Sede Insuportável
O peso do revólver na sua mão esquerda parecia ser bem maior do que realmente era, sentia como se estivesse segurando uma barra de aço gigante. Levantou o braço direito até a boca e bebeu mais um gole do uísque barato, o sabor amargo aumentava ainda mais a sua sede.
A garganta estava seca.
-Aqui estou, mais uma vez. -O timbre grosso e falho era resultado das dezenas de doses de álcool que bebia todos os dias há cerca de um mês.
Falava enquanto olhava para o teto e apertava com mais força o cabo de madeira do Rossi de calibre 38, a arma estava quase que por completo tomada pela ferrugem e o gatilho estava quebrado no meio restando apenas um pedaço de ferro preto.
Não foram poucas as vezes em que o homem pressionou o cano contra sua têmpora e fechou os olhos, pronto para o fim. Deixava a arma com apenas duas balas e girava o tambor pressionando o gatilho apenas uma vez.
Cada vez que a arma travava era um sinal de que ele ainda não havia completado a sua sentença, estava condenado a viver mais um dia.
-Eu já paguei pelos meus pecados, quero liberdade.
Dessa vez havia colocado cinco balas no tambor, preencheu por completo os buracos e girou uma vez com o máximo de força que teve. Enquanto ouvia o barulho do ferro rangendo bebeu o último gole de uísque e fechou os olhos.
Apertou o gatilho.
A sede não cessou. A garganta estava seca.
O ódio foi tão grande que ele jogou o revólver no outro lado da sala e levantou-se chutando a mesa à sua frente, socou a parede mais próxima e só parou quando percebeu o sangue escorrendo por entre seus dedos.
Começou a revirar a casa em busca de outra garrafa de Uísque, abria os armários com violência e tudo o que encontrava eram teias de aranha e poeira, algumas facas e garfos ocupavam lugar em gavetas espalhadas. Foi só ao passar em frente ao banheiro que ele parou e se observou no pequeno espelho em cima da pia.
Ficou parado por segundos, talvez minutos.
Quando jovem Chuck Parthold fazia parte de um esquadrão especial de fuzileiros americanos, missões de assassinato silencioso eram sua especialidade. O preparo físico e a aparência eram essenciais em esquadrões como esses pois muitas vezes os soldados precisavam se infiltrar em organizações ou países inimigos, agindo como espiões.
Os cabelos pretos e olhos azuis sempre garantiam que Parthold seria escolhido em missões onde a persuasão era necessária e ele orgulhava-se disso. Mantinha a barba sempre bem aparada e os cabelos cortados perfeitamente.
Mas isso havia sido no passado. Agora, enquanto olhava o próprio reflexo, sentia repulsa do que via.
O antigo cabelo liso e brilhante estava grisalho e sujo, a barba malfeita espalhava-se pelo queixo e pescoço. Os olhos claros pareciam estar submersos em duas grandes bolsas negras, as noites sem dormir estavam afetando a aparência do rapaz.
Os braços, antes grandes e fortes, agora estavam finos e repletos de buracos de agulhas. Doses e doses de heroína mal aplicadas haviam criado hematomas em toda a extensão de ambos bíceps e tríceps. O toráx, sempre bem definido, agora ostentava as vértebras em alto relevo.
A garganta continuava seca.
-Foda-se. Dizia, enquanto colocava uma camisa e caminhava para fora de casa.
A luz do luar iluminava a estreita rua do bairro da Glória, pequenas casas e alguns prédios de três ou quatro andares recheavam o bairro ao passo de que alguns postes piscavam vez ou outra. A companhia de energia não costumava dar assistência à aquela parte da cidade.
Chuck levou a mão esquerda até o bolso da calça e puxou um Lucky Strike.Com a direita riscou um isqueiro
.
A fumaça perfurava o ar.
II
Os pneus do Vectra deslizavam com velocidade sob o asfalto, o contato da borracha com o chão era mínimo e o carro, visto de longe, parecia estar flutuando. O som de bateria e guitarra misturavam-se e eram empurrados tímpanos a dentro por uma caixa de som do tamanho da mala.
Six, Six, Six..The number of the beast
Com as mãos no volante um garoto cantava a música com fervor, balançava a cabeça para cima e para baixo sempre que chegava ao refrão. Estava alcoolizado, apesar de toda a animação seus olhos estavam baixos e o hálito fedia a cerveja mal fermentada.
O velocímetro marcava 120 km/hr.
