A Ardente Janaína - DTRL24
- Silêncio! É isso mesmo, você precisa ficar calado, eles podem nos ouvir.
- Mas é você que está falando.
- Eu sei, então vamos ficar calados.
- Cara, você é maluco. Deve estar há muito tempo sozinho aqui. Falando nisso, como veio parar aqui? Quer conversar?
- Você fala demais. Mas tudo bem. Vou te contar bem baixinho, pois esses desgraçados querem me pegar. Eles querem nos pegar...
Desculpe se parecer poético demais, ou meio tolo, mas sempre gostei de escrever nas horas vagas. Era um passatempo, antes é claro, de tudo acontecer. Mas deixe-me começar logo. Lembro-me como se fosse hoje, mas não sei ao certo há quanto tempo estou aqui. Na ocasião, caminhava cambaleante pela calçada, ao cair da noite. Ela me conduzia como combustível para meu peito. Abraçava-me. Aquecia-me. Em resposta a beijava, e a cada beijo me embriagava. Meu consciente inconscientemente não existia, e eu não resistia. Éramos somente nós dois e o asfalto sob meus pés, refletindo a iluminação anêmica da rua deserta, cercados pelos sons dos galhos colidindo com o vento triste. Eu disse que poderia ser poético, ok?
- Tudo bem, prossiga!
“Seria aquilo amor?”
Essa questão instigante rondara meus pensamentos nas noites anteriores àquela. Noites em que Janaína me escravizava. Afirmo que amor próprio algum existia em meu cerne. Minha mente era molestada, e com ela o interior e todo o resto do meu corpo. E afinal, o que faria se sem ela já não podia viver? Questões e contradições apunhalavam meu peito, no passo que o coração batia descompromissado.
Venerava aquela cor, e aquele aroma impregnado em minha pele, o mesmo que exalava de minha boca, escapulia por meus poros e convertia-se em gotas mal cheirosas. Não só o exterior, mas principalmente o interior pedia por ela, a mente suplicava por repouso em seu seio, uma sede implacável. Não havia dia, tarde ou noite em que não estivéssemos juntos. Ela sempre tão ardente! Quase um conto de fadas; “um lúdico felizes para sempre, e que se dane o resto do mundo”. É... Bem assim; Que se explodisse toda porra do resto do mundo!
Eu, um alguém frustrado com seu passado, mas que tinha tudo o que queria. Janaína apenas se contentava em me satisfazer, e era assim; uma troca. Dava minha vida para tê-la e ela me seduzia diabolicamente, tal qual uma voz do inferno dentro do subconsciente sussurrando a todo instante:
“Possua-me! Sorva-me! Beije-me e molharei teus lábios com todo mel de minha essência, te darei todo meu prazer, todo meu delírio... Serei seu vício e sua inspiração. Não haverá mais nada com o que se preocupar. Nada nem ninguém.”
E eu a tinha, e ela me possuía. Letras e versos se aglutinavam em minha mente desenhando sonhos e pesadelos. Como eu queria colocar isso tudo num papel. Queria tanto falar com alguém que não fosse eu. Amores complexos. Um excesso de zelo, como se velasse por mim. Um bêbado, trajando um luto inabalável, gangorreando no lombo de um mamute preso a um iceberg... Flutuando, cada vez mais distante, o gelo se desfazendo em lágrimas frias... O vidro, a vida, o líquido que escorria queimando minha garganta. Só queria deter o tempo e navegar para um lugar onde as lembranças fossem constituídas de cinzas e queimassem numa fogueira solitária, e nada mais... Mas estou preso aqui, falando sozinho. Não queria ouvir essas vozes do medo, me assombrando. Não, eu só queria estar junto de minha família, minha verdadeira família. Alguém está me ouvindo?
- Eu estou. Continua, vai!
- Mas você sou eu. Será que não entendeu isso. Mas, porra, melhor continuar. E até que você é legal. Quer dizer, eu sou.
