Doce Vida Sozinha
Doce vida sozinha... solitária, triste. Deus, como eu estou triste, enclausurado solitariamente naquela prisão, sem a luz do sol para iluminar-me durante o dia, sem a brisa do vento bater no meu rosto! Deus, como é triste essa minha vida...
De tão enclausurado neste lugar, nem mesmo mais sei quando é dia e quando é noite, pois o tempo parou para mim completamente. Só sinto as horas passar, os dias passar; e sei que determina hora do dia é conforme vão chegando os meus alimentos ou o meu banho. Banho com água, porque o meu de sol, já faz muito tempo que não mais o tenho.
Ah, Deus, Deus, como estou cansado dessa vida! Ficar o dia inteiro enclausurado no interior de uma cela fria, sem grades para o mundo exterior, tendo como companhia apenas minha fértil – e agora deturpada – imaginação. Não tenho mais a presença da chuva, do sol, do frio, do calor, tudo é tão mono-tono no lugar, tão parado – nem sei mais a quantos andam o mundo exterior.
Como estou sozinho naquele lugar, Deus! Esse, sem sombra de dúvida – retirar do ser humano não tão somente sua liberdade, mas tirar sua companhia -, é a mais cruel das penas impostas por um humano. Ser trancafiado eternamente – tudo bem que meu eternamente é por curto espaço de tempo – em um local vazio é a situação mais torturante, não para o físico da pessoa, antes fosse, mas para sua mente.
Nada mais poderei fazer, a não ficar esperando meu cruel destino cair sobre meus ombros. Nada mais posso fazer, a menos divagar, lembrar-me dos tempos floridos, onde minha liberdade não fora tolhida, lembrar-me dos tempos que minha felicidade não fora arrancada cruelmente de meu peito.
Lembro-me até hoje da minha infância, por mais anos que já tenham passado desde o seu findar. Nasci no berço de uma família rica, filhos de diplomatas. Nasci em Berlim, mas logo que meu pai veio ao óbito vim para este país, terra natal de minha mãe e aqui permaneci, nesta terra que chamei de minha e ganhei sua ingratidão eterna.
Eu, na época com meus seis ou sete anos, me encontrava feliz neste novo país. Fui aprendendo seus costumes, suas tradições, enquanto neste lugar crescia. Entretanto, enquanto me vislumbrava daquela nova terra, por trás de tamanha beleza, escondia um governo autoritário e despótico, um governo formado por “um homem do povo e contra aqueles que são contra a Pátria Nacional”, assim se denominava o homem conhecido como Androi Kazigurav, de codinome “O Leão da Esperança”, autodenominado Chefe Supremo da Ordem Inteira, da Segurança, da Lealdade e da Esperança. Androi era um homem rígido e despótico, proibia de forma violenta qualquer manifestação populacional que ocorresse em seu país, por dizer saber o que era melhor para o seu povo. Fazia discursos efusivos, com demagogia nauseante, contudo, o povo acreditava em suas palavras. Androi dava-lhes segurança; em troca, tolhia-
lhes a liberdade.
Quando criança, não imaginava, mas desde que se tornara adolescente, minha mãe era uma grande ativista política, opositora do governo de Kazigurav. Ao perceber que minha mãe cairia nas mãos do governo, meu avô a fez casar com um diplomata trinta anos mais velho que ela, retirando-a, assim, do país. Contudo, veio posteriormente a morte do meu pai, com meu avô já também falecido, e isso fez minha mãe voltar para o seu país de origem. Não seria problema algum, se ela não voltasse atacando o regime, chamando-o de “porco e sujo”. Foi aí que eu também passei a odiar o governo de Androi.
Foi armado um plano para derrubar o governo de Androi, um plano engenhoso, elaborado e posto em ação durante oito meses consecutivos. Estava tudo pronto, todavia, na noite anterior, o grupo de minha mãe foi traído por um de seus homens e todos presos. Depois de dezoito dias de tortura e cento e oitenta e cinco de enclausuramento, o governo executou a sentença dada a ela pelo juiz.
Fiquei triste e preocupado quando minha mãe, que havia saído para “exercer sua cidadania”, como ela havia dito, não havia mais voltado. Depois de um ou dois dias, até disse para minha avó passar na polícia avisar de seu desaparecimento, entretanto, minha avó apenas disse para mim que seria impossível, porque a polícia do país só defendia os ricos. Quando fiquei sabendo do destino que minha mãe teria – e teve -, amaldiçoei o Estado e o maldito Androi. Jurei que o mataria com minhas próprias mãos.
