A praga da velha

Como sempre acontece em qualquer cidade, garotos gostam de brincar e jogar bola no meio da rua, muitas vezes incomodando vizinhos incomodados por natureza. Assim acontecia com os jovens do bairro Pantanal, cidade de Montes. Meninos entre nove e 12 anos faziam uma algazarra. Mas as reclamações se tornaram severas apenas com a mudança da senhora Felizmina Oliveira para a pequena casa de paredes gastas e janelas carcomidas, em frente ao trecho onde os meninos se reuniam. A idosa, 70 anos, viúva, sem filhos, de pele mulata, enrugada, cabelos totalmente brancos e embaraçados, feições ranzinzas, como se estivesse sempre com raiva, não tolerava a zoada provocada pelos jovens durante as peladas.

Em um mês de moradia na rua das Castanholas, as brigas com os garotos se tornaram constantes, quase diárias. Xingamentos, insultos, palavrões. Fernando, o líder da turma (geralmente andavam em dez), pois sempre há alguém com maior influência sobre os demais, era um dos mais agressivos e respondões. Contava com a conivência dos pais e anuência da vizinhança, cuja maioria também não gostava da idosa ranzinza. Na verdade, achavam que ela reclamava demais. Eles mesmos, apesar de se incomodarem às vezes, não achavam motivo para tamanha briga uma vez que o bairro e a rua eram basicamente residenciais, ou seja, muitas famílias, muitas crianças.

Mas a senhora Felizmina Oliveira não aceitava o barulho, queria sossego. Era isolada, falava pouco e cumprimentava superficialmente os vizinhos. Não tinha conquistado muitas amizades. Também não era vista na Igreja de São Clemente, onde a comunidade se encontrava aos domingos para as missas. Os moradores não sabiam, mas Felizmina não professava o cristianismo, tinha em sua casa um altar dedicado a “Quibanda”, religião afrodescendente dedicada ao culto de Exus, cujo poder invocava para a destruição dos seus inimigos, diferente da “Umbanda de Luz”, que prega boas práticas e visa o bem comum.

Para felizmina essa era a sua arma, portanto, a mantinha em segredo. Em suas orações um nome era citado com frequência, Fernando, a quem rogava todas as pragas possíveis. Como se ela soubesse que morreria na manhã seguinte, dedicou horas daquela noite a encomendar a destruição do garoto mediante muito sofrimento.

Por volta das 9h00 da manhã lá estavam eles, jogando futebol novamente, no mesmo trecho da rua, com muito barulho e gritos, como um dia normal de sábado, sob forte sol. Não demorou muito para que a senhora Felizmina saísse de sua pequena casa, descesse a calçada e caminhasse até a beirada da rua para gritar com os meninos e mandá-los embora.

- Moleques safados, me deixem em paz! Vão embora!

- Vai cuidar de sua vida, velha! A senhora é que tem de nos deixar em paz, sua velha enrugada! – gritou o Fernando.

- É, vai dormir, velha! – Fizeram coro outros enquanto tentavam jogar.

- Me respeitem moleques sem educação – gritou Flizmina já visivelmente transtornada e dando sinais de cansaço.

- A rua é pública, velha! – gritaram os garotos enquanto gargalhavam e zombavam.

- Vagabundos!!! – berrou a idosa enquanto sentia formigamento no braço esquerdo e fortes palpitações no peito, sintomas acompanhados de tontura e vertigem.

Ela virou as costas para rua e foi cambaleando em direção a sua casa, enquanto abraçava a si mesmo, encolhendo-se e sentindo muita dor no peito esquerdo. Ao subir a calçada, caiu.

Ao perceberem que ela estava no chão, os meninos encerraram a partida de futebol e, por alguns segundos, ficaram a observá-la. Muitos saíram correndo, enquanto outros, tendo o Fernando à frente, foram até ela. Enquanto isso alguns vizinhos saíam de suas casas, alertados pelos filhos, para ver o que estava acontecendo.

Fernando se aproximou lentamente, abaixou-se e perguntou:

- A senhora está bem? Pode me ouvir? – Estava assustado e confuso.

Caída de lado, quase que sobre o braço direito estirado, portanto, meio de bruços. Felizmina ergueu a mão esquerda com olhos suplicantes em direção ao garoto, claramente desejando que ele a segurasse.

Ao atender ao pedido surdo da idosa, Fernando estremeceu, especialmente ao ouvir de Felizmina a seguinte palavra sussurrada:

- “Demônio”. – Em seguida desfaleceu.

Os olhos de Fernando se arregalaram, arrepiou-se por inteiro, com muito frio na barriga, suando bastante. Soltou a mão da idosa e caiu sentado para trás, pensando no que tinha escutado. Seus amigos que não ouviram a idosa, perguntaram o que havia acontecido. Ele olhou-os totalmente lívido, mas não respondeu.

Nesse breve instante adultos chegaram à calçada onde a velha estava desfalecida e chamaram uma ambulância pelo celular. Dona Felizmina foi levada para o hospital, mas não resistiu, indo a óbito minutos depois. Parentes da cidade vizinha de São João vieram reclamar o corpo para que ela fosse velada e sepultada.

Fernando já havia passado um dia ruim, assustado. Não queria sair de casa. Uma horrível sensação o dominava, como se algo fosse acontecer. À noite, por mais que não quisesse dormir sozinho, seus pais o obrigaram a ficar em seu quarto, “já era um homenzinho”, disseram. “Não devia se importar com besteiras”, concluíram.

Quando sua mãe saiu do quarto e desligou a luz deixando o ambiente semi-escuro, Fernando começou a tremer convulsivamente. Olhando para os lados sem parar. Sua cama ficava encostada à parede. Quando o sono e o cansaço pesaram, por um instante ele virou o rosto e fechou os olhos. Nesse breve momento uma criatura semelhante a um humano, com mais de dois metros de altura, pele escamosa e escura como breu, brotou das sombras. Longas unhas afiadas, dentes grandes que saíam da boca e chifres pequenos, mas vermelhos como seus olhos, não deixaram dúvidas sobre o que era.

Ele foi em direção a Fernando.

Na manhã seguinte, bem cedo, a senhora Julia, mãe do Fernando, foi até o quarto do filho apenas para observar como ele estava. Tudo o que viu foi a cama ensangüentada e nenhum sinal do garoto. O seu grito acordou toda vizinhança.

Fernando nunca mais foi visto.