864-TERROR NO CEMITÉRIO

1ª. PARTE – Funérea Paisagem Noturna

— Isso que você está fazendo não é correto. Você está devassando a intimidade das pessoas.

Disse Zélio a Altamiro, o qual, entretido em observar a vizinhança pela luneta, não prestava atenção ao que o amigo dizia.

Os dois estavam no quarto de Altamiro, num segundo andar do sobrado de seus pais. Deixando a luneta, dirige-se ao amigo para defender-se da acusação.

— Cara, estou devassando a intimidade dos mortos? Só estou observando o cemitério. E você já viu como salvei dona Vicentina (1) e como descobri que o coveiro negociava o aluguel de um mausoléu (2). Não me chame de voyeur, por favor.

Depois desses dois eventos já narrados nestas 1OOO Histórias, Altamiro ficou como que obcecado em observar o cemitério com a luneta. Havia até adquirido um acessório que, acoplado à luneta, permitia-lhe ver as imagens noturnas com certa clareza.

— Com esse aparelhinho de raios infravermelhos, posso ver o que acontece de noite no cemitério.

— Não vá me dizer que pode ver fantasmas? Assombrações?

— Não, Zélio, é só que existe de real. Por isso é que te chamei aqui. Para vigiarmos.

— Me exclua dessa história, por favor. Não gosto de ficar olhando a vida alheia.

— E a morte alheia, não te interessa?

— O que?

— Pois é, esta noite está propícia para a gente ver o que tenho observado nas últimas noites de lua cheia.

— Com a luneta...? — Zélio parece debochar da proposta do amigo.

— E mais um binóculo que tomei emprestado do Geraldo Rosa, o agrimensor.

Meio contrariado, Zélio recosta-se a cama do amigo, sobre os travesseiros e entra num cochilo.

É acordado por Altamiro:

— Levanta, Zélio! Venha ver os dois comedores de cadáveres!

Estremunhado, Zélio pisca ante a luz acesa do quarto. Já era noite e o amigo está de olho grudado na luneta. Ao ouvir as palavras “comedores de cadáveres”, pensa que está ainda dormindo, tendo um pesadelo. Esfrega os olhos e olha através da janela para a escuridão da noite. Tenda ver alguma coisa, mas ainda está sonolento e não vê com nitidez a cena que Altamiro está vendo e descrevendo.

— Olha lá! Os dois já chegaram. Tão cavoucando uma cova.

Zélio esforça-se por enxergar algo e vê. É noite clara, de lua cheia. Os túmulos, mausoléus e tumbas simples estão semi-iluminados pelo clarão difuso, fantasmagórico, do luar sobre as lousas, estátuas e cruzes de mármore branco.

— Onde? Num tou vendo ninguém.

— Pega o binóculo aí e ajusta prá você ver.

O binóculo está sobre a escrivaninha. Zélio o pega e ajusta o foco. Olha na direção indicada por Altamiro.

— Estou vendo, sim. Dois vultos agachados.

— Estão cavoucando uma tumba recente.

— Prá quê?

— Fique observando. Logo você descobrirá.

Ao lado de uma tumba recente, duas pessoas se movimentam. A luneta, com o aparelho de infravermelho, proporciona uma visão quase que cem por cento dos profanadores do cemitério. Altamiro então descreve para o amigo o que está vendo.

— É um casal de velhos. Arqueados, parecem mais dois orangotangos se arrastando. Estão cavoucando a tumba, procurando o cadáver recém enterrado.

— Cruz credo! — Com a ajuda da narrativa, Zélio “vê” a cena.

— Já é a quarta sexta-feira que eles aparecem. Agora estão tirando alguma coisa da tumba!

— Um corpo!? — Zélio exclama e interroga ao mesmo tempo.

— É, um defunto enterrado ontem.

Fascinados pelo que vêem, ficam mudos.

2ª. Parte – Ritual Macabro

Os dois sacripantas arrastam o corpo para fora da cova e iniciam um ritual. Começam a pular, num ritmo selvagem, executando uma dança macabra, ao redor do corpo. Um deles, o homem, empunha um bastão ou vara de uns dois metros, em cima da qual está fincada uma caveira, e sob a qual estão fitas ou cordões com amuletos. O acompanhante, evidentemente uma mulher, a julgar pela saia rodada que lhe vai até os pés, parece brandir um facão. Ambos levantam suas cabeças e o luar incide diretamente sobre seus rostos, onde podem ser vistos os vincos de êxtase e terror. Agitam os braços, ele levanta seu bastão e ela brande o facão, como que oferecendo aquela dança à lua.