Então... A antipática lua enfim brotou em meio às nuvens. Essa lua sempre me sacaneia. Continuei a caminhar sob ela, abraçado a Janaína, dançando na escuridão, trocando pés, até que de repente os avistei parados e acesos como dois postes, esperando que trombasse neles. Ambos aparentemente dispostos a me roubar. “Malditos desgraçados, sumam daqui!” Gritei, e a voz saiu tão enrolada que até mesmo o autor de tais palavras teve dificuldade em reagrupá-las após essas serem propagadas juntas a uma saraivada de saliva.
Parados bem na minha frente estavam os marginais que queriam tirá-la de mim. O que eles fariam com ela? O que ainda queriam comigo? Dois jovens de terno e gravata, porém roupas velhas cheirando a cravo e rosas, possuindo cabelos lisos e negros, rasos como se a maior parte do couro cabeludo não existisse mais. Encaravam-me com aqueles quatro olhos rasgados e miúdos. A expressão em seus rostos borrados, as silhuetas tão semelhantes à de seu pai. No entanto o mais moço tinha um olhar sombrio, apenas duas bolas brancas e mórbidas estáticas dentro das órbitas, enquanto que o mais velho e mais alto me fitava com um riso quase ingênuo perdido no canto dos lábios. Banguela, o sangue de cor escura, quase preto, pingava da boca inchada e roxa. No entanto sabia que ele nada mais era que um bastardo.
Eram somente dois garotos, e os conhecia muito bem, ainda que não me atrevesse a acreditar que estavam lá, na minha frente, de verdade. Não, não passava de mais uma alucinação. “Aquela minha velha mania de ver mortos” Puxei Janaina para mim, segurei-a com força e mergulhei minha língua nela, e ela na minha língua. Fechei os olhos, meus lábios absorveram o momento, minha mão dominava minha amante. Escravo de pesadelos reais e intermináveis que iriam embora quando minha boca descolasse da dela, no ápice da sensação.
Abri os olhos, ainda experimentando aquele calor no estômago, mas nem mesmo esse episódio me livrou do pânico de vê-los ali balançando negativamente a cabeça, em movimentos tímidos. Olhei nos olhos do mais alto e notei a lágrima que tentava sem sucesso esconder toda tristeza e repulsa dele em relação a minha acompanhante. Ele queria que a abandonasse, e aquilo só fez com que por impulso a abraçasse com mais força. O mais novo mantinha-se firme, e me olhava. Acho que me olhava, por mais que os olhos não se movessem, e nem piscassem, mas o pescoço estava sempre inclinado para a esquerda e mirava de alguma forma cada movimento meu, com certo desprezo. Talvez porque minhas roupas estivessem sujas e meus pés descalços, inchados, ou quem sabe por ainda não ter se acostumado ao meu cheiro de esgoto. Mas ele também fedia, até mesmo para um morto. Sim, eu nada mais era que um mendigo, um louco, um pobre qualquer. Impossível não encará-lo, e ainda mais difícil não evitar olhar para baba espumosa que escorria no canto dos lábios, à medida que uma espécie de tique nervoso provocava nele uma reação espontânea. Uma das veias do pescoço estava mais volumosa, e tencionava provocando um tremor estranho, fazendo com que a cabeça se agitasse vez ou outra, de forma curiosa e assustadora, como se uma pequena descarga elétrica lhe atingisse do pescoço para cima.
Permaneci abraçado, ou melhor, agarrado a Janaina. E lá estava ele olhando para mim com o olhar compreensivo que herdara da mãe (a única mulher que havia amado de verdade na vida) enquanto o meu filho mais novo aparentemente me condenava, com olhos vazios como o meu peito. Encarei a morena de vestido vermelho, decote atrevido e cabelos encaracolados. Figura de um sorrir matreiro e sedutor, convidativa, o corpo cáustico como a própria bebida a qual eu usava de combustível para queimar toda amargura, dor e arrependimento que fazia morada em meu peito. Ela era tão sedutora, e aqueles olhos, e a boca... E...
