HISTÓRIA DE MORTE CONTADA POR UMA MOCHILA (DTRL 24)
baseado em fatos reais
para meu pai
E como num bote de cobra Carlos venceu os dez metros que os separavam numa corrida rápida, pegou o inimigo de um jeito estranho, com uma força estranha, levantou-o acima da cabeça e atirou-o lá embaixo, na Vinte Três de Maio.
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Todo dia, às 6:20h da manhã, Carlos estava no ponto da estação Santa Cruz para pegar o ônibus Perdizes rumo à faculdade. Quase toda a multidão do ponto entrava naquele ônibus e o caminho até a Rua da Consolação, lá embaixo, depois do cemitério, era bem longo. Mesmo na falta de espaço, a maioria tentava se respeitar, se espremer para o outro tentar descer no ponto certo e coisas desse tipo, se oferecer para segurar uma bolsa pesada para quem viajava de pé ou até ceder o lugar, essas gentilezas comuns do dia-a-dia, afinal estavam todos no mesmo barco, ou melhor, no mesmo ônibus lotado.
Três pontos mais adiante, despois da estação Vila Mariana, outro aluno da mesma faculdade também pegava o mesmo ônibus. Ocorre que essa pessoa, desde a primeira semana de aula, entrava no ônibus lotado com a mochila nas costas, esbarrando nas pessoas, abrindo caminho, estabanado, como se não tivesse controle sobre os próprios movimentos. Carlos se encolheu o máximo que pôde para dar passagem, mas o cara deu-lhe uma mochilada forte e desse desagradável momento em diante nasceu um desafeto.
Também pegavam o mesmo ônibus de volta no mesmo horário e o cara ia abrindo caminho, esbarrando a mochila em todo mundo até chegar na porta de trás, que em São Paulo é a porta de saída. Sempre conseguia dar uma boa mochilada no coitado do Carlos que queimava num ódio silencioso. Sofrer em silêncio era o seu estilo.
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Era uma segunda feira e Carlos chegou atrasado ao ponto. O próximo ônibus passou quarenta minutos depois e ele conseguiu um lugar vazio para sentar no fundo, onde a vista era privilegiada porque os bancos do fundo do ônibus, naquela época em São Paulo, eram elevados, pois estavam instalados sobre o motor.
Já estava irritado por causa do vacilo de perder a aula de anatomia, que é uma coisa ridícula para um curso de Psicologia, mas ele ficava excitado com a repulsa que os pedaços de gente morta em conserva causavam nas meninas. Acalmou-se um pouco embebido em lembranças excitantes até que foi jogado de volta à realidade por causa de uma movimentação estranha. Identificou a mochila do seu inimigo esbarrando com força nas pessoas.
A irritação voltou e conforme a mochila e o dono avançavam até a porta traseira, a porta de saída, a irritação transformava-se em fúria. O ônibus já havia atravessado a Rua Joaquim Távora quando chegaram perto da porta. Os dois, ou melhor, os três se entreolharam: ele, a mochila e seu dono. Olhares diferentes, querendo dizer coisas distintas e não compreendidos dentro da situação fora do comum.
Carlos poderia jurar que viu a mochila preta olhar para ele com expressão maldosa, talvez por causa das dobras no contorno do zíper, mas teve certeza de ver no rosto do seu inimigo um olhar de medo. Levantou-se e postou-se ao lado do desgraçado e sua maldita mochila. Encostou-se ameaçadoramente no indivíduo, como que disputando o lugar, tomando cuidado para não ser surpreendido pela mochila. Sentiu que seu inimigo mostrava um medo respeitoso. Sentiu aquele era o seu momento.
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Alguém deu o sinal para descer no primeiro ponto da Avenida Paulista e o cara desceu apressado, esbarrando a mochila nas pessoas que se aglomeravam no ponto. Carlos desceu atrás, num impulso, determinado a dar um bom susto no idiota. Não costumava perder uma chance dessas, com o oponente enfraquecido pelo medo.
Passaram pela Praça Oswaldo Cruz, atravessaram a rua entre os carros, entre as buzinas e pneus cantando nas freadas. O desgraçado continuava esbarrando a mochila impiedosamente nas pessoas, seguido por Carlos que não o perdia de vista. Sentindo-se perverso por o dono da mochila olhava várias vezes para trás, com certeza, apavorado.
Passaram pelo Shopping Paulista, passaram pelo Hospital Oswaldo Cruz e, virando à direita, pegaram a Rua João Julião. Nem todo mundo conseguia desviar a tempo da mochila, afinal às 7:30h da manhã os reflexos ainda estavam preguiçosos.
Mas Carlos e seus reflexos estavam bem acordados.
Naquele rápido quarteirão da Rua João Julião o dono da mochila olhou muitas vezes para trás e era possível ver o pavor estampado no seu rosto crescer numa expressão contorcida. Carlos sentiu-se mais forte ainda, muito mais perverso e apertou o passo, chagando mais perto. Correu para atravessar a rua antes que o farol abrisse. Estavam no Viaduto Beneficência Portuguesa, com a Vinte e Três de Maio assustadora abaixo deles.
E como num bote de cobra Carlos venceu os dez metros que os separavam numa corrida rápida, pegou o inimigo de um jeito estranho, com uma força estranha, levantou-o acima da cabeça e atirou-o lá embaixo, na Vinte Três de Maio.
Antes que recomeçasse a andar, como se nada houvesse acontecido, ouviu o baque do corpo caindo sobre algum carro, pneus cantando, buzinas disparadas, batidas fortes, vidros estilhaçados.
Carlos nem olhou para trás; sentia o vento fresco de uma linda manhã de sol.
Entrou na estação Vergueiro do Metrô e parou intrigado. Saiu da estação e olhou para o aglomerado de gente olhando para baixo e seu coração acelerou quando viu a cena estranha que acontecia:
Pessoas tropeçavam na mochila que parecia se enrolar nas pernas que passavam com uma rapidez de bicho e as pessoas caíam umas sobre as outras. Não foram duas ou três; mais de dez. A mochila enrolava as pernas de duas pessoas ao mesmo tempo e assim que elas caíam, partia para outras pernas.
TEMA: Objetos mal assombrados
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