O Mal que Habita - DTRL24

Há quanto tempo estou escrevendo? Refletia Cléber. Lembrava que almoçara alguma coisa da geladeira, que estava bem suja pelo que lembrou, a geladeira e não a comida, que parecia válida.

A falta de relógios na casa nunca havia incomodado, mas precisava saber que horas eram. Procurou o celular no sofá, onde esteve sentado a tarde toda escrevendo um trabalho para a faculdade no notebook. Que sábado horrível! Sozinho em casa, sem planos para noite ou domingo. E como ficou escuro tão de repente, ou era a noção de tempo sendo perdida?

Nada de celular. Levantou e testou o interruptor de luz. Que zona! A sala estava pior que a geladeira. E toda aquela roupa suja, não lembrava de ter tanta roupa. A luz apagou. “Merda! Interruptor idiota! Tenho que ver isso um dia” comentou para a sala bagunçada e escura. Busca a lanterna, ainda com pilhas e vai acender a luz da cozinha. “Que dia tedioso!” Precisava dar um jeito nisso qualquer dia.

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Mariana reclamava, cercada por caixas e pilhas de papéis, sobre o quanto tinha de arrumar naquela casa. O único ouvinte: seu gato, Godofredo. Nomeava as caixas com etiquetas. Parecia que estava de mudança, mas era só mais um sábado marcado no calendário, para arrumar e catalogar as tralhas que a mãe deixara no inventário pós-morte.

Fazia apenas um mês desde o falecimento, um mês e três dias, duas horas e quinze minutos. Os segundos havia sido esquecidos a algum tempo, mais exatamente há duas semanas e doze dias. “Chega! Preciso comer, já são cinco para o meio-dia.”

Acabado o almoço, lavada a louça (cinco vezes e secando por ordem de tamanhos), organizada a mesa (retirados os “farelos” inexistente com uma escova de pelos macios, passada por 50 vezes nos dois sentidos e limpa a mesa com álcool em movimentos circulares até as duas mãos cansarem) e escovados os dentes (parando quando as gengivas sangrarem). Confere se colocou a comida do gato, verifica umas 20 vezes, com intervalos de trinta segundos entre cada ato. Continua a etiquetar até anoitecer, quando decide pegar o último objeto do dia.

Uma pequena escultura de madeira feita à mão. “Onde sua mãe comprara aquele item?” Iria para caixa de enfeites ou decoração? Qual era a diferença de uma para a outra, precisava saber, mas antes sentiu que deveria jogar fora aquela porcaria. “Porcaria! Vou te jogar fora!” segura a escultura apertando com raiva repentina. De onde surgira a vontade súbita, não sabia. Com um desejo incontrolável, seguiu em direção a porta da frente a passos apressados e logo estava correndo quando chegou ao pátio.

Atirou longe aquela escultura, que voou pelo céu e acertou um carro bem no retrovisor, mas sem disparar o alarme. Mariana disse, pela primeira vez convicta que não precisava voltar atrás: “Que se dane!”.

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O micro-ondas apita, comida pronta. Cléber senta no sofá e assiste qualquer coisa que não passa na televisão, já que estava quebrada. Come metade e resolve sair de casa para andar pela rua.

O bairro não era dos piores. Podia ir até um bar quem sabe. Caminha muitas quadras, andando no meio da rua despreocupado, até que chuta um objeto no chão. “Que isso?” e logo se abaixa e segura o objeto. Uma escultura de madeira, em forma de… “Que isso?” pergunta pela segunda vez. Pensa se tratar de um gnomo, ou Gremlins, daquele filme da sua infância, os que não podiam entrar em contato com a água ou ficavam igual àquela figura da escultura. Volta para casa querendo testar a teoria, esquecido do que planejou e achando muita graça.

Chega e coloca a escultura dentro da pia que estava cheia de louça suja e entupida com água até a borda. “Tenho que resolver isso!” Decide lavar a louça agora. Coloca a escultura em cima do micro-ondas e inicia a limpeza, esquecido de si mesmo e com a mente centrada na ação.