Hell and fire was spawned to be released
Virava o volante com violência com a esquerda e puxava o freio de mão, o giro do veículo lhe proporcionava ainda mais prazer. Gostava de se sentir livre, a adrenalina da velocidade o fazia sentir-se vivo.
Sua família costumava reclamar sempre que o viam dirigir um carro, diziam que um único vacilo ou movimento inapropriado poderiam lhe custar a vida ou, pior ainda, a vida de outras pessoas.
Daniel não se importava com isso. Ria sempre que alguém tocava no assunto e falava que “Santo de bêbado é forte”.
Nunca havia se envolvido em um acidente sequer.
Até aquela noite.
O ronco do motor anunciava que estava na hora de trocar de marcha e, quando o rapaz pisou na embreagem, sentiu um solavanco na parte traseira. O som do pneu estourando foi alto o bastante para abafar a música.
Só não foi mais alto do que o barulho do metal batendo no asfalto.
O carro capotou duas vezes antes de parar, com as rodas viradas para cima, cerca de cinquenta metros do local onde o pneu estourou.
A apenas alguns passos de onde o carro havia capotado estava um homem muito magro, suas pernas tremiam, mal conseguia ficar em pé. O cigarro que fumava estava caído no chão soltando fumaça.
O medo o impedia de se movimentar.
Estava atravessando a rua quando viu um louco ziguezagueando pela pista, tentou correr mas o carro vinha muito rápido. Fechou os olhos, esperando pela morte, quando escutou um barulho muito alto.
Quase uma explosão.
Abriu as pálpebras novamente viu o Vectra do outro lado da pista.
Estava ileso.
O pneu ter estourado salvou sua vida.
A garganta estava mais seca que nunca.
III
O luz do sol dificultava a visão ao mesmo tempo em que elevava a temperatura, já passavam dos trinta e quatro graus quando um grupo de homens armados invadiu uma casa. O primeiro da fila deu um chute na porta forte o bastante para que a mesma se desprendesse das trancas e caísse no chão com um baque.
Antes mesmo da madeira entrar em contato com o solo tiros eram disparados. Os projéteis impactaram-se contra os corpos de três pessoas que estavam no recinto, o sangue espirrado nas paredes parecia formar uma pintura psicodélica, destas que se vê em galerias de arte pós-modernas.
-Tudo limpo, Sargento. Três civis abatidos.- Dizia o soldado que havia chutado a porta e efetuado os disparos. Um rádio em seu capacete o colocava em contato direto com o comandante da missão.
-Vejam se restou mais algum escondido e partam para a próxima casa. Quero esse bairro limpo ainda hoje.-A voz saía pelo aparelho de forma quase mecanizada.
Assim que a ordem foi dada os homens espalharam-se pela residência, as armas em punho buscavam mais vítimas. Os soldados faziam parte de um esquadrão de assassinato do governo americano e estavam em uma missão de extermínio étnico.
Os motivos da missão eram estritamente políticos, o atual governo do país era de extrema esquerda e fazia uma afronta direta à política imperialista típica do Tio Sam. Os americanos buscavam causar uma chacina e acusar o governo de terrorismo para assim conseguir uma desculpa para invadir a região e soltar “bombas de democracia”.
Depois de alguns minutos percorrendo todos os cômodos da pequena casa os homens reuniram-se novamente na sala e, quando passavam pela porta, ouviram um barulho ensurdecedor. Não demorou mais do que um segundo para que uma enorme explosão fizesse a terra tremer e derrubasse todos os assassinos.
-MAS QUE PORRA FOI ESSA?. -Gritou um dos rapazes, o medo era perceptível em sua voz.
-Deve ter sido alguma bomba, o foda foi que bloqueou a saída. Respondeu outro que já estava em pé de frente a onde antes havia a saída.
Parte do teto da casa havia desabado bloqueando a porta.
Estavam presos.
-Comandante? Co...-Chuck acordou antes que recebesse a resposta. Abriu os olhos com violência e olhou ao redor assustado, estava no seu quarto. O corpo estava suado e a respiração ofegante.
Pesadelos estavam se tornando frequentes.
Acendeu um cigarro.
IV
Se Deus existe ele me odeia.
As horas passavam lentamente, os dias começavam e terminavam como um filme sem roteiro. Sol e Lua já não apresentavam qualquer distinção enquanto Chuck permanecia sentado no sofá da sua sala. Já não sabia mais a hora em que dormia ou que acordava, limitava-se fumar e a beber uísque, vodca ou o que quer que estivesse mais perto.
