O pão que o Diabo amassou DTRL24
"Cada dia a natureza produz o suficiente para nossa carência. Se cada um tomasse o que lhe fosse necessário, não havia pobreza no mundo e ninguém morreria de fome."
Mahatma Gandhi
Os olhos amarelados revelavam uma profunda anemia, o rosto ressequido e queimado de sol transbordava miséria.
Esticou a mão trêmula quando uma senhora passou rapidamente ao seu lado.
- Me dê uma moedinha por favor, estou com fome- suplicou a pobre coitada.
- Vai trabalhar vagabunda- vociferou a madame deixando apenas o rastro do seu perfume importado.
Clarice, hoje aos quarenta e cinco anos, vive pelas ruas, sem rumo e direção. Alimentando-se dos restos de comida que encontra nos lixos da movimentada cidade de Vitória.
Perdera tudo que mais amava, sua família. Começou como um refugio para os tantos problemas, e logo tornara-se escrava das drogas e do álcool. Vendeu os poucos pertences que tinha em casa para saciar o seu nocivo vício. Carlos, seu marido, cansado de toda aquela situação, a expulsou de casa.
Prisioneira do descaso e da insignificância, vendia seu corpo por moedas ou até mesmo por uma "purinha", sofria agressões constantemente até chegar no auge da desgraça, contraiu HIV.
Agora era tarde para lamentar, não via seu filho há mais de cinco anos. Todas as noites sonhava com Gabriel lhe abraçando. Ele sorria e comemorava a sua volta.
- Mamãe você voltou!- Acordava no meio da noite sobre o chão frio e úmido, coberta apenas por jornais velhos e papelões.
A única lembrança sóbria que lhe restara, era a de uma foto desgastada, que guardava dentro de um saco plástico remexida aos poucos "trapos" que tinha.
Desde então vivera pedindo esmolas, compartilhando suas dores com a solidão. Vista como louca, falava sozinha pelas avenidas. Humilhação e desprezo, palavras que jamais esqueceria.
O sol castigava a sexta feira, era 20 de maio, data que Clarice lembrava com muita dor. Dia em que saíra de casa, dia que deixou de viver.
Se pôs de pé e recolheu os jornais que fora forrado sob a marquise de um bar . Suspirou e sem que percebesse uma amargurada lágrima escapuliu dos olhos. Quanto horror, quanta dor em um único peito.
Caminhou vagarosamente até uma padaria que começava o seu expediente. O aroma de pão fresco invadiu- lhe as narinas e fez com que um estrondo emergisse em seu estômago. Havia tanto tempo que não saboreava algo tão apetitoso, só sobras azedas e repugnantes das lixeiras.
Foi até o balcão e perguntou quanto custava o pão. A atendente fez pouco caso e virou as costas. A fome lhe subiu a cabeça e num ato impensável pegou uma sacola do alimento que repousava sobre o balcão, e antes que fosse repreendida correra em direção a rua.
A jovem que se mantinha ocupada atendendo um outro cliente, tardiamente percebeu o feito da mendiga e gritou:
- Pega ladrão!
Clarisse assustada, disparou como um bicho do mato, cegada pelo medo de ser pega não percebeu o carro que vinha em alta velocidade , e inevitavelmente mergulhou sob os pneus do esportivo. O gosto que sentiu não condizia a trigo ou a cereais,era forte e ferroso. O líquido rubro e viscoso destacou-se no asfalto.
Três pães sobrevoavam a pista. A imagem de Gabriel sorrindo acompanhou o seu último suspiro.
Clarisse jazia morta no chão.
Tema: Escravidão, solidão e doença.
Espero que gostem, meu primeiro conto no desafio.