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Um caminhão para na frente da casa de Mariana. Sai apressada e logo pede que o carregador entre e leve aquelas caixas. Decidiu doar tudo para o albergue. Trezentas caixas cheias de itens para casa (pratos, panelas, cabides, porta-papel toalha, copos) e mais um monte de tralhas, móveis de madeira de todos os tamanhos, eletrodomésticos, etc. Ainda assim, depois de um mês, havia sobrado todos acessórios e móveis preferidos de sua mãe. Escolheu os mais bem conservados e montou a casa toda com o que selecionou. Em pensar que havia pelo menos 5 versões diferentes de cada item, em cores diferentes e variados tamanhos.

Pensando melhor, como deixara passar aquela mania de acumular? A mãe que tanto cuidava dela estava precisando de muito mais atenção no fim da vida. Logo Mariana passou a morar junto com a mãe, uma senhora de 75 anos e em uma casa de 45 m2. Como em sã consciência não percebeu que mal havia espaço para se mexer dentro da casa. “Talvez eu estivesse tão louca quanto ela”.

O relógio de pêndulo começa a soar, dez horas da noite em ponto. A hora de ir dormir chegara, não sem antes conferir a comida do gato. Mariana chega até a tigela. “O que estou fazendo? Não preciso mais disso!”. Olha de longe e verifica que o bichano ainda não comeu tudo e que não precisaria de comida até amanhã. Se vira e percebe que não queria dormir.

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A casa estava limpa. Pela primeira vez desde que fora comprada. Sacolas pretas de lixo acumulavam-se na porta, lotadas, de comida estragada, roupas mofadas, coisas quebradas e mais um monte de lixo variado. Cléber se sentia bem, um pouco perturbado, mas bem assim mesmo. “Quanta sujeira!” diz para si mesmo, olhando uma sacola em específico que tinha só poeira, cabelos e insetos mortos.

Já consertara o interruptor, levara a TV ao técnico, passara o aspirador de pó (nem sabia que tinha um), abrira armários, bancadas, desinfetando e encerando tudo que podia. Nem dormiu ou comeu algo e o domingo estava chegando ao fim. Não queria parar ainda faltava lavar a roupa e secá-la, e o incrível é que também tinha uma máquina de lava e seca que funcionava. Como podia ter passado tanto tempo sem perceber a própria imundice? Colocou a roupa que não foi jogada fora na máquina de lavar e acionou a programação. E como estava sujo depois da faxina, precisava tomar banho.

Antes pegou a estátua de gnomo que encontrou na rua e levou até o espelho do banheiro. “Olá amigo, o que me conta de novo?” ficou um tempo admirando seus olhinhos feito de pedras bem pequenas. Uma imagem passou na sua mente, algo sombrio, em sofrimento, um vulto de uma pessoa em inanição profunda, com olhos afundados e a pele descolando dos ossos. Apareceu um instante, parecia tanto consigo, a imagem colou na sua retina e mesmo fechando os olhos permanecia uma sombra do vulto. Um arrepio passou pelo seu corpo.

Após horas de água e usando uma esponja de cozinha, Cléber descamou a pele até que ardesse. Olhou as mãos viu que as unhas deviam ser cortadas, quando foi pegar o gnomo no espelho do banheiro para lhe fazer companhia, percebeu que havia desaparecido.

Revirou a casa, literalmente refez a bagunça, moveu o sofá, geladeira, raque, esvaziou gavetas e depois sentou no sofá, cansado. Ligou o notebook e não sentiu vontade de mais nada, nem estudar e nem limpar. Colocou um filme na internet e tentou prestar atenção. Pensava enquanto as imagens passavam na tela. De onde viera aquela vontade louca de arrumar tudo? Agora só sentia exaustão e, com o computador ainda no colo, foi cochilando meio de lado no sofá.