A dança ou os saltos ou o que seja aquele ritual durou alguns minutos.

O silêncio é total. Terminada a dança, os dois agacham-se e a mulher, empunhando o facão, atira-se sobre o corpo, golpeando-o.

— Está mutilando o cadáver! — Cochicha Zélio, como se temendo falar alto e despertar a atenção dos profanadores.

— Prest’enção, Zélio. Eles vão fazer uma coisa horrível.

Altamiro, que já havia presenciado idênticas cenas em anteriores noites de sextas-feiras, colocava, com suas palavras, mais suspense na situação que ambos presenciavam.

A mutilação era evidente. Pedaços do corpo eram arrancados, com o uso do facão, e levados à boca.

— Estão devorando partes do cadáver!

— É, estão sim.

— Temos que fazer alguma coisa!

— Calma, Zélio! Fique calmo. Eu te chamei para apenas assistir. Não é prá fazer nada. Afastando-se da janela, Zélio disse:

— Não aguento.

— Aguenta, sim. Seja homem, cara.

Zélio volta a olhar com o binóculo.

Os dois necrófagos continuam sentados, evidentemente saboreando o festim macabro. Demoram-se, não têm pressa.

A lua cheia faz, impávida, seu caminho pelo céu, testemunha (ou homenageada?) daquela estranha sequência de horror.

A dupla de violadores de tumbas e devoradores de cadáveres se levanta. Afastam-se com passos trôpegos, como se estivessem tontos. Talvez estivessem mesmo. Ébrios do ritual satânico que haviam criado e participado.

Deixam para trás a tumba aberta e o corpo mutilado, exposto à friagem da madrugada.

— Altamiro, você viu o que eu vi? — Zélio, ainda incrédulo, parece estar num sonho ou pesadelo.

— Claro, Zélio, Não foi a primeira vez, não.

— Precisamos fazer alguma coisa.

— Fazer o quê, cara?

— Sei lá. Tomar alguma providência. Denuncia ao delegado.

— Não é problema nosso, Zélio. Vimos por mero acaso. Mas vou lhe propor uma coisa.

— Fale.

— Já é de madrugada e você me parece que não está em condições de ir pra sua casa agora. Você dorme aqui. Amanhã bem cedo, quando o coveiro abrir o cemitério, nós vamos lá e visitamos a tumba violada.

E assim foi.

Quando, ás oito da manhã, o coveiro abriu o portão, lá estavam os dois amigos.

— Bom dia, seu Joaquim.

— Bom dia, gente.

E quando os dois entraram, o coveiro perguntou:

— Onde vão tão cedo assim?

— Vamos visitar o tumulo de nosso amigo Tunico Ramos.

— Ah, bom.

Os dois seguiram direto para o local da tumba profanada na madrugada. Quando chegaram, viram que a tumba tinha sido refeita. Não havia sinais de corpo desenterrado, mas era evidente que a erra tinha sido removida recentemente.

— O coveiro já arranjou tudo, não tem nem sinal do ritual.

— Sinal, tem sim, disse Altamiro. Veja aqui deste lado, As marcas de muitos pés descalços. Foi onde os dois dançaram.

Altamiro, que tinha um espírito mais investigativo (era leitor inveterado das histórias de Sherlock Holmes), evitou pisar sobre as pegadas. Examinou com olhar penetrante pelos arredores e descobriu um cordão azul-escuro, na ponta do qual estavam amarrados três dentes.

3ª. Parte – O coveiro esperto

Ao mostrar ao amigo , este se horrorizou, exclamando:

— Credo! São dentes humanos!?

Laconicamente Altamiro respondeu “São sim” e colocou a fita suja no bolso.

— Que vamos fazer? — perguntou Zélio, mais para sim mesmo. — Avisar o coveiro?