- Ela era gostosa mesmo, hein?
- Claro que sim. Agora, nem mesmo posso tê-la.
- Trancado aqui, na seca, sozinho... Que porre hein, cara.
- Estamos juntos aqui, eu e você. Cale a boca que eu vou continuar!
- Vamos pra casa, pai! – O mais velho me chamou com um olhar doce (mesmo que suas feições não lembrassem uma pessoa viva, era fácil reconhecer meu filho ali, amparado num sorriso, enquanto se aproximava de mim. Aquele hematoma, a pele roxa... Sim, era meu filho Cláudio, que há tanto tempo eu havia desistido de amar, por simplesmente não entender o que diabos havia com ele. Olhei de volta, ainda vacilante, fixei os olhos e vi Jefferson logo atrás. Meu garoto mais novo apontava os olhos na minha direção, mas eu tinha certeza que aquilo não era ódio, não eram sombras, e sim algo bom por trás daquelas feições demoníacas. Foi quando finalmente o enxerguei. Ele estava triste, confuso, mas obstinado. O vi um pouco mais a frente, dentro do carro, os olhos quase brilhavam nas sombras, estava pronto para caça.
- Viemos te buscar, pai – Jefferson não resistiu e pausou, enxugando as lágrimas (como se elas estivessem mesmo molhadas) em meio aos soluços incontidos que escaparam cheios de sentimento – Está na hora de ficarmos todos juntos – Ainda bêbado, embora sóbrio, os olhava perdido em meio aquela baderna. “Que merda estavam fazendo? Por que correr atrás de um velho cachaceiro que os abandonou?”
- Te perdoamos, pai. Nós te amamos! – Falou, Cláudio.
O homem no carro tinha as mãos sobre o volante, punhos cerrados, cotovelos trêmulos, e os olhos tais quais os de um tigre que me observavam atentos. Moreno, de baixa estatura, um tanto quanto mudado, um homem com um propósito. A presença dele só me fez lembrar, daquele dia, naquele maldito parque.
- Por quê? Já se passou um ano! Não posso aceitar vocês dois! Isso, isso é ridículo, é humilhante! – Disse, sentindo que minha língua e boca mal acompanhavam as ordens de meu cérebro. Dormentes como a maior parte do corpo. Sim, estava zonzo – Vocês escolheram seus caminhos, assim como eu. Estamos todos ferrados, moleques! Todos!
- Eu sei pai, mas a culpa não é sua – Claudio disse, com paciência, a voz pausada me causava calafrios, não podia ser ele, eu estava alucinando mais uma vez – E é por isso que estamos aqui. Mamãe precisa de você, e Jefferson também – meu filho falou com um sorriso, tentando soar natural, mas o sangue ainda brotava meio escuro da boca, numa viscosidade pegajosa, escorrendo grosso como mel, ou pus. Os olhos iluminados pela lua.
- Não consigo entender! – Pronunciei confuso, enquanto o farol piscou e veio a toda em minha direção. O ronco do motor semelhante aos urros de uma besta fera louca para me matar. Não tinha reflexo, estava anestesiado pela enorme quantidade de álcool que havia ingerido. Na tentativa de correr senti o joelho direito dobrar de forma impetuosa e caí em desgraça sobre o calçamento irregular. Bati com a boca no meio fio e o sangue emergiu entre os dentes, dando um sabor adocicado e ferroso a minha saliva. Senti no céu da boca o inferno vermelho, uma ardência do cão. Por reflexo passei a língua sobre o local dolorido e observei a falta de um pedaço de meu dente incisivo. Voltei os olhos para o chão e lá estava. Pude ainda ver meus filhos estendendo-me a mão e por detrás deles enxerguei os olhos vingativos de Carlos. Este havia saído do carro e agora me apontava o cano de um calibre 38. E foi nesse momento que tudo veio à tona.