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Mariana ligara na noite de sábado para uma amiga e sem se arrumar direito foi buscá-la para ir em uma boate dançar. A quanto tempo não tomava um porre, quanto tempo sem beijar alguém e dançar até muito tarde?

Chegou as cinco da manhã de domingo e dormiu no sofá emborcada de barriga pra baixo. Acordou no meio da tarde, com gosto nojento da boca e dor de cabeça, mas contente de ter extravasado. Queria tomar banho e comer algo, já se levantava da posição horrível que havia deitado quando percebeu um objeto desfocado no braço do sofá, por um instante achou que parecia um enfeite de cabelo, mas quando o foco se fez soltou um grito estrangulado por causa da boca pastosa e um enjoo súbito a fez correr ao banheiro.

Vomitou algumas vezes e ficou no chão pensando se iria até a sala confirmar o que vira ou se trancaria no banheiro. Levantou, lavou o rosto e enxaguou a boca. “Foi só minha imaginação de ressaca” dizia a si mesma.

O gato estava no sofá olhando para o objeto sinistro que ontem mesmo Mariana jogara longe na rua. A escultura de madeira ficou ali no braço do sofá encarando o gato, e o animal chiava com o pelo alto e em posição de ataque. Com calma a dona chamou o bicho, que virou imediatamente e correu assustado da sala indo se esconder na cozinha onde olhava de longe e miava constantemente.

Um pouco mais controlada, caminhou até a escultura e a pegou com um pano. “Como você chegou aqui?”. Enrolou no pano e achou uma das caixas pequenas que sobrara do inventário. Lacrou com fita e levou até o pátio. Cavou um buraco com a pá de jardinagem. Ficou com a impressão de dejavu e por um instante uma imagem cruzou sua mente. Algo sombrio, que se contorcia em um canto escuro, parecia uma pessoa que se coçava ou passava a mão nos braços, a pele cheia de feridas, se assemelhava a alguém. A imagem parecia ela mesma. Sumiu em meio segundo, mas ficou impressa na mente por mais alguns instantes.

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Às oito e meia, de segunda-feira, Cléber corria porta afora, com a camisa pra fora da calça e a bolsa cruzada no peito com o notebook dentro. Dormira demais e iria se atrasar para o trabalho. Quando acordara, a casa parecia que tinha sido assaltada.

Atalhou pelo pátio de uma casa de esquina sem muro. E na pressa, sem prestar atenção, tropeçou em uma caixa que estava bem no meio do caminho, do lado de um buraco, quase caiu. Xingado pegou a caixa e jogou em direção a porta. A caixa bateu com toda a força e se abriu. Na corrida dobrando a esquina, Cléber gritou um “Desculpa aí!” em direção a casa, enquanto passava correndo até a parada de ônibus.

No ponto, uma mulher o olhava encarando. Desconfortável explicou-se para ela:

- Oi! Eu vim correndo porque me atrasei.

- E porque gritou para aquela casa, eu moro lá, e não te conheço – responde desconfiada.

- Desculpe, tinha uma caixa no teu pátio e acabei tropeçando nele, peguei e joguei na sua porta, mas a caixa abriu… foi mal – desculpa-se ainda sem fôlego. E a reação que menos esperava seria uma mulher lhe passar correndo, branca como papel, em direção a casa. Pensou um pouco e não aguentou esperar que ela retornasse, saiu atrás nervoso que houvesse quebrado algo de valor.

- Olá? - perguntou pela porta da casa de esquina. Estava aberta e lá dentro ouvia-se um martelar raivoso. Entrou de vagar preparando-se para correr do que fosse. Na cozinha, Mariana, martelava a escultura que resistia sem um lascar da madeira.

- Meu gnomo! – exclamou Cléber sem se dar conta.

