Vi uma coisa medonha no céu

NOTA: este é um dos meus contos de Pedra Torta, baseado no universo ficcional do "Necronomicon" (Livro dos nomes mortos") criado pelo autor norte-americano H.P. Lovecraft (1890-1937). Foi escrito nos anos 90.




VI UMA COISA MEDONHA NO CÉU

Miguel Carqueija


Quando engrenei a segunda, a chuva começou a cair em grandes bátegas. Dirigi pela Rua Solimões, no centro de Pedra Torta, em direção ao meu apartamento. Era um dia sombrio para mim. O dia em que um membro da família fôra internado em estado grave, no Hospital Maximino Godinho, e em que eu, esgotado, buscava o alívio da cama.
Foi quando olhei para cima. Para as imensas nuvens de chuva, encasteladas pelas alturas. Escuras e ameaçadoras, despejando suas rajadas líquidas e frias.
A princípio foi apenas uma vaga impressão. Ao parar num sinal vermelho, porém, reparei com uma sensação de horror na configuração que aparentavam aqueles cúmulos-nimbos. Como as nuvens são objetos disformes e em constante transformação, talvez só eu, entre tantas pessoas, houvesse flagrado aquela aparição assustadora. Algo semelhante a um dragão, em meio a tentáculos. Algo, só por um instante entrevisto, tão horrível que apenas o caráter efêmero da visão pudera torná-la suportável.
Eu devia, é claro, estar com a imaginação superexcitada. O sinal abriu, eu dei a partida e logo constatei que já não havia, no céu, nada semelhante a um dragão ou polvo.
Ao chegar em casa, logo antes de começarem os piores trovões que já ouvi em toda a minha vida, constatei que a minha esposa não estava; deixara porém o jornal do dia — o Diário de Pedra Torta — sobre a minha escrivaninha.
Peguei-o e comecei a ler. Chamou-me a atenção, na página seis, uma pequena notícia:

LIVRO RARO E TENEBROSO SOME DA BIBLIOTECA MUNICIPAL

E assim rezava o texto:

“Foi constatado, pelo Professor Rozendo Ancona, diretor da Biblioteca Municipal de Pedra Torta, o sumiço de um de seus livros mais raros, o estranhíssimo “Necronomicon”, volume 2. Consta que o original do volume 1 é guardado a sete chaves na universidade norte-americana de Miskatonic. Ambos são coleções macabras de relatos sobre criaturas que, no passado, teriam dominado a Terra. A superstição em torno do Necronomicon sustenta que a invocação dos seres antigos, por meio dos ritos contidos nesses volumes, traria de volta os referidos seres. Por isso o Prof. Ancona acredita que se trata de roubo efetuado por fanáticos esotéricos.”

Apesar da ausência de motivo lógico, aquela notícia me impressionou profundamente.
Resolvi fazer um lanche antes de deitar, pois já anoitecera e eu me encontrava deveras fatigado. Ao abrir a geladeira, porém, senti-me sacudido. Espantado, fechei rapidamente a porta da geladeira e agarrei-me a ela, enquanto o assoalho tremia. Então fui jogado ao chão, pratos e talheres caíram da mesa, o armário desabou, e em meio ao tremor escutei nitidamente espantosos bramidos que duraram alguns intermináveis minutos.
Esta foi a minha experiência pessoal. Não quis me aproximar da montanha que ruge — nome com que foi apelidado o Morro Azul, desde que — no dia do sismo — surgiram-lhe estranhas fendas por onde se escutam, às vezes, aqueles terríveis bramidos, que parecem provir de alguma monstruosa besta das profundezas, ansiosa por libertação. Posteriormente o Necronomicon II foi encontrado junto a um cadáver carbonizado, identificado como o corpo de um pesquisador de fenômenos esotéricos. Certamente, o ladrão do misterioso livro. Que porta tenebrosa ele terá tentado abrir? E com que objetivo?
Hoje eu conheço o Necronomicon, e peço a Deus que o bom senso vença, em mim, a mórbida curiosidade. Não o peguei emprestado, limitei-me a lê-lo na própria biblioteca, sob o olhar preocupado da velha bibliotecária Berta, que não parecia aprovar a leitura daquela obra obscura e assustadora. E hoje, atormentado pela simples leitura de um livro, eu me pergunto se tudo aquilo não é verdade, e se as forças das trevas não se encontram represadas e furiosas, abaixo da superfície, aguardando a chance de subir e nos dizimar ou escravizar. E me pergunto por quanto tempo Morro Azul resistirá à pressão da besta-fera que, lá por baixo, se encontra prisioneira e cheia de ódio, urra e se contorce, e o que acontecerá quando ela sair. E, sobretudo, me pergunto que aparência terá aquele ser. E sinceramente espero não viver o bastante para testemunhar aquilo que virá um dia.