- Você vai contar do parque?
- Sim, preciso falar disso.
- Não gosto de lembrar dessa parte.
- Eu sei, é porque há uma parte de mim que não aceita. Vou continuar.
De fato aquela foi à coisa mais nojenta que presenciei na vida. As bocas deles se encontrando, as línguas depravadas se cruzavam, enquanto a saliva aparentemente tinha intenção de uni-las. Eles se acariciavam simultaneamente, as mãos tocando os corpos um do outro, como se fossem um casal de namorados “normal”. O pior foi ver o volume na calça de Cláudio, mostrando toda sua excitação, enquanto segurava em uma das mãos o pênis ereto do amante que escapava do zíper da calça jeans preta, massageando-o de maneira impulsiva e frenética. Corri até ele, enojado, e Cláudio logo me reconheceu, ficando em pânico na mesma hora.
- Nossa, acho que falamos disso ontem?
- Sim, e anteontem também. Mas vamos conversar sobre o que?
- É que isso é um assunto chato.
- Mas é necessário para que você entenda.
- Mas... Ah, continua!
Bom, pouco antes eles estavam aos garros. Dois homens se beijando. Em pensar que havia seguido meu filho achando que o garoto estivesse em uma enrascada. Podia estar se envolvendo com uma mulher casada, ou uma garota de menor. Não sei. É que seu comportamento era cada vez mais suspeito, e eu pensei em tantas possibilidades. Mas não. Para minha desgraça descobriria algo pior que isso. Cláudio era gay. Meu Deus, aquilo não podia ser verdade! Criei um homem e não uma mulherzinha! Abri o porta-malas e apanhei a chave de rodas. Ia matar aquele desgraçado que virou a cabeça do meu filho.
- Pai?? – A voz de Cláudio soou tão feminina, estava pasmo, enquanto o outro me fitava de olhos arregalados e lábios molhados. Tal cena e percepções só me enfureceram ainda mais.
Enquanto ia de encontro a eles o garotão tentava colocar seu membro ainda ereto para dentro da calça, de forma desastrosa, prendendo a cabeça da coisa no zíper. Avancei contra ele e preparei-me para acertar-lhe a chave, o golpe foi certeiro, o alvo é que foi errado, pois meu filho pulou na frente recebendo o choque do aço bem na testa. Num estalo de dedos o corpo caiu aos meus pés. Aquilo foi o bastante para que eu soltasse a chave e pegasse Cláudio nos braços. Ele sorriu para mim, mas não falou nada, simplesmente assisti os olhos pararem vegetativos, e percebi que seu coração já não batia mais. Ele morreu antes mesmo que pudesse fazer algo. Entrei em estado de pânico.
O garoto me encarou com olhos vermelhos, pegou a chave de rodas e ameaçou vir em minha direção. Frangote! Dei-lhe um soco no rosto e ele caiu para trás, sentado, de bunda na grama rasteira que estava sob nossos pés. Olhou para mim outra vez, amaldiçoou – me. Revidei com um olhar insano e ele engatinhou de cócoras, dando dois passos para trás, num misto de pavor e ódio. Carlos levantou-se e correu, choramingando. No calor do momento entrou no veículo de meu filho, e saiu em disparada, fugindo.
- Ele fugiu mesmo?
- Fugiu.
- Que covarde!
- Era apenas um garoto com medo. Cheio de segredos. E tinha mais um segredo para guardar, afinal se me entregasse todos saberiam que era gay, e ele não queria isso.
- Como sabe?
- Eu o vi depois disso, andando como se fosse um homem de verdade.
- E ele?
- Ao me ver, abraçou os livros com força, pareceu bem assustado e apressou os passos na direção contrária a minha, dando meia volta.
- Nossa. Continue a contar, essa parte da história é importante.