A comida era proveniente dos enlatados que comprava com a pensão de militar reformado. A maior parte de seus recursos eram gastos em drogas, algumas lícitas outras não.
O coquetel de comprimidos que estava na mão do homem não possuía nada de lícito. Talvez uma ou duas pílulas pudessem ser compradas nos fundos de alguma farmácia corrupta, mas as outras sete foram conseguidas no pequeno laboratório de drogas que ficava no fim da rua St. Lourenço.
A St. Lourenço era a menor das quatro ruas do bairro da Glória. Naquele dia a vizinhança estava agitada pois uma nova pessoa estava se mudando para a casa ao lado à do Parthold, um caminhão fretado estava ocupando quase todo o espaço de passagem enquanto homens músculos moviam-se pra lá e pra cá carregando móveis, eletrodomésticos entre outras coisas.
Sentado no sofá da única casa azul da rua Chuck olhava para a palma da mão, os olhos fixos nas capsulas brancas e rosas. Um copo com água parado em sua frente, o semblante denunciando a dúvida que atravessava sua mente.
Se eu tomar isso provavelmente terei uma overdose e morrerei. Ou não? Todas as outras tentativas falharam..Porra, e se der merda na minha cabeça? E se eu não morrer mas passar o resto da minha vida feito um vegetal?
Você aí de cima..Tu não me ajudou quando eu pedi da outra vez. Pode me dar um sinal? Devo ou não tomar?
O homem ficou parado alguns instantes, os olhos atentos a qualquer movimentação ou coisa estranha. Depois de alguns minutos em total atenção as lágrimas simplesmente começaram a percorrer seu rosto.
Eu realmente tô ficando louco, tô rezando.
Chuck nunca fui muito ligado a religiosidade e isso lhe acarretou muitos problemas ao longo da vida. Filho mais velho de uma tradicional família protestante ele era obrigado a ir até à igreja todos os domingos de manhã e louvar a um Deus que sequer acredita.
Normalmente, nos domingos, todos da família encontravam-se na sala de casa às sete horas em ponto, vestidos e com a bíblia de baixo do braço. Dois fins de semanas depois de fazer dezesseis anos ele simplesmente não desceu as escadas. Os pais começaram a gritar que ele estava atrasado mas o garoto ignorava.
O pai subiu até o andar de cima e, quando escutou a palavra “ateu”, só parou de bater quando o seu terno preto estava melado de sangue.
A cada soco ou chute ele pedia a Deus para o perdoar, só precisava ensinar o menino sobre todo o amor e misericórdia de Jesus.
Se der certo esse caralho dessa sede passa.
Abriu os lábios devagar.
O som de batidas o assustou, o movimento para levantar foi tão brusco que acabou derrubando os comprimidos no chão. Correu em direção à porta e a abriu com violência, achava que aquilo era uma resposta aos seus pedidos.
-Boa tarde, sou sua nova vizinh...A voz da mulher falhou e ela levou ambas mãos até a boca, tapando-a. Sua pele morena, o sotaque, e o cabelo preto longo denunciavam que era latina, ou mexicana.
Um grande crucifixo de ouro pendurado no seu pescoço por um cordão destacava a cor de seus olhos, azuis como o céu. Os seios avantajados estavam quase totalmente expostos por um generoso decote em forma de “V”.
Mas o que mais chamou atenção na mulher foi o semblante de horror que se instaurou em seu rosto ao ver o homem parado à sua frente.
Tremia da cabeça aos pés.
-O que foi? Por um instante o ex-militar pensou que a mulher passava mal e tentou segura-la. No exato momento em que seus dedos tocaram os ombros da mexicana ela saiu correndo, da sua boca saíam palavras em um idioma irreconhecível para a maioria.
-DIABLE, DIABLE, DIABLE.
Cada vez que os sons das palavras entravam em seu ouvido ele sentia uma pontada no coração, pareciam que adagas de aço estavam penetrando sua caixa torácica e riscando o músculo cardíaco.
Estava claro que aquela mulher sabia o que ele tinha feito, com quem ele tinha feito.
Fechou a porta e pegou os comprimidos novamente.
Afinal, o cara lá de cima havia respondido.
Engoliu a seco.
V
Que fome do caralho.
Eu não sei mais o que fazer. Já fazem o quê? Três ou quatro dias que estamos presos aqui? Porra, eu tô cansado. E o pior é que ainda tem essa porra desse cheiro insuportável aqui, nunca achei que alguém pudesse feder tanto.
Mas também, o que eu queria?
