, olhava para ambos tentando decidir qual deles devorar primeiro. Era tamanha a indecisão que pôs os dois em sua boca, eu escutava os estalos a cada ventrículo, veia ou artéria perfurada, os restos de sangue bombeando e jorrando pelo ar. Ele as consumia como se estivesse devorando um pedaço de carne bovina. Em poucos minutos nenhum restante dos órgãos foi poupado, tudo havia sido consumido por ele. Seus olhos brilhavam de satisfação, o corpo, que antes era franzino aumentava consideravelmente em sua forma física. Entretanto, isso não era o suficiente para saciá-lo.

Seu rugido ecoou por toda a cidade, sentia como o meu corpo estivesse sendo sugado para dentro dele, era o que de fato acontecia. Não podia me segurar, a força de atração que ele emitia era grandiosa. Parte do meu braço esquerdo se desprendeu de meu corpo, mas sangue não saiu, algo similar com uma gosma, um líquido verde e viscoso. Quando olhei para o meu corpo, era eu a própria criatura, mais forte, mais alta e imponente. Admirava minha própria nova forma, metade homem, metade alien, era eu um Deus? Não! Algo melhor... o tudo, aquele que movia os homens durante as manhãs até a noite, aquele que movia a família burguesa à capela todos os domingos. Aquele que prendia o jovem na televisão. Eu era a base, o rei, o mal e o bem.

Antes mesmo de poder ter curtido todo o poder com minha forma, uma multidão se aglomerou em instantes ao meu redor. Mais policiais armados com fuzis, metralhadoras, e vários outros tipos de armas, ao meu encalço. Gritavam coisas estranhas como “monstro”, “demônio” nesse cunho. Como poderiam tratar assim o tudo? Estava irado, dois gestos com minhas mãos foram o suficiente para remover diversos corações, mesmo sem o toque, eles flutuavam no ar buscando o meu alcance. Engoli a todos com o mesmo ímpeto de se deliciar com um chocolate. Era mais forte, mais poderoso. Enquanto vários caíram mortos e outros corriam apavorados, eu estava metamorfoseando, cada vez mais forte.

A multidão tentou escapar, mas passei a persegui-los. Não pude ir mais longe ao entanto por algo inesperado: fui atingido na cabeça por um martelo, ele deixou-me atordoado e todos já estavam fora de meu alcance. Naquele momento sentia-me novamente como era antes, queria me separar daquilo. No entanto, não podia... eu sentia a angustia da criatura, se contorcendo, agoniada pelo seu fim, éramos dois e não mais um. Porém, a sua influência era grande demais para suportar, impossível de agir por minha própria consciência. Corri junto com sua pressa. Ela escalou um dos pequenos edifícios. Gritou emitindo um pavor pelo ar, eu gritava junto, repetia tudo o que ela fazia.

Então, finalmente ocorreu, seu corpo aumentara muito. Fui jogado de maneira abrupta para fora de sua massa. Meio inconsciente assistia o seu volume triplicar de forma assustadora. Um novo grupo se reunira em torno, até mesmo um helicóptero armado em direção ao seu alvo. Um chiado de início baixo, mas depois muito alto estatelou a todos. A criatura não tinha mais cabeça, nem braços, nem pernas, apenas uma imensa bola de massa. Sua forma transitava pelo ar, começou a girar, até explodir, derramando sobre a população tiras de um papel colorido. Homens, mulheres e velhos sobrepujavam-se um a um para guardá-los em seus bolsos, esquecidos de tudo que ocorreu. Enquanto isso... perto da areia da praia um martelo jazia perdido coberto de sangue. Eu podia morrer ali mesmo, parece que era o que estava acontecendo.

***

– É uma pena, ele era só um jovem – Uma mulher comenta com seu marido em sua cama sobre os fatos daquela manhã passada.

– Mas e essa carta, bem estranha, não é? – Sentencia pensativo Aderaldo ao fechar o jornal e o largar no chão. Os dois apagaram as luzes e recolheram-se ao seu descanso. No jornal, uma manchete estampava:

“Jovem é encontrado morto próximo a uma loja hippie, ao que tudo indica trata-se de um suicídio. Confira na integra o relato deixado após sua morte.”

***

Olá, pessoas do dtrl! Atento as criticas ao meu último conto apresento-os a minha mais nova obra para essa edição, que já é a minha terceira, espero sinceramente que possamos crescer juntos e construir uma edição única. Em meu último conto, a proposta não foi bem compreendida por parte dos participantes e acabei por descumprir a promessa de revelar os segredos escondidos dentro do texto, espero que nesse as ideias estejam mais evidentes e que vocês se nutram bem do que aqui foi exposto. Até os comentários!

Temas: Criaturas Fantásticas, Comida, Estradas Desertas e Paranóia.

Josué Viana
Enviado por Josué Viana em 05/11/2015
Código do texto: T5438282
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