Tá certo. Mas é o seguinte: O que eu podia fazer? Olhei para os lados, aquele lugar estava deserto. Peguei a arma do crime e saí sem despedir-me do corpo. Tomei um caminho diferente na volta para casa. Após dez minutos de trânsito pacato, parei em frente a meu antigo local de trabalho. Um posto de gasolina desativado que ficava em frente de um ferro velho. Bem ali tive minha primeira oficina mecânica. Lavei minhas mãos no tanque imundo que ficava ao lado de um banheiro inutilizado. O breu tomava todo o local. O cheiro da água podre descia direto da caixa que ficava acima da laje do banheiro. Podia até sentir a viscosidade do lodo que escorria pelos canos.
A cena do golpe na testa de Cláudio se repetia em câmera lenta em minha memória. Terminando de lavar as mãos fui em direção da cerca de tela que separava o posto do ferro velho. Pulei a grade, subindo entre os vãos dos arames e caí do outro lado pisando firme sobre a terra batida. Olhei para a enorme pilha de sucata a minha frente, me aproximei dela, abaixei-me e desloquei alguns entulhos e ferros, colocando a chave por debaixo deles. Saí de lá e segui em direção a minha casa.
Ao chegar, guardei o carro na garagem, entrei e descobri que Jefferson havia dormido de frente a TV assistindo o programa “A Grande Família”. Vi de relance Lineu e Augustinho discutirem por algum motivo, mas não tinha cabeça para aquilo. Peguei meu filho nos braços e o carreguei para sua cama. O cobri e fui até meu quarto, naquela noite mal fechei os olhos. As horas passaram lentas e cercadas de melancolia. Acordei por diversas vezes, pensando que tudo havia sido um sonho ruim, mas em todas as vezes que acordava bastava ir ao quarto procurar por Cláudio ou ir ao carro e abrir o porta-malas que constatava que nem meu filho, nem a chave de rodas estavam mais comigo.
Na manhã seguinte a segunda coisa que fiz foi ir acordar o Jefferson.
- Ei filhão, hora da escola rapa! – Disfarcei como pude – Levanta logo e acorda o preguiçoso do Cláudio – Falei, enquanto ele cobria a cabeça. Desci até a cozinha e olhei para mesa de café, a mesma que há pouco havia preparado como fazia todas as manhãs.
Três pratos com três torradas. Uma em cada. Eu e Jeff sempre bebíamos café, mas Cláudio gostava de suco de laranja, ou de manga, natural e bem gelado. O copo dele está lá, no mesmo lugar de sempre, duas pedras de gelo como ele pedia e eu nem sabia o porquê de ter feito aquele maldito suco.
Júlia apareceu na quarta cadeira, sentada, olhando para mim. O corpo estava debilitado, mais magra do que a última vez que a havia visto. Balançava a cabeça, em negativa. Olhou para a mesa, sorriu e pude ver dentes podres e vermes passeando pelas gengivas roxas, tão diferente de como ela era. Enfiou a mão dentro da boca, o braço entrava e os olhos continuavam a mirar-me como se nada estivesse acontecendo. A mão mergulhou na boca, que se escancarou de forma grotesca. Dava para ouvir o som do maxilar estalando e o braço a seguindo o caminho aberto pelos dedos, até o cotovelo travar, deu para perceber o peito dela se repuxando, a carne seca, de dentro para fora. A mão vasculhou até agarrar algo e puxar. Junto com ela saiam vermes grudados aos braços, e um cheiro podre invadia o ambiente. De dentro de si tirou um pedaço de carne podre e fétida que colocou sobre a mesa. A coisa era um pulmão em decomposição. Ela me olhou mais uma vez. De súbito pus começou a brotar de seus olhos, e os lábios e pele derreteram-se como fossem feitos de cera. Ela se liquefazia, ao tempo em que o pescoço caia por sobre a mesa. Eu sabia que era irreal, fechei os olhos, balancei a cabeça, e quando abri novamente para meu alívio ela não estava mais lá.