O destino de minha mãe... um destino vergonhoso. Androi queria dar à líder da oposição uma sentença que retiraria sua honra e desse-lhe uma vergonha além-túmulo. Foi decretada a sentença de execução pública. Foi retirada sua roupa e chicoteada, além de ter sido estuprada na frente de milhões de pessoas pelo pelotão de fuzilamento e, por último, fuzilada. Aquilo serviria para que todos não quisessem o mesmo destino e passassem a obedecer Androi Kazigurav. Contudo, o que ele não poderia imaginar que seu filho viria aquela cena e também passaria a odiá-lo.
Entrei no ativismo político aos catorze anos, protestando contra o governo. Aos vinte, fazia ataques terroristas. Aos vinte e dois, estou preso e prestes a ser fuzilado, depois de falhar em um engenhoso plano para derrubar Androi. Dessa vez, feliz-mente, não fui traído; a própria sorte estava do lado do maldito ditador.
E cá estou. Praticamente um senhor – desde que fui preso, envelheci de uma forma rápida, além dos cabelos e barba imensos -, louco e senil, sentado no chão sujo e frio, divagando sobre meu passado, sobre o tempo em que minha liberdade ainda não havia sido tolhida.
“Acho que já vivi tempo demais...” , sempre repito essa frase. Em seguida, discordo, corrigindo a mim mesmo: “Apesar de nunca ter vivido...”. E de fato era. Nunca casei, nunca namorei, nunca amei ninguém, nunca realizei meus sonhos, por causa desse meu ódio para com o maldito governo. Ah, se arrependimento matasse. Eu teria vivido! Eu teria amado, eu teria me casado, eu teria arrumado filhos, eu teria realizado meus sonhos. E são tantos sonhos! E agora morrerei assim, de uma forma estúpida, sem nunca ter feito nada de útil na minha vida... maldita vingança boba!
Senti-me um inútil agora, um demagogo, um louco, que sabe apenas divagar... Como queria voltar no tempo! Como queria ter a chance de sair dessa maldita prisão! Como queria rever o sol, sentir a chuva cair em minha cabeça novamente... Como queria sentir novamente o abraço apertado de meus amigos, de meus entes queridos... de minha mãe... Veio, repentinamente, um aperto em meu peito, uma queimação doentia, que começou no meu âmago e espalhou-se por todo o corpo. Saudades eternas à minha querida mãe...
Repentinamente, para minha surpresa, eis que surge meu jantar. Só assim eu sabia quando era noite, quando era dia...
Apesar de não estar com fome, peguei o pequeno prato de comida, introduzido ali por uma pequena fresta na grande porta de ferro. O prato estava embalado com um pano preto, como de costume, entretanto, desta vez, logo abaixo dele, havia um envelope. Peguei-o, levei-o até a frente do meu rosto e abri-o. Tinha um pequeno bilhete.
“Execução marcada para amanhã, às 7 da manhã, atrás do pátio 4 da prisão
Dar-lhe-emos as roupas que terá de usar no momento
E que Deus lhe perdoe pelos seus atos nefastos”
Meu coração apertou incomensuravelmente no meu peito, minha vida seria de mim retirada no amanhecer do dia subsequente. Minha vida, minha doce vida que não aproveitei findar-se-á por aquele que considerei boa parte de meu viver como meu deplorável inimigo. Maldição! Que fim indigno, para uma vida indigna! Ao menos eu não morreria como um porco, morto cruelmente na frente de uma multidão, para satisfazer as sandices humanas, como minha mãe foi! Entretanto, mesmo sem morrer como um animal, minha morte ainda era indigna. Ao invés de morrer em um combate por meus ideais, como sempre sonhei, morrerei fuzilado, depois de dias, semanas, meses, sabe-se lá quanto tempo passou desde que fui enclausurado, rezando para que minha morte chegasse e esse inferno se findasse! Simples-mente deplorável!
Naquele instante, perdi completamente minha vontade, não só de comer, se é que havia alguma naquele instante, mas de fazer qualquer coisa. Prostrei-me, largado como um cadáver no chão sujo e frio da minha cela. Minhas forças esvaíram-se por completo do meu corpo, enquanto minha mente a mil por hora trabalhava. Mais que meros devaneios cotidianos, daquela vez o flashback que tomava conta do meu corpo era maior, mais intenso: lembrava-me por completo de minha trajetória por esse plano material, da minha infância até o dia de hoje.
