Faz Mal Aos Olhos

Hora extra. Sempre as horas extras salvavam seus finais de semana. Aquele cheiro de mofo dos arquivos não o incomodava mais. Era como o cheiro dos livros velhos de seu pai. Livros sobre astronomia, sobre a história do mundo. Era apenas um cheiro que acabou se tornando nostálgico.

Na salinha de três por doze, ele continuava lá. Tratando documentos. Precisava pegar alguns contratos velhos da rede de telefonia, trocar os grampos enferrujados, colocar fita adesiva nos rasgos, e por último, colar uma etiqueta de identificação, para que depois tudo aquilo fosse inserido numa caixa, e mais tarde, cadastrado por ele mesmo. Passavam por suas mãos cerca de cem mil contratos por semana. E ele aprendera a suportar tamanha repetição.

Então surgiram as horas extras. O novo chefe da empresa, um homem de estatura baixa, olheiras profundas, e ostentando um cavanhaque falhado na cicatriz da operação de costura de lábio leporino, queria aumentar a produção. Mais caixas de documentos, mais contratos tratados. E assim, Hermes viu a oportunidade de fazer dinheiro. Mas apenas ele. Morava longe, então seria melhor ficar ali. As ruas estavam perigosas. Os usuários de crack estavam aterrorizando a região. Ali, pelo menos, estava seguro.

Seu horário normal começava às oito da manhã, até às cinco da tarde. Agora, Hermes ficava de oito até às dez da noite, quando não virava a madrugada trabalhando, e já emendava no dia seguinte. Muitos o criticavam, mas aos olhos do chefe, o rapaz gordinho, de cabelos ralos e nariz adunco, era o melhor funcionário da empresa. Tanto se esforçou que foi transferido para uma sala no oitavo andar, justo onde ficavam arquivados os documentos mais antigos, que nunca perdiam a validade. O andar mais frio do prédio, que os funcionários apelidaram de O Frigorífico. Porém Hermes não sentia frio. Já estava acostumado nesse primeiro mês de horas extras.

Na sua salinha, o rapaz trabalhava sem parar, muitas vezes sem se levantar. Bebia água de tempo em tempo, levantava para se espreguiçar e ir ao banheiro. Fora isso, era dedicado aos movimentos mecânicos de tirar grampos, colar folhas, e empilhar dentro de uma caixa do tamanho da caixa de sapato. Estava feliz. O dinheiro estava surgindo. E trabalhar sozinho era bom demais. Sem o povo gritando, sem cobranças, sem irritações. Apenas seu chefe ia até lá ver seu serviço, mas pouco falava. Olhava através do vidro da porta. Cumprimentava-o, e sumia na escuridão do frigorífico.

Porém, coisas estranhas começaram a acontecer no segundo mês. Numa noite de outubro, para ser mais exato na segunda sexta–feira daquele mês, uma chuva caiu sobre o Rio de Janeiro. Primeiro a ventania, depois granizo, e por fim, a aguaceira. Todos os jornais noticiaram como a tempestade mais forte dos últimos vinte anos no estado. Mas Hermes não viu isso. Isolado, apenas ouviu o barulho das gotas batendo no portão de ferro que, na verdade, era uma janela desativada. Uma enorme janela.

Mas nessa noite. Ele reparou uma coisa diferente ao levantar sua cabeça na direção da porta. Havia uma mão. Não uma mão, mas as digitais em gordura da pele, marcando o vidro. Levantou-se ressabiado, e se aproximou. Abriu a porta e sentiu o vento frio tomar seu corpo. Deu alguns passos e olhou ao redor, aparentemente, somente eles e as prateleiras com milhares de caixas, espalhada por toda a imensa dimensão do oitavo andar estavam ali. Sentiu o cheiro dos livros de seu pai novamente. Sorriu, e virou-se para entrar em seu escritório.

Ouviu uma risada. Depois, a risada foi se transformando em choro, e pouco depois, um grito agudo tomou o local. Um grito agudo que não era possível distinguir se de uma mulher ou criança. Provavelmente de uma mulher, pensou. Muitos tinham medo do oitavo andar. Tão escuro, frio e isolado. Sabia que muitas pessoas o consideravam estranho por trabalhar de madrugada, isolado. Estranho e como uma pessoa que só pensava em dinheiro.

Saiu da sala e foi até o banheiro. Esfregou as mãos, ali fora o frio o incomodava. O banheiro estava à meia luz. Dois dos spots estavam com defeito. Apenas um funcionava com uma lâmpada. Ele urinou, lavou as mãos, e pensou em se olhar no espelho. Mas não havia mais espelho. Amanhecera quebrado no começo do mês. Prédio antigo. As coisas começavam a quebrar sozinhas.

