LauraMarins, psicóloga, andava preocupada com os sonhos que vivia tendo.Ela sabia que a nossa atividade mental se processa, em grande parte, no inconsciente, e não na consciência. Quer dizer, quando estamos acordados, raciocinando, pensando ordenadamente, isso representa uma parcela muito ínfima do nosso processo mental. O pensamento final é um produto que passou por um longo processo de produção. Se pudéssemos percorrer, no sentido inverso, a longa cadeia de relações que a nossa mente estabelece até fazer surgir, na tela interna dos nossos olhos, ou na modulação dos nossos órgãos fonadores, ou ainda na mímica das nossas expressões corporais, uma expresssão ativa desse processo, em forma de imagem, palavra ou ação, nos surpreenderíamos em ver que espécie de matéria prima ela usou para confeccionar esse produto. Então saberíamos como é que um artista como Micheangelo, por exemplo, foi capaz de pegar um bloco de pedra e tranformá-lo num ser quase humano.
Laura Marins sonhava constantemente que era um executivo á testa de uma grande empresa. Sua vida como dirigente dessa companhia não se apresentava nada fácil. Trabalhava cerca de quatorze horas por dia e não raras vezes tinha que levar trabalho para casa. Lembrava-se vagamente que esse seu duplo, no sonho, era casado, mas parecia que tinha tão pouco tempo para a família, que ela não conseguia se lembrar do rosto da mulher e dos filhos que ele tinha. Sabia que ele tinha filhos porque a referência a eles em sua mente, quando acordava, era muito forte. Ele falava dos filhos e da esposa, mas nunca os mostrava. 
 
Ela, na vida real, era solteira. Tivera alguns relacionamentos mais sérios, até já morara algum tempo com um dos seus namorados, mas a relação não progredira. Nunca se sentira segura o suficiente para oficializar uma relação, por isso estranhava que em seus sonhos ela fosse um homem casado, embora esse casamento parecesse ser uma coisa secundária em sua vida, de tal forma que nenhuma imagem dele conseguia ser recuperada pela manhã, quando acordava.
Laura pensava, com algum sarcasmo, que gostaria de pelo menos ver o rosto da sua esposa em sonhos. Como seria ela? Seria parecida com ela? Seria bonita? Qual o grau do seu relacionamento com ela? Como seria a sua vida sexual com ela? E sua relação com os filhos? Que tipo de relaçionamento manteria com eles? Seria um paizão amoroso como ela gostaria de ter tido, ou um pai ausente como foi o dela?
Embora já até tivesse procurado auxílio profissional, Laura continuava a ter esses sonhos cada vez mais frequentemente. E para dizer a verdade, já se acostumara tanto com eles, que esses sonhos passaram a fazer parte da vida dela. Já não os via mais como um problema, mas como uma forma de pesquisar o seu inconsciente. Por isso ia para a cama regularmente ás dez horas da noite e mantinha ao lado um caderninho de notas. Pela manhã anotava tudo de que se lembrava ter feito no sonho. Já descobrira, pela análise dos sonhos, que seu “outro eu” era um executivo australiano que morava em Sidney, na Austrália,comandava uma empresa que fabricava equipamento hospitalar, era casado, tinha dois filhos, jogava cricket e adorava mergulhar. Mas nada mais conseguiu apurar a respeito dele, nem sequer se existia.
A verdade é que, depois de algum tempo, Laura começou a gostar dessa vida dupla que ela vivia em seus sonhos. Gostava de ser o executivo australiano que comandava uma empresa produtora de equipamentos hospitalares, tinha uma família, que embora ela nunca tenha visto os rostos deles (ou pelo menos não se lembrava, pois esse era um bloqueio que ela ainda não conseguira romper), jogava cricket e gostava de praticar mergulho. Sentiu-se tão integrada no personagem que procurou saber tudo sobre esse esporte esquisito que os australianos tanto gostam. Já sabia o que era um batsman, uma wicket, runs,um over, etc, e até conseguia acompanhar um game inteiro e entender o que estava acontecendo. Até se matriculou numa escola de mergulho para ver se conseguia sentir, na pele de Laura, aquelas sensações que sentia quando sonhava ser o outro. Falar inglês ela já falava razoavelmente. Mas agora percebera que estava muito mais fluente e até já falava com um acentuado sotaque australiano.
 