— Mas foi ele quem, evidentemente, apagou os sinais do ritual da madrugada. E, além disso, ele já se revelou um safado, no caso do mausoléu de aluguel, lembra-se? (2)

— Mesmo assim, disse Zélio, temos de conversar com ele. Estão violando túmulos.

Encontraram Joaquim, o coveiro, capinando ao lado de um túmulo.

Zélio, mais bem falante que Altamiro, contou o que os dois haviam visto de madrugada na tumba.

O coveiro ouviu tudo e respondeu:

— Vamos lá ver onde vocês falam que tem fantasma.

Foram ao local da tumba violada.

— Num to vendo nada de mais aqui. — Disse o coveiro, olhando para os dois rapazes com desafio.

—Mas a terra foi remexida esta noite.

— Moços, ceis deixa de besteira. O defunto foi enterrado anteontem, a tumba é fresca.

Olhando para um lugar em que a terra estava ainda revirada, Altamiro apontou:

— Aqui foi escavacado não faz tempo.

— Tem muito tatu que esgravata os túmulos

— Alem disso, eu achei esse cordão aqui perto. Caiu do bastão do homem que dançava ao redor da tumba.

— Ceis deixam de besteira, seus moço. Aqui no cemitério não tem fantasma nem bruxa, não senhor.

E pondo uma pá de cal no assunto, arrematou, em tom ameaçador:

— E acho melhor ceis não se meterem mais com as coisas do cemitério, não.

E o assunto morreu ali.

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Altamiro e Zélio mudaram-se para a capital a fim de freqüentar a faculdade, e cuidarem de sua formação.

Passados alguns anos, Altamiro voltou à pacata Grota Velha quando sua mãe faleceu. À saída do enterro, encontrou-se com Joaquim o coveiro, sentado ao sol próximo ao portão do cemitério.

Cumprimentou, puxou conversa e quando o doutor Altamiro ofereceu-lhe um cigarro, encostando-se no muro, o coveiro se animou a falar.

— Pois é, o senhor me atrapalhou bem a minha vida, com aquela sua mania de vigiar o cemitério

— Eu não vigiava, não, só via as coisas estranhas que aconteciam por aqui.

— É. Quando o senhor descobriu que tinha gente comendo difunto, juro que fiquei apavorado. Acabei vigiando também e descobri que era um casal de velhos, acho que faziam macumba e despachos, e vinham, sim, aqui no cemitério prá desenterrar defuntos

— E comer...?

Altamiro perguntou, aterrorizado com o que ouvia e surpreso com sua própria pergunta.

— É, verdade. Mas eu achei melhor ficar quieto. Tava perto de aposentar. Se eu falasse na policia ou na prefeitura que tinha gente comendo defunto, de duas uma: ou eles iam rir na minha cara, pensando que eu estava maluco, ou iam investigar, e achar que eu, encarregado do cemitério, não tinha vigiado direito, e perigava me mandar embora. Por isso, pensei, mió ficar calado. Então, eu cuidava bem cedinho de arranjar as covas esgravatadas prá ninguém mais notar dos disgraçados comedor de difunto.

— Mas e os dois ...? comedores de defuntos? Continuaram voltando?

— Arranjei um cachorro bravo, o “Sansão”, que soltava no cemitério de noite. Um dia de sábado bem cedo achei umas tiras de pano ensanguentadas perto do muro. Vi outras marcas e então disconfiei que o “Sansão” tinha mordido arguém. Depois, nunca mais vi terra esgravatada perto das covas de difundo novo.

— E o senhor ainda trabalha aqui?

— Não. Já aposentei.

— E faz tempo que o senhor aposentou?

— Cinco anos. Mas continuo aqui, como o senhor vê. Parece que o cemitério tem um mistério, uma maldição: quem trabalha aqui, nunca mais consegue sair, fica preso. Quando comecei, eles falavam que o emprego de coveiro de cemitério era emprego prá toda a vida. E é mesmo. A gente nunca mais consegue abandonar. Num acreditei, agora tou pregado aqui... até quando a Magra vier me buscar.

[1] – Veja conto Queda na Cova, da Série 1OOO Histórias.

[2] – Veja conto Mausoléu de Aluguel da mesma Série.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 29 de outubro de 2014.

Conto # 864 da Série 1OOO Histórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 30/08/2015
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