- Seu? Essa porcaria era da minha mãe! Está possuída, apareceu ontem e eu a enterrei no pátio – e mais marteladas. Com calma Cléber se aproximou e observava, enquanto a mulher tentava destruir o objeto.

- Posso tentar? – pergunta querendo tomar o martelo da moça que parecia bem desequilibrada. Mariana respira fundo e pede que deixe ela tentar mais uma vez, e com toda a força desce o martelo na escultura. Com isso o objeto é lançado longe da mesa e some pelo chão. Ambos se olham e começam a procurar por todos os cantos.

Após uma meia hora, os dois sentam no sofá e ligam para seus chefes, um após o outro, informando que iriam se atrasar. Saem, a mulher tranca a casa e vê seu gato passeando no pátio. Pega Godofredo no colo e vai até a vizinha, bate na porta, pede que cuide do animal até que voltasse do trabalho. Seguem do pátio até o ponto de ônibus, trocam telefones e embarcam em transportes diferente até os respectivos trabalhos.

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- Oi, Mariana. Estava esperando você ligar – diz Cléber ao atender o celular – Estou indo ai agora, acabei de sair do ônibus, achou o gnomo?

- É uma escultura de duende, não um gnomo, não achei ainda, mal cheguei em casa – a mulher estava de cocoras andando pela cozinha vasculhando cada canto com uma lanterna em uma mão e o celular em outra – Pode vir não quero ficar sozinha até achar o duende.

Cléber seguiu até a porta da casa de esquina, testou a maçaneta e entrou. Antes de fechar totalmente a porta, o gato volta da vizinha e corre para a dona que ainda vasculhava o chão. O bichano ronronava e se contorcia para chamar atenção. Pegando ele no colo Mariana percebe um caroço estranho na barriga do animal. Cléber senta ao lado dela no piso frio da cozinha e ambos massageiam o gato, que despreocupado, aproveitava a atenção dobrada que recebia.

- Bem aqui! – virando o animal de barriga para cima, o que silenciou os ronronados e deixou-o inquieto, a dona tentando não machucá-lo mostra o calombo com o tamanho da escultura de madeira.

- Ele comeu meu gnomo! – exclama o rapaz sem entender sua obsessão repentina.

- Calma! Só te digo que essa escultura é maligna, depois que saiu daqui de casa ontem, realmente comecei a repensar nos últimos meses – e levantado com o gato no colo segue até o sofá da sala e senta convidando-o a se sentar também. Sem saber como começar e observando Cléber que estava constrangido, inicia pela mudança para morar com a mãe doente.

Agora simplesmente lembrava de outra vida, como se entendesse de forma diferente as lembranças, que pareciam outras depois que tomara consciência da presença da escultura. A primeira mudança fora na forma como lembrava da mãe. Até diálogos que eram inexistentes estavam na memória antiga, mas percebeu que de tão doente, a senhora ficava deitada na cama do quarto alimentada por um soro, definhando a cada dia e não falava ou se mexia, em estado catatônico. Nem uma palavra trocada entre as duas desde o dia que buscara a mãe no hospital recuperada de um infarto.

E a casa, que antes parecia a de sua infância, arrumada e ampla. Lotada até o teto de entulhos e caixas, eletrodomésticos e móveis, ainda nas embalagens originais. A parte do chão e os muitos espelhos empilhados de qualquer jeito sobre as caixas, estavam sempre limpos, o resto coberto de poeira. E o que mais a perturbava era lembrar que ela e a mãe limpavam a casa juntas, faziam a refeição juntas. O impossível, com a senhora debilitada e imóvel na cama.

Enquanto falava, o pobre animal que pacientemente aguentara ficar no colo da moça, não suporta e corre porta afora. Mariana sai atrás e o avista já bem longe pulando o muro da vizinha.