- Nossa, que louco!
- Foi horrível.
- E você ainda a vê?
- Não vejo ninguém há muito tempo, nem real, nem irreal.
- Que merda!
- Vou continuar, ok?
- Ok!
Fiquei meio atordoado com aquela cena, parado, confuso. Só podia estar ficando louco. Respirei fundo e então senti o toque gélido em meu ombro, um frio percorreu minha espinha e quando virei, vi meu filho com testa inchada, um buraco mo meio dela, sangrando e ele chorando copiosamente. Senti uma sensação ruim, afastei-me dele pedindo perdão. Ele abriu os braços como se quisesse me abraçar e começou a caminhar em minha direção. Encolhi-me assustado, e quando ele ia me envolver em seus braços, fechei os olhos, e ele desapareceu.
Minhas mãos estavam trêmulas. Eu precisava de algo que me acalmasse. Talvez um café, água com açúcar... Precisava de algo para beber. E foi então que a vi, a morena desenhada no rótulo.
Havia ganhado aquela garrafa de um primo meu no ultimo Natal, mas eu não bebia há tempos. Era uma pinga muito boa. Seu nome era Janaína. Até então eu a usava para temperar a carne, isso era um costume antigo que herdara de minha querida Júlia. Peguei-a, olhei e rodei a garrafa vagarosamente em minhas mãos, despejando em seguida um pouco do líquido no copo. Virei à cachaça num gole só e ela entrou ardente por minha garganta. Guardei-a e chorei. Ainda olhando para a mesa me surpreendi com a chegada de Jefferson.
- Pai, ele não está lá, o Cláudio não dormiu lá, pai! – Jefferson estava assustado, e confuso. Também pudera, pois o irmão nunca dormira fora, era um garoto muito responsável. Ele me viu chorando, mas de certo imaginou que como sempre estivesse pensando em sua mãe, e disfarçou.
Assim que falou peguei meu telefone e liguei para Cláudio, mesmo sabendo que ele não iria atender, não mais. Nas várias vezes que liguei o telefone caiu na caixa postal. Enfim acionamos a polícia e fiz o boletim de ocorrência registrando o desaparecimento dele. Tinha vários conhecidos que já haviam consertado seus carros comigo. Após seis horas recebemos a visita de dois policiais. Já imaginava o que eles queriam me dizer.
O sargento Pedro olhou para mim, me conhecia muito bem. Sabia o quanto havia sofrido com a doença de minha esposa. Gastei todo meu dinheiro tentando salvá-la de um maldito câncer. Perdi minha oficina, meu posto e meu ferro-velho. Agora era apenas um mecânico que fazia bicos por aí tentando sobreviver e sustentar meus filhos.
- Achamos o carro dele cerca de dez quilômetros do parque, não foi levado nada. Recebemos a informação de que duas crianças haviam encontrado o corpo de um jovem com uma ferida na cabeça, caído perto do parque municipal – Ele me encarou nos olhos e eu olhei para Jeff, que estava afogando-se em lágrimas – Sinto muito, Ivan, mas seu filho está morto – Aquele foi o pior momento daquele dia. Jefferson não se conteve e atacou o policial, gritando histérico, dizendo que ele estava mentindo. Pedindo para o policial retirar o que disse.
Lembro-me do homem chorar de pena de meu filho. Eu chorava principalmente por Jefferson, pois algum sentimento dentro de mim bloqueava qualquer relação que tivesse com Cláudio. Os dias passaram, tentei fazer algo para ajudar Jeff, mas não conseguia. Eu só queria Janaína. Queria beber, esquecer de tudo. Enquanto isso ele se afundava em antidepressivos, calmantes e em uma porção de outros remédios. Estava sozinho, pois o abandonei.
- Você devia tê-lo ajudado.
- Eu tentei.
- Bom, tentar não é o bastante.
- Mas eu tentei de verdade. Deixe-me terminar.