Voltou para a sala. Mas a porta estava trancada. Bateu, puxou a maçaneta e nada. O frio continuava a tentar invadir seu corpo. Olhou através do vidro e conferiu as horas no relógio da parede. Eram três da madrugada. Em breve o segurança iria trocar o turno. Correu até o canto mais próximo e ligou para a portaria do telefone preso à parede.

- Alô! Aqui é o Hermes. Estou no oitavo andar! – disse ofegante.

O segurança demorou um pouco a responder. Por fim, sua voz tranquila o atendeu.

- Olá, seu Hermes! Eu sei! Algum problema?

- É que a porta trancou sozinha. E não estou conseguindo entrar no escritório.

- O frio dilata o metal. Provavelmente foi isso! Ou seria o calor?

- O senhor ouviu gritos? – perguntou bruscamente.

- Gritos? Não! Onde?

- Devo ter imaginado! Acho que essas noites mal dormidas estão afetando minha cabeça! Escuta. Tem como me arrumar outra chave, campeão? Preciso mesmo trabalhar!

Mais uma vez o segurança demorou a responder. Desta vez, tempo demais.

- Alô? E aí? Tem como? Preciso da cópia da chave do escritório.

- O senhor sabia que a poeira desses arquivos faz mal aos olhos, seu Hermes? – disse o segurança em um tom de voz diferente do seu. – Fungos, poeira, sujeira... Isso pode fazer muito mal aos olhos... Mal aos olhos... Mal aos olhos...

O telefone foi desligado. Ao tentar retomar a ligação, não houve sinal. Hermes então correu até o corredor do elevador. Quase não percebeu que todos os vidros dos cubículos que antes eram escritórios possuíam marcas de mãos. Todas engorduradas. E em uma delas, uma mancha vermelha escura e viva.

Hermes era um cara tranquilo, mas estava começando a se descontrolar. Frio estava lancinante, e não conseguia entender os gritos e a porta ter trancado-se sozinha. Apertou o botão do elevador com força, várias vezes, por mais que soubesse que não adiantaria.

De repente. Todas as luzes se apagaram. Ele gritou instintivamente. E uma luz de emergência se acendeu. Bem abaixo da lâmpada, presa sobre a porta de emergência, havia uma criança. Uma criança sem os dois olhos. Em seus lugares, dois buracos sombrios. Além dessa aparência grotesca, a menina, aparentando ter uns oito anos, exibia uma enorme cicatriz que ia de uma orelha a outra, deixando sua boca completamente rasgada. Entretanto, quando novamente houve queda de energia ela sumiu. Hermes sentiu então uma mão sobre seu ombro esquerdo. Gritou com toda sua força. Mas ouviu ao pé de seu ouvido uma voz conhecida.

- Calma, garoto! Hoje você começa seu verdadeiro trabalho.


Hermes foi guiado na escuridão até um lugar menos frio. A voz era de seu chefe. Os dois andaram por cinco minutos, até que algo iluminou o recinto. Era a luz azulada do celular de seu guia no meio daquele lugar que se tornara tenebroso. Agora ele sentia o medo que os demais funcionários sentiam do oitavo andar.

- Podem acender as luzes do frigorífico 2! – disse o chefe.

As luzes se acenderam. Houve um estalo como se aquelas fiações não funcionassem por décadas. Estavam em um enorme salão, quase que do mesmo tamanho do anterior. Não havia prateleiras, muito menos caixa. Estava vazio. Somente eles dois. As paredes não eram pintadas, estavam inacabadas e se tornava possível enxergar os tijolos e o reboco. Aquele prédio parecia maior do que se conhecia.

- Onde estamos? O que faço aqui?...Ainda há documentos para se tratar!

- Calma, Hermes! Você se mostrou um bom funcionário! Decidido! Dinâmico! Um cara desapegado com o que os outros falam. Acho que pode ser promovido. Basta querer.

- Pro... Promovido?

- Tu gosta de ganhar dinheiro. Não gosta? Caso contrário, não ficaria enfurnado numa sala dessas, isolado, sem dormir por semanas.

- Sim! Quem não gosta, né?

- Pessoas de pensamento pequeno! Elas pensam assim! Falsos moralistas! Aquele povo escroto dos direitos humanos. O ponto é que todos gostam de dinheiro. E eu estou aqui para te dar dinheiro.

- Nossa! Muito obrigado...

- Sou novo nessa empresa, mas vim de outra que funcionava mais ou menos da mesma maneira. E estive reparando que aqui é o lugar perfeito. O lugar perfeito para continuar o que comecei há 100 anos.
Nesse momento, Hermes tossiu.

- Cem... Anos?

