O CACHORRO ZUMBI

— Au Au! – Bom dia!

Olhem bem esse cachorrão lindo da foto. Olharam? Bem, não sou eu, no meu tempo máquina fotográfica era coisa de rico. Esse dog aí na foto foi o mais parecido que o Vinci conseguiu encontrar na Internet para ilustrar esse texto. E antes que fiquem pensando abobrinhas, vou dizendo que eu fui muito macho. Só o que me faltava agora é alguém por aí manchando minha reputação.

— Meu nome é Tarzan e sou um cachorro, quer dizer, era. Agora não sei o que eu sou, pode ser que ainda seja um cão e esteja em alguma casa alegrando alguma criança.

Não se assustem com um cachorro falante, porque eu não estou falando. Também não estou escrevendo, é óbvio.

O que você vai ler faz parte das lembranças de um amigo, tiradas das impressões que eu causei nele enquanto nós estivemos juntos nessa vida, muito embora eu continue acreditando que ainda estamos próximos, ao menos nas recordações.

Para facilitar para vocês eu pedi a ele que traduzisse tudo, porque no meu idioma, qual na língua chinesa, a entonação é tudo, e uma palavra pode ter vários significados. Pode ficar difícil de entender sem ver as expressões de quem fala e ouvir o som ao mesmo tempo. Coisa não muito fácil de transmitir pela escrita.

Aliás, acho que vocês vão ficar surpresos em saber que, quando os humanos dizem alguma coisa, as palavras representam apenas 7% dessa comunicação. Do restante, 43% são representados pelo som e entonação da voz, e a linguagem corporal transmite os outros 50% da mensagem; portanto, metade de tudo o que os outros entendem do que foi dito.

Os da minha espécie apenas desprezam aqueles primeiros 7%.

No restante somos experts, e eu sou ótimo, me desculpem, era. Entenderam agora porque nós latimos de diferentes formas, pulamos, abanamos o rabo, buscamos e trazemos coisas, e ficamos rodeando as pessoas das quais gostamos.

Falando em gostar, modéstia à parte, eu e os meus somos muito bom nisso, no meu caso era, desculpem-me outra vez a escorregada linguística, mas por instinto sabemos quem é bom ou ruim. E sabemos demonstrar afeto. Tá bom, com alguns exageros, como o de ficar lambendo e se esfregando. Peço desculpas em nome de todos!

De todos os cães.

Porém, antes que me esqueça, eu tenho de confessar uma coisa, vim ao longo desse trecho deixando algumas pegadas, pistas, e isso desde o começo, mas para quem ainda não entendeu quero deixar claro que eu já morri.

Fui um bom cachorro em vida e acredito que todos que me conheceram têm saudades de mim. Todos? Não! Exagero meu, tem os que eu mordi, acho que podemos excluir essas pessoas.

Agora que você tem a certeza que eu estou morto e está continuando a ler, posso presumir que não teme os mortos. Porém, só para eu ter ideia do seu nível de coragem: Você já ouviu falar, leu ou viu The Walking Dead? Mortos reanimados para a vida. Já! Que bom! Pois é disso que vamos tratar aqui, a história de um cachorro morto que andou. Eu! Assustado? Então pare por aqui. Se continuar a ler vai ser por sua conta e risco. Você foi avisado!

Vamos voltar 50 anos no tempo

— Tarzan, pega! – Vinci mandou.

— Moleza! Esse pulguento não vai ter a mínima chance. — Eu disse e ataquei.

Na primeira mordida o cão fez carreira.

Eu voltei para perto de Vinci e me esfreguei na perna dele. Não, não cheguei a sujar a roupa, isso porque ele está com uniforme escolar de calça curta. Mas a camisa era branca. Isso mesmo... era!

Ele fez um leve afago na minha cabeça e continuamos rumo à escola. Foi aí que eu vi a marca de mão na camisa e logo liguei os fatos: rolei com o outro cachorro, ele passou a mão na minha cabeça e... limpou na camisa.

— Desculpa aí! Eu tenho que atender a uma necessidade urgente. — Falei e corri para uma árvore próxima.

Achei melhor vazar antes que ele visse a camisa toda suja e as coisas engrossassem para o meu lado. Quando eu terminei já estava cansado de ficar com a perna erguida, afinal não estava com tanta vontade assim. Olhei, e Vinci estava entrando na escola e nesse ponto começava o meu tempo de espera. Quatro horas deitado até o término das aulas.

Pera aí, nem sempre, às vezes passava uma cachorrinha ou outra, e ninguém é de ferro. O certo é que às 11 horas eu estava sempre lá no portão da escola. Algumas vezes eu tive que desengatar meio às pressas, e as cachorras devem ter ficado meio frustradas. O que fazer, desculpas à parte, mas compromisso é compromisso.

Naquele dia, ao sair da escola um moleque frescou com ele e os dois trocaram alguns socos. Eu até ameacei intervir, mas com um “Deita!” o Vince me tirou da parada. Tive que ficar só assistindo. Não me importei, ele levou a melhor. Só não consigo saber o que aconteceria se ele estivesse apanhando, mas acho que eu sei sim. Afinal nunca fui muito obediente.

Não vão pensando que todo dia era dia de briga, vez por outra ele saía de papo com alguma menina e eu acompanhava a prudente distância para não assustar a gata.