Retorna a casa e oferece um café a Cléber. Sentados no sofá, um pouco mais à vontade com a presença um do outro, e bebericando as xícaras. O rapaz percebe uma caixa deixada junto ao raque da televisão e pergunta do que se trata, recebe a resposta que seriam mais coisas que foram esquecidas de despachar após o inventário. Mariana se levanta e puxa a caixa para perto, abre e revista as lembranças de sua mãe. Havia um pequeno álbum de foto, com lembranças antigas, olham algumas e logo Cléber sem se conter pega um VHS que estava mais no fundo comentando:

- Nossa! Faz um tempão que não vejo uma dessas, as poucas que tinha acabaram mofando e o videocassete quebrou a mais tempo, quando ainda morava com meus pais – e vendo a expressão no rosto da nova amiga, fica constrangido como se percebesse toda a proximidade forçada pela situação, inicia umas desculpas – Sei que é horrível o que está acontecendo, não sei se vou embora ou não, estou com receio de o gnomo sair do gato e acabar lá em casa, me desculpe e…

- Não é isso – interrompe Mariana – Gosto que esteja aqui, também estou com medo, o que me chamou a atenção foi o que está escrito ai na fita de vídeo – e pegando o VHS lê com a voz baixa e melancólica “Para minha bebê, que o mal não lhe aflija” e a data abaixo de menos de 4 meses atrás. Logo levanta e abrindo as portas do móvel da tevê puxa um videocassete, informa Cléber que terão que ir conectar em outra televisão que está no quarto da falecida.

Sentados na beira da cama e bem de frente para o aparelho iniciam a gravação. Aparece Matilda, a mãe de Mariana, com um rosto cadavérico, olheiras profundas e várias feridas pelo corpo e com alguns fiapos de cabelo na cabeça, usando uma camisola velha e imunda. Parecia melhor do que estava quando Mariana passou a morar com ela, parecia viva e desesperada.

Iniciada a narrativa, a senhora explicava rapidamente como seria deixada a casa para Mariana e tudo que havia nela, a mãe muda de tom aproximando mais a câmera. Explica que pegara a câmera emprestada do filho de Solange que morava do outro lado da rua e era para devolver assim que viesse a óbito. Mariana estava chocada com a certeza que a mãe mostrava de sua morte. Dona Matilda continua e espreitando o quarto, que se mostrava abarrotado de caixas móveis e todo tipo de tralhas, fala em voz baixa e com semblante tenso:

- Eu o descobri… olhei a casa toda o que não foi fácil, acho que nem percebia o quanto estava lotada, tem coisa por tudo, mal consigo sentar na minha cama e isso é terrível, desde quando venho acumulando tanto? E as manias… – interrompe e olhando mais uma vez ao redor prossegue quase sussurrando – é uma repetição sem fim, faço coisas tão inúteis como abrir as janelas e fechá-las várias vezes, tocar os espelhos sempre que passo, depois os limpo… e a comida do gato, não entendo porque tenho que conferir e de novo e de novo, não fazia isso antes e mais um monte de outras bobagens – para de súbito e se levanta, some da tela por alguns minutos.

Mariana queria entrar na tela é ver o que sua mãe fazia. Ambos se assustam com o retorno da senhora na imagem, está apavorada.

- Não tenho mais tempo, acho que não vou sobreviver ao dia de hoje, minha filha saiba que te amo muito e vou sentir sua falta pra sempre – e ouve um barulho de coisas caindo pela casa – Jogue fora tudo, limpe a casa deixe vazia e quando achar… se achar o maldito… uma escultura de madeira de gnomo, não adianta tentar jogar fora também, nem queimar ou quebrar, olhe e veja ele muito bem… – o vídeo é interrompido.

Mariana começa a chorar e se atira até o videocassete tentando voltar a fita, tanto mexe que acaba derrubando o aparelho. Cléber senta no chão junto dela e a abraça, ficam por bastante tempo assim, enquanto a moça chora pela morte da mãe uma segunda vez.