Entretanto, ela se sentia cada dia mais cansada. Quando terminava seu trabalho na clínica, corria logo para casa para enfiar-se na cama e passar a viver a vida do seu duplo australiano. Sentia extrema necessidade de viver essa vida dupla, por isso passou a ir para a cama cada dia mais cedo, e a sua vida como Laura Marins se resumia agora às horas que passava na clínica. Os amigos dela não a viam mais fora do trabalho. E no trabalho, o que viam era uma pálida sombra daquela que fora um dia a moça mais bonita da clínica e a mais elegante, faceira, cheia de energia e bem humorada. Tornou-se uma criatura desleixada, preguiçosa, esquecida e mal humorada. E parecia que também andava bebendo muito. Era natural que ninguém quissesse mais a companhia dela. Por isso passou a viver uma vida reclusa e misteriosa, que a todos causava estranheza.
E ela parecia se preocupar muito pouco com isso. Na verdade ela só queria mesmo era dormir. Já há algum tempo andava recorrendo a soníferos. Em doses cada vez maiores, ela os tomava regularmente, de tal maneira que os colegas andavam muito preocupados com sua saúde. A impressão que eles tinham é que Laura estava se matando aos poucos. Mas quando alguém tentava puxar esse assunto, ela se fechava e dizia que estava muito feliz e não queria saber de ninguém se metendo na vida dela.
 
Por isso ninguém estranhou a notícia de que Laura Marins  fora encontrada morta em seu apartamento alguns meses depois. Uma superdose de soníferos, acompanhado de muita bebida, havia sido a causa do colapso cardíaco que a matou.  Algumas garrafas de uísque, vazias, foram encontradas no apartamento dela. Sabiam que esse seria um desfecho provável, dado á vida que ela estava levando. A única coisa que eles lamentavam, de verdade, era o fato de ela ter apenas trinta anos.
Laura foi enterrada no cemitério da Vila Esperança ás dez horas de um sábado muito chuvoso. Cerca de vinte pessoas acompanharam o caixão dela até o túmulo onde seu corpo foi encerrado.
 

Em Sidney, Austrália, eram cerca de onze horas de um domingo muito ensolarado. Mais de quinhentas pessoas acompanharam o corpo do executivo George Dellaney, que foi sepultado no Walker’s Ridge Cemetery, morto na noite anterior por um enfarto no miocárdio. Ele tinha cerca de trinta e cinco anos. Alguns amigos diziam que ultimamente ele andava muito esquisito. Dizia que sonhava constantemente ser uma moça brasileira que trabalhava com crianças. Era uma coisa tão real esses sonhos que ele até começou a falar português, assim de repente. Dizem que ele tentou fazer um tratamento psiquiátrico, pois achava que estava sofrendo de algum distúrbio de personalidade. Ultimamente andava sonolento, esquecido, mal humorado e muito preocupado com a aparência física. Parecia até coisa de mulher. Seus amigos suspeitavam que ele andava tomando remédio para dormir. E como gostava muito de uísque, essa combinação acabou sendo-lhe fatal. Houve até quem dissesse que ele era um homossexual enrustido, que não tinha coragem de assumir a sua feminilidade. Por isso, em seus  sonhos, ele sonhava ser uma moça chamada Laura Marins, brasileira, solteira, que morava em São Paulo e trabalhava como psicóloga infantil em uma clínica.

Disseram a mesma coisa de Laura Marins. Que ela talvez fosse lésbica e não gostava da sua condição de mulher. Por isso sonhava ser um homem e até assumira uma postura masculina.
Que os dois descansem em paz. Oxalá, na próxima encarnação, se isso existir mesmo, eles possam nascer com os corpos que seus inconscientes desejam. Assim não precisarão viver e morrer nos sonhos de outra pessoa.