Vinci podia ficar por horas escrevendo sobre esses tipos de aventuras, porém esse relato ficaria uma chatice, afinal em vida de moleques e cachorros mudam apenas o com quem ou com qual, e nomes não importam agora. E é 100% de certeza que ele não se lembra. E eu nunca soube.

Na relação de idade eu era mais maduro que Vinci, por essa razão, enquanto ele se limitava aos passeios de mãos dadas, meus casos eram mais profundos.

E isso me faz lembrar que quase todos os meus casos terminavam bem no fundo, isso depois de espantar meia dúzia de cachorros que se atreviam a disputar uma cadela comigo. Calma, “cadela” até aqui não é xingamento. Até aqui!

Entretanto, foi uma “cadela”, e agora podem entender por obscenidade, que me meteu na maior enrascada da minha vida. A vadia deve ter saído com todos os cachorros da vizinhança, e um deles pelo menos estava doente.

Um tipo de doença rara e grave com nomes populares que não tem nada a ver com cachorro, mas que ataca os cachorros.

Assim, eu fui diagnosticado pelo prático de farmácia com “cavalo” ou “crista-de-galo”. Viu, como eu disse, não fala nada em cachorro. Mas esse fato não afastava o pior.

“Estágio muito avançado, tem que ser sacrificado.”

Eu posso não ter entendido nada desse negócio de sacrifício, mas tenho a certeza de que foi isso que o cara disse.

E, não, o Vinci não estava comigo nessa hora, afinal quem levaria um garoto de 8 anos para ouvir uma notícia dessa. Fui na corda, puxado pelo pai dele. E por ter sido forçado a me afastar do meu amigo pela primeira vez, eu já presumia que a coisa não era boa.

E antes que comecem a ficar com raiva de alguém vou avisando, a cidadezinha não tinha nem médico, e isso quer dizer que veterinário nem pensar.

Tempos difíceis aqueles.

Resumindo essa parte que me é muito dolorosa e para que não o seja para vocês também: a corda no meu pescoço, a outra ponta na mão do homem... e um machado na outra.

— Sacou?

Dois quilômetros de caminhada forçada, duas pancadas com o olho do machado na minha cabeça; e o fim.

Fim nada, o nome da história não é “O cachorro zumbi”, pois então, não pode ser o fim. É só o começo!

— Mãe, viu o Tarzan – Vinci perguntou pouco antes de sair para a escola.

— Não, desde ontem à tarde que eu não o vejo – ela disse.

Mentira?! Nessa parte não, pois de fato ela não tinha visto o cachorro desde a tarde do dia anterior. O fato de ter omitido que o pai tinha dado um fim no animal foi uma forma de proteger o filho.

— Tarzan... Tarzan... – o garoto chamou pelo cachorro achando que ele estivesse pelas redondezas, depois desistiu e partiu para a escola.

Longe dali, uma cena confusa aos olhos de qualquer um que a pudesse ver começava a se desenrolar.

— Ei... Acorda, você é o Tarzan. O Vinci está chamando.

O universo é cheio de mistérios.

Foi aí que aquele corpo de animal, preto com marrom, testa, focinho e patas brancas, jogado no chão em um pequeno descampado na mata rala, com algumas formigas sobre o corpo e marcas de sangue seco na região da cabeça, fez um pequeno movimento com uma das patas.

— Vamos, levanta! O Vinci está chamando.

O animal forçou a cabeça em giro e as folhas de capim grudadas com sangue foram descolando. Aos poucos girou o corpo para cima das pernas e ensaiou levantar a garupa. Desistiu e esticou as duas pernas dianteiras para frente ficando apoiado nos cotovelos e com o focinho esticado rente ao solo. A cabeça foi ficando mais alta até que o branco do peito com uns poucos restos de sangue escorrido e ressecado ficou à mostra. As unhas foram fincadas com firmeza ao solo e o corpo foi ao mesmo tempo arrastado para frente e forçado para cima até ficar meio em pé apoiado nas patas dianteiras. Depois, as pernas traseiras foram aos poucos sendo esticadas, até que o cão ficou em pé apoiado nas quatro patas, trêmulo e desajeitado.

Tarzan deu os primeiros passos e a poça de sangue foi ficando para trás.

O trajeto curto que em condições normais demoraria apenas cerca de alguns minutos foi se estendendo por quase duas horas.

O caminhar vagaroso de corpo duro e cambaleante, de pata a pata, uma de cada vez, com certeza causaria pavor a quem o visse.

E foi o que aconteceu.

Com as primeiras casas apareceram as primeiras pessoas e, com elas, os primeiros rostos assustados, os primeiros gritos, e as primeiras carreiras. Depois de muito mais de tudo isso, o animal reconheceu a casa de Vinci. A sua casa.

Entrou, e entrou na sua casinha... e deitou.

Finalmente podia descansar.

E dormiu.

A sirene da viatura da polícia foi desligada assim que parou em frente à casa, e um soldado desceu apressado. Alguém tinha avisado as autoridades. Populares mostraram onde estava o bicho.

Um tiro, uma explicação, e um conselho do policial:

— Quando o garoto chegar, mostrem o corpo do cão, e depois o enterrem o mais próximo possível do lugar onde a criança dorme.

Como era de se esperar, não foi fácil para o Vinci ver aquele corpo, mas ele superou.

Assim foi feito, o corpo do cão foi enterrado do lado de fora da casa próximo à janela do quarto do garoto.

E o Tarzan descansou em paz.

Simples assim!

Vinci Tadeu
Enviado por Vinci Tadeu em 25/10/2015
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