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Godofredo caminha pelas ruas, o gato já está bem debilitado. Há dois dias que não come. No seu pequeno entendimento e raciocínio percebe que não vai viver mais, não entende o que o faz definhar. E aquela voz humana e constante, sempre falando em volta. Quase alcança a certeza do fim.

A voz continua discursando e se pudesse saber o que é, seria revelador. Tudo era dito, em todas as línguas e para dentro da mente sem vocabulário do bichano, a reclamação incessante, dizia, raivosa: “Gato burro! Tinha que me engolir, maldito! Nem tenho forças pra sair daqui, preciso de mais, sua vida é tão pouco…” e continuava “Como fui tolo de me deixar ser pego, a menina estava esquecida, não viu o apelo da mãe, aquela carne seca que tanto usei, anos sem ser visto, sem terem consciência do mal, tanto que peguei de suas vidas…” e “Eu prosperaria naquele corpo novo, seriam mais décadas… Tantos que já se foram e minha existência é quase eterna… preciso aparecer em outro lugar… Maldito gato! Sua vida já acaba, e acho que mal consigo…”.

Não termina a frase, o bichano no seu último esforço interrompe o ser que o drena, regurgitando na grama e desfalecendo em seguida. A voz diz um “NÃO!” estridente uma última vez na mente do animal, uma negação de quem está nas últimas.

Uma criança passa andando em um triciclo acompanhada da mãe, olham o animal e a menina começa um choro, que se interrompe quando vê um brinquedo no chão perto do animal morto, esquece do resto e estende a mão para pegar. A mãe logo a puxa e diz que não deve tocar no animal e quebrado o encanto o berreiro se faz ouvir pela rua toda.

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Cléber e Mariana passaram a morar juntos, tamanho o medo de estarem na presença do objeto maldito. Com os dias passando, sentiram que a casa mudava, já não tinham tanto receio, ainda decidiam se ele voltaria para a própria casa.

Ele havia colocado um crucifixo no pescoço, era antigo e de seu avô. Sentia-se protegido e já nem se lembrava do objeto pendurado e colocado para dentro da camisa. Arrumando as roupas que trouxera para passar aqueles dias, hospedado, e conversando sobre um possível encontro com Mariana, sente uma corrente de ar. Toma consciência imediata da morte de Godofredo, como se o fato fosse visto e a imagem impregnasse sua cabeça. Informa a moça o que lhe ocorreu.

Mariana sai da casa enlouquecida e alcança a rua e segue correndo pela calçada. Cléber toma a frente e lembrando o local como se já conhecesse, avista um monte branco na quadra seguinte em um pátio com grama cortada. Alcança o local seguido de perto pela dona do gato. Observam o infeliz bichano ressecado e uma escultura de madeira se desfazendo no vento, em instantes, nada resta. Cléber sente uma pressão no peito, mas ignora em vista de que a moça se ajoelhara e pegara o corpo do bichano. Sem sentir nojo, só uma tristeza pelo seu Godofredo, o corpo ainda quente.

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Algo raspa o fundo da mente inconsciente. Um som de algo que se regozija com a sorte, com a sobrevivência. A mente que sonha com um amanhã, imagens de lugares para ir com Mariana e lembranças dos dias passados, ignora o mal que se entranha mais fundo no seu inconsciente. E se pudesse ouvir esse algo, seriam palavras em alívio, em um mantra dos inomináveis: “Vivo, permaneço e enalteço o mal”.

FIM

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Temáticas: muitas manias por influência do objeto assombrado, um pouco de solidão e escravidão que os possuidores do objeto sofriam, e a doença que aflige o corpo do “possuído”.

Espero que apreciem o conto. E peço que comentem não só a temática e o desenvolvimento do enredo, mas os erros de português e concordância. Após a finalização do desafio vou corrigir com base nos comentários. Agradeço antecipadamente as sugestões que vierem.

Alda M. J. D

Alda MJD
Enviado por Alda MJD em 04/09/2015
Reeditado em 18/09/2015
Código do texto: T5370240
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