- Prossiga.
Jefferson já tinha me pedido para parar de beber, mas eu não consegui, fui fraco. As nuvens carregadas acabariam por desabar sobre nós, as lágrimas de Jeff evaporaram-se com o tempo, e ele se trancafiou dentro de si mesmo. Tudo era tão monótono sem o Cláudio. Comecei a sentir falta de meu filho, mas aquele era um caminho sem volta.
Estava cometendo o mesmo erro com Jeff, e então resolvi acertar as coisas entre nós. Certo dia comprei flores para levarmos ao cemitério, pois fazia um ano que Cláudio morrera e havia decidido contar a verdade para meu filho e também queria pedir perdão para Cláudio.
- Contar a verdade?
- Era uma ideia.
- Contar para um filho que matou o outro filho?
- Mais ou menos isso.
- Você é mesmo estúpido.
- Sim, eu sou.
Quando cheguei em casa, mais cedo do trabalho, sabia que não seria uma tarefa fácil e que possivelmente ele nunca mais olharia para mim, mas a verdade tinha que ser revelada. Eu ia contar mesmo. Naquele dia não tinha bebido uma gota sequer, entretanto o cheiro de Janaína ainda permanecia em mim. É assim com a cachaça, o efeito passa, mas o odor permanece por mais tempo.
Subi até o quarto, enquanto meu coração me dizia algo, algo que eu não conseguia decifrar. Certamente pensei que era a ansiedade aliada ao receio de revelar aquele maldito segredo. Abri a porta do quarto após bater e não obter resposta alguma.
O tempo pareceu passar em câmera lenta. Ouvi o ranger displicente da porta escandalosa que me denunciava. Esperei um berro como resposta, mas o silêncio me agredia como uma agulha espetando minha pele. Quando olhei para dentro do quarto a imagem torturante que chegou como uma bala a minha mente fez com que eu fechasse os olhos e os abrisse depois de alguns segundos, segundos esses em que pedi a Deus (se ele ainda estivesse me ouvindo) para que aquilo tudo fosse uma alucinação causada pelo álcool dos dias anteriores.
Abri os olhos novamente e lá estava ele, meu filho, deitado nu sobre sua cama, estava na posição fetal como se pedisse ajuda a sua mãe de dentro do ventre dela. Jefferson abraçava a foto do irmão. Aquilo era a parte mais poética da história, pois o horror estava expresso em sua face, os olhos estavam presos, inertes, fitando a escuridão de um corpo sem alma, olhando diretamente para o seu fim, e a boca estava cheia de espuma, babada, uma babugem esverdeada, enquanto uma de suas mãos pendia do lado da cama denunciando, como se apontasse para as cartelas vazias dos comprimidos esverdeados que estavam derramados pelo chão. Três cartelas que custaram sua vida.
- Caramba, ele se matou mesmo?
- Sim, por minha culpa.
- Sei que é chato, mas a culpa foi sua mesmo.
- Eu devo estar louco, como posso estar conversando comigo mesmo?
- Não sei. Pode ser que eu que esteja fazendo isso.
- Hã?
- Nada. Continue.
Não acreditei naquela cena. Caí de joelhos, e as lágrimas atravessaram as barreiras de meus olhos, levando embora toda minha esperança, amor e compaixão. Naquele momento tive certeza que Deus me abandonou. Não que eu merecesse sua ajuda ou compaixão, é que é sempre uma esperança. Daí em diante só restamos eu e Janaína.
Não me lembro de muita coisa, vi Janaina cair no chão, senti meus ossos se quebrarem. Mas eles estavam comigo, meus filhos vieram me buscar. Segurei as mãos deles e senti uma leveza incrível no corpo, a luz estava cada vez mais forte. Um calor imenso começava a se aproximar. Aquela não era uma luz comum, mas algo parecido com fogo, labaredas enormes, que a cada vez que se aproximavam queimando minha alma.
