Ascanthopédia - Parte 8 – A Campina Sagrada do Bosque
Ascanthopédia - Parte 8 – A Campina Sagrada do Bosque
( Da linda relva entre as árvores e do homem misterioso que nela vive )
E, finalmente, o bosque. Último desafio de Enki-du nas terras de Limelim, abria-se cinéreo e luminoso, recebendo a chuva que chegou naquela tarde. Do lado de fora do jardim, onde o ar era mais fresco e livre, um exuberante e verde prado salpicado de árvores enchia a vista de alegria. Muitos dos animais silvestres, que pareciam não ousar entrarem em Nubelar, agora assoberbavam as suas árvores de uma algazarra alegre. Não era um bosque denso. As árvores eram bem espaçadas, em sua maioria decíduas, e o outono já se aproximava, e com ele as folhas já desciam ao solo em tons de vermelho ferro e amarelo. Haviam pinheiros e abetos também, e muitos arbustos e ervas. Pequeninas teias de aranha cintilavam do alto, como tênue seda luminosa, pareciam postas ali para capturarem as luzes que desciam do céu.
Os dois sóis de Ascantha, meio escondidos entre as nuvens carregadas, ainda conseguiam dar o ar de suas graças em braços de luzes que desciam espalhados em finos fachos brilhantes feito centelha de prata, hora aqui, hora ali. A sensação de liberdade que Enki-du sentia no bosque, coisa que Nubelar lhe negara, impulsionava os seus pés e o seu coração, numa curiosidade quase esmagadora. É fácil entender, pois que ele conhecia aquele local apenas do alto de sua janela, nunca tendo a coragem de descer ali e descobrir quão maravilhosos ele de fato era.
O bosque era uma extensão do luminoso vale de Limelim, que ia das praias de Cicife ao leste, até às falésias de Yamashy ao oeste. Dava uma pausa pelas montanhas nevadas e as serras dobradas, e depois seguia numa extensão de milhares de quilômetros de pura solidão. Neste belo bosque, em algumas partes mais para dentro, as árvores
não permitiam a passagem fácil da luz, e em seu interior reinava um clima espectral e misterioso. Ao penetrar as suas frondosas árvores, parecia-se transportado para um outro mundo, estranho e desconhecido de que só se ouviu, muito remotamente, falar. Lar de uma espécie de seres, semimateriais, guardiões da natureza e dos seus ciclos quase sagrados. Onde os homens não chegavam, porque as musicas brotavam das pedras e dos troncos ocos, e isso os assustava.
A linda floresta não era uma mata fechada e sem alma, como o jardim lá atrás, mas as copas de suas árvores em certos lugares se encontravam e fazia-se crer que um teto verde cobria a nossa cabeça. Ali, a chuva que já havia passado fazia tempo, parecia continuar caindo , já que as águas retidas pelas folhas, precipitavam com a ajuda do vento. Havia por ali uma antiga estrada, quase apagada pelo tempo, usada num passado bem remoto por comerciantes nômades, e que procurava cortar cortar caminho até o rio, evitando as pequenas e elevadas colinas a frente. Foi seguindo-a, que Emki-du começou a ouvir o resmungar de um pequeno riacho, logo depois dos arbustos, possivelmente um pequeno afluente do Vereia. Com sede, decidiu descansar em suas margens, depois que se refrescasse em suas águas límpidas.
Descendo mais um pouco, num terreno acidentado, pôde perceber que o pequeno rio rasgava o bosque, saindo por trás de algumas árvores e correndo entre as pedras. Possivelmente
descia das montanhas mais ao leste, onde nascia de seus picos gelados e escorria feito lágrimas campo afora. Banhou os seus pés cansados, não acostumados a tal esforço e refrescou a sua cabeça na água gelada. Mas antes que pudesse saciar a sua sede, um vulto pareceu aproximar-se dele. Assustado, olhou imediatamente para trás.
Tratava-se de um velho senhor, saído sabe-se lá de onde, possivelmente um andarilho em busca de melhor sorte. Estava vestido com um surrado sobretudo e chapéu de abas caídas, debaixo do qual escapava um largo bigode branco e tufos de cabelos espetados igualmente brancos. Tinha uma face serena e bastante amistosa, apesar das rugas pesadas que ostentava. Um pouco molhado e sujo de barro o velho já começou dizendo:
-Meu filho!... Você poderia ajudar um pobre homem, que se aventura por tão belas terras... e cujas forças há muito não são mais as mesmas? – falava com dificuldades, e claudicava da perna esquerda.
Enki-du, ainda em profundo aturdimento, já que ainda cogitava poder ser o velho algum tipo de assombração ou espírito atormentador, respondeu-lhe da melhor forma que pôde, polida e gentilmente, como príncipe educado que era:
-Sim, meu senhor... Se estiver ao meu alcance, não vejo porque não. O que eu poderia fazer por ti?
-Minha velha carroça, perdoe a minha tolice, atolou no riacho, um pouco mais abaixo, quando tentei atravessá-la... Desculpe-me... Sabe... Ela já está velha, assim como o seu dono ( sorriu gentilmente ), acreditei eu que ainda tivesse forças para empurrá-la por mim mesmo, mas logo vi que estava errado, e assim que encalhou os cavalos me abandonaram. Tenho tentado em vão retirá-la. Talvez, você, um jovem, tenha mais forças que eu.
- Eu entendo... Não se preocupe. -Disse Enki-du – Acho que com a minha ajuda poderemos retirá-la, para que assim o senhor siga a sua viagem sem maiores problemas, eu espero. -Disse aliviado, já que eu sua dedução, uma assombração não necessitaria de uma carroça.
- Muito obrigado, jovem rapaz – disse o ancião.
Dito isso, desceram os dois em direção ao rio. Não tardou para Enki-du visualizar a carroça na margem esquerda do riacho. Estava severamente atolada nas águas barrentas da parte mais pantanosa.
Enki-du aguardou por uns momentos, pois o velho demorava a chegar. A idade avançada o impossibilitava de caminhar com mais destreza pelo terreno irregular do bosque, já que se apoiava numa vara.
No entanto, o tempo passava, e o velho não chegava. Enki-du decidiu então, ele mesmo, sozinho, tentar desatolar a carroça. Provavelmente, o velho fora em busca dos cavalos, que não estariam longe dali, e ficaria feliz em chegar e encontrar a sua velha carroça em condições de seguir viagem.
Com muita dificuldade, o jovem príncipe menino livrou a velha carroça do atoleiro às margens do riacho. Isso lhe custou doloridos arranhões e um dedo inchado. Não pôde, no entanto,deixar de perceber que algo vinha preso aos raios de madeira da roda. No inicio não pôde perceber do que se tratava, já que grossa camada de lama encobria boa parte do artefato. Retirou com cuidado a estranha peça, lavando-a na gélida água da montanha. Uma grande surpresa o tomou, pois um encantador elmo revelara-se em suas mãos! Era tão belo que mais parecia uma joia, e não uma tola proteção para a cabeça. Nem no grande salão de artes do palácio, onde havia muitos tesouros, se viu um a que se pudesse, remotamente, comparar. Parecia ter sido forjado com água, ela própria parecia correr sem escorrer, por toda a sua extensão, partindo de uma discreta pedra azul no centro da testa. – É impossível! – pensou ele, maravilhado, pois a própria água, mais límpida e clara que ele jamais vira, corria em suas mãos na forma de um elmo da mais rara beleza.