- Não se espante, Hermes. Eu sou um cara vivido, apenas isso! Minha aparência é resultado de overdose de Ômega 3. E olha que nem estou tão conservado assim.

- Isso é um tipo de brincadeira?

Ouviu-se um grito.

- Outra vez! Esqueci de te falar. Ouvi uns gritos essa noite... Ainda agora... e vi uma criança... Num sei se foi alucinação do sono... Eu... Vi...

- A sociedade vem imunda num é de hoje. Mas estamos numa crescente de podridão, que acho que somente eu posso alterar as coisas. Claro que não sozinho. Eu, você, e meus irmãos espalhados pelo mundo.

Hermes sentiu suas pernas tremerem. A conversa estava ficando estranha.

- Venho de uma linhagem que pratica o mutualismo. Conhece isso, Hermes? Mutualismo?

- É tipo quando um ser vivo ajuda outro e vice-versa?

- Sim! Moleque inteligente!... Mutualismo é basicamente uma troca de favores. Não sei se você sabe, mas sou alemão. Eu lutei na Primeira Grande Guerra, e fui um dos soldados alemães que usou o gás cloro nas trincheiras, em 1915. Botamos pra foder!

- Isso não faz sentido... Não estou me sentindo bem!

O chefe segurou Hermes pelos ombros.

- Calma! ... Numa dessas batalhas, o gás entrou em meus pulmões. Quando estava quase sufocando numa floresta de vegetação destruída. Algo me ajudou. Um ser vivo maravilhoso, uma prova de que Deus escrever certo por linhas tortas.

Ouviu-se o chão ranger.

- Esse ser maravilhoso me inundou com vida. E se hoje estou aqui, é por conta dele. Um ser que não se pode dizer que é humano... Enfim, Hermes... Uma espécie de fungo. Um fungo que me deu a imortalidade... Em troca de favores.

O chão rangeu novamente. E também pode se ouvir ao fundo uma porta se abrir. O cheiro de livros velhos tomou o local.

- Confio em você, Hermes. – continuou o chefe deixando o funcionário solto. – E tudo que preciso, é de sua lealdade. Sua falta de compaixão. Limpar a sociedade, e alimentar meu mestre.

O chefe se aproximou de uma alavanca vermelha e a empurrou para cima. Uma porta, antes escondida, se abriu diante dos olhos de Hermes. De dentro dela, crianças começaram a sair se arrastando. Todas mal vestidas, todas sujas de manchas vermelhas... Todas... Sem seus olhos.

Hermes tentou se levantar, mas sentiu suas pernas presas. Uma corda de musgo havia se formado ao redor de seus joelhos. E ele agora estava preso ao chão.

- Malditos mendigos! Só não são totalmente inúteis, pois alimentam meu mestre. E tudo o que você tem a fazer... É alimenta-lo também! Pegar e amontoa-los! Fisga-los, engana-los! E em troca... Dinheiro e vida eterna!

As crianças começavam a se amontoar. Tentavam fugir desesperadas apalpando o chão e gritando. Eram dezenas. Cada vez saíam mais de dentro do portão recém-aberto. A maioria com as mandíbulas dilaceradas, todas chorando. Hermes sentiu-se em um filme de terror.
E tudo piorou quando da escuridão pisando nas crianças que ficava para trás, uma criatura gigantesca, coberta de musgos, e com dois pontos vermelhos e luminosos no lugar dos olhos surgiu. Um rugido estranho, seco e roco ecoou pelo oitavo andar. Hermes sentiu seus olhos arderem.

- Decida-se, Hermes! Eis meu mestre! Tudo que tem que fazer é alimenta-lo! Em troca, terá todo o dinheiro... Todo...Vigor... Para sempre!

O monstro de fungos pegou uma das crianças pelos pés e sugou sua pele como se fosse uma sardinha. Deixou apenas alguns ossos e membros pendurados. O chefe encarava Hermes, esperando ansiosamente sua resposta. E o rapaz, que só queria trabalhar tomou sua decisão.

O relógio da rua marcava duas da tarde em ponto, e a temperatura chegava aos trinta e oito graus. Muito calor. Muito ar seco. Dois meninos de rua se aproximaram da porta do restaurante chique do bairro. Não era comum alguém ali dar qualquer tipo de esmola, mas corria o boato de que um bom homem almoçava ali todos os dias, e todos os dias, convidava algumas crianças para comer junto com ele. Esse homem estava lá nessa tarde. E sorriu ao notar que duas novas vítimas o esperavam, quase que numa bandeja, bem diante de seus olhos.
Fael Velloso
Enviado por Fael Velloso em 19/08/2015
Reeditado em 28/09/2015
Código do texto: T5352304
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2015. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.