Olhei para meus filhos e eles balançaram a cabeça.
- Estou indo para o inferno? – Perguntei sabendo que sim. Mas havia algo que não entendia. Por que eles estavam ali? Claudio me olhou nos olhos enquanto Jefferson parecia perdido, e isso era o que havia acontecido, ele morreu antes da hora, agora aguardava vagando por aí até o dia em que sua alma encontrasse descanso.
- Escolhemos isso meu pai. Não há céu, não há paraíso, não há paz com o senhor aqui – Caí de joelhos perante meu filho, senti as chamas fritarem minha alma, uma dor imensa me tomou, e então o pedi perdão.
- Me perdoe querido, eu fui um tolo, um preconceituoso, e onde isso me levou, e olha o que fiz com vocês. Eu amo você, independentemente do que seja. Perdoe-me!
- Eu nunca briguei com você pai, e nunca te abandonamos. – Naquele momento as chamas nos cercaram e demônios surgiram rugindo, uivando, batendo suas asas e revelando seus corpos vermelhos e queimados. Um terrível cheiro de enxofre visitou à nossas narinas e nos vimos cercados. Claudio e Jeff me abraçaram e senti que nada mais importava, nada senão meus filhos e minha família. Esperava que Júlia também me perdoasse. Pensei se a encontraria um dia.
Fechei meus olhos e esperei que fosse feita a sua vontade. Senti uma mão pousar sobre minha cabeça. Pensei que pudesse de fato ser Deus me perdoando. Olhei para o alto, era Carlos, e não havia somente uma mão, mas sim as duas, uma segurava meus cabelos e a outra apontava uma arma direto na minha testa.
Nenhum de meus filhos estava ali. Olhando para longe, vi apenas três corpos de luz indo embora. A luminosidade se desfez e as sombras ainda me cercavam.
Olhei para ele uma última vez, o garoto pressionou o gatilho e ouvi o som do disparo. Foi tudo muito rápido. A bala se alojou dentro de minha cabeça e eu morri.
- Morreu?
- Sim, obviamente.
- Mas você está falando comigo.
- Objeção. Eu sou você. Você é só uma mania que eu tenho.
- Acho que você é louco.
- Eu sou mesmo.
- Pode-me dizer onde estamos se você morreu?
- Já vai saber.
Escutei o som do silêncio, estava sozinho novamente. As sombras viriam me pegar e eu precisava me esconder. Senti o cheiro de enxofre se aproximando. Olhei para o chão e lá estava ela. Janaína estava inteira e ali ficaria. Senti-me envolto pela vida, pelo vidro, pelo meu amor. Não sei como aconteceu, mas aconteceu. Entrei dentro da garrafa, e aqui estou. Aqui estamos.
- Numa garrafa?
- Isso mesmo.
- Morto?
- Sim.
- Louco! Não acredita mesmo nisso né?
- É a verdade. Estou sozinho aqui, há muito tempo.
- E onde estamos, não somente nós, mas a garrafa? Ela ainda está na rua?
- Não. Ele a pegou. O Carlos a trouxe para casa dele.
- Estamos na casa dele?
- É. Na estante. Como um troféu.
- Hum. Estranho.
- Eu acho que ela está o controlando também.
- A garrafa?
- Não. Janaína.
- Ela não existe, era só a pinga.
- Existe sim. Ela existe de verdade.
- Como você sabe?
- Eu ainda sinto a presença dela. Ainda quero experimentá-la. É como se ela tivesse me escravizado. Ei, você está aí?
- Não quero mais conversar, melhor pararmos. Isso não é real. Nada é real... Você não sou eu. Deus que me perdoe. Quero sair daqui! Hey, tem alguém me ouvindo? Quero sair! Me ajudem, por favor, tem paredes de... Vidro? Está embaçado. O que é aquilo? Parecem olhos. Quem está nos vigiando? Quem é você? Tá afim de conversar?
Fim!
Temas: De certa forma, todos.