Eles tão mortos e apodrecendo no calor.
A mulher ainda tá de costas. Bem que ela tem uma bunda massa.
Devia dar uma rebolada gostosa quando tava trepando.
O Adrian parece que vai morrer, já faz mais de dez horas que tá de olhos fechados. Se bem que ele sempre foi dos budismos e tal, deve tar meditando ou algo do tipo.
E se não tiver?
E se esse filho da puta tiver morrido desidratado? Ou de fome?
Mais cheiro ruim.
PUTA MERDA ...QUE FOME DO CARALHO!
A saliva escorria pelo canto inferior esquerdo da boca e acumulava-se no chão formando uma pequena poça que melava o rosto do rapaz. Os olhos fechados abriram-se com dificuldade enquanto a cabeça latejava.
Demoraram alguns segundos antes que a visão deixasse de ser embaçada e voltasse ao normal e, foi ao tentar se levantar, que Chuck percebeu o que havia acontecido. Estava deitado de costas para o chão.
Os comprimidos haviam gerado uma overdose e ele havia desmaiado.
Ainda sentia a cabeça doer quando escutou uma voz assustadoramente familiar. O som lembrava o de cachorros grunhindo.
-Você não acha que está sendo ingrato?
O choque que aquelas palavras causaram em Parthold foi tão grande que ele não conseguiu responder ou esboçar qualquer outra reação se não a de tremer o corpo inteiro.
-Ora, seja homem. Olhe para mim- Disse a voz. A criatura estalou os dedos e imediatamente o homem foi erguido no ar. O corpo rígido e ereto como se estivesse empalado.
-Não entendo vocês humanos, de verdade. Quando estava perto de morrer você veio até mim suplicando pela vida.. Agora tenta todos os dias se matar. Sabia que eu tive que matar aquele garoto do carro pra que você sobrevivesse? Se não quiser que mais pessoas inocentes morram eu sugiro não se jogar mais na frente de carros.
-A sede..- A voz de Chuck estava falha e tremida.
O medo era perceptível.
-É um dos efeitos, sim. Mas você está vivo, não está? Sabia que eu tive que matar aquele garoto do carro pra que você sobrevivesse? Se não quiser que mais pessoas inocentes morram eu sugiro não se jogar mais na frente de carros.
-Eu não queria...
-Claro que queria. Você pediu por isso..Implorou a mim por coragem para comer os próprios companheiros. Lembra disso? Lembra quando a fome estava insuportável e você simplesmente queria carne?
O grunhido penetrou os tímpanos de Chuck e despertou nele um turbilhão de sensações desagradáveis. De repente sentia um gosto amargo na ponta da língua, um líquido quente e grosso que descia garganta abaixo com violência.
Sangue não era fácil de engolir.
Sua mente foi invadida com dezenas de lembranças estranhas. Ele não apenas lembrava dos acontecimentos como parecia vivencia-los novamente.
Fechou os olhos e, quando os abriu novamente, estava em uma casa quase que completamente destroçada por uma explosão. A porta estava bloqueada e quatro de seus companheiros estavam deitados no chão. O odor de suor, urina e fezes recheava o ar.
A fome era intolerável.
Em um segundo de desespero ele desejou a carne dos membros dos amigos, pediu com toda a sua fé por forças para comer.
E o demônio atendeu seu pedido.
Seu corpo mudou completamente em questão de segundos. Os ossos cresceram e os músculos estenderam-se por completo ao passo de que pelos grossos e pretos nasciam e cobriam toda a pele.
O maxilar alongou-se e os dentes ficaram afiados.
A primeira dentada foi a mais prazerosa, a abundância de sangue que escorria para dentro da boca era prazerosa. A carne era macia e deliciosa, até mesmo os ossos se partiam com facilidade.
Em questão de segundas a casa estava completamente recheada de sangue e membros partidos ao meio.
Chuck havia matado sua fome.
- Lembrou agora? Foi você quem fez tudo. Eu apenas dei uma ajuda – O grunhido trouxe o rapaz de volta à realidade.
-Eu quero morrer..
-Isso não é mais possível. O presente que eu te dei garante a vida eterna..
-Mas a sede..
-Você não sentiu sede quando bebeu sangue, sentiu?
Antes mesmo que a frase fosse completada o amaldiçoado entendeu a mensagem. Sabia o que precisava fazer para saciar a sede.
Não tinha mais necessidade de água.
O que ele precisava era outra coisa.
Aquela noite seria sangrenta.
FIM