Enquanto o flashback passava por meus olhos, meu peito se incendiava. Tantas lembranças do meu tempo de liberdade faziam meu peito se incendiar de remorso e de nostalgia, mas, sobretudo, pelo desejo de viver, o desejo de voltar àquele mundo que outrora eu pertencia e que repentinamente fui-me dele retirado. Como a vida estava sendo cruel comigo! Morrer nem nunca ter vivido!
Tão logo findou meu flashback, adormeci.
Acordei na manhã seguinte com pequenos golpes contínuos de concussão em minhas costelas. Senti-os primeiro. Em seguida, escutei vozes gritando “Acorde. Ande. Acorde”. Por último, senti-me um poderoso golpe de coturno, seguido por uma dor imensa, oriunda de entre minhas pernas, que logo preencheu todo meu corpo. Acordei de sobressalto, tamanha a dor.
Estava na minha cela, no mesmo lugar onde adormeci. Ao meu lado, três soldados com suas armas na cintura.
- Finalmente acordou, mariazinha! – disse um dos soldados, o mais velho dentre os três, em tom de deboche – Vamos. Não temos o dia todo! – ele jogou uma muda de roupas sobre mim – Vista-se e vamos!
Naquele momento, fui tomado com uma melancolia exorbitante. O dia já havia raiado. Meu fim estava chegando.
Levantei-me, ainda com dor, enquanto os soldados partiam do local. Ficaram na porta, vigiando-me, para evitar minha fuga, enquanto eu me vestia. As roupas dadas eram uma camisa regata branca e uma calça verde claro, segura por cinto. Tão logo terminei de me vestir, um dos soldados adentrou no local e algemou-me, com extrema facilidade. Não reagi, não esbocei nenhuma reação; encontrava-me completamente inerte – a sensação de calvário é insuportavelmente assustador.
Fui carregado pelos dois soldados mais novos por entre os corredores daquele presídio. Saí do corredor das solitárias e adentrei no outro pavilhão. Dali, atravessei dezesseis corredores pelas alas A, B e C da prisão antes de chegar ao pátio. Encontrava-me no pátio 3, entretanto, dali era só atravessar um corredor extremamente vigiado que se chegava nos muros atrás do pátio 4, onde era o paredão de fuzilamento.
Enquanto caminhávamos, com voz triunfante e de puro deboche, o soldado mais velho dizia:
- Que vida tola a sua, né? Lutou por um ideal ridículo e vai morrer por causa dele. Por que não obedeceu ao governo como os outros fazem? É tão difícil assim seguir uma ordenzinha aqui, outra ali, calado? Não, tinha que bancar o herói! – começou a aumentar sua voz – Tinha que ser contrário. Bem feito. O fato de ser contrário vai lhe custar a vida, rapazinho! – disse, encarando-me com seu bigode grisalho
Na minha mente, agradeci, com extremo ódio, as palavras do soldado. Custei a esquecer de que perderia minha vida sem nunca tê-la aproveitado, e o soldado fez questão de jogar na minha cara. Até voltar minha serenidade do início da manhã, talvez eu nem mais assim precisasse estar...
O soldado afastou-se e continuamos nossa caminhada. Após alguns minutos, chegamos ao fatídico local da minha execução.
Era um imenso espaço aberto, do lado de fora da prisão. Tinha um imenso paredão feito de concreto, para onde estava sendo levado. Na frente do paredão, completamente marcado com balas, a cerca de vinte ou trinta metros, se encontravam sete soldados armados com carabina. Eles não pareciam querer fazer aquilo, entretanto, preferiam fazer, ou poderiam, futuramente, estar no mesmo lugar que eu.
Ao lado do pelotão de fuzilamento, havia um senhor, com trajes de cor roxa e uma imensa cruz, como penduricalho, em seu pescoço. Parecia-me ser um padre, mas pouco me importava quem aquele sujeito era.
Do lado de fora da prisão, eu sentia novamente o sol batendo no meu rosto, na minha pele, sentia novamente a brisa do vento batendo... Deus, como é bom novamente sentir a natureza! Fez-me voltar a ficar sereno, antes de me lembrar do porquê de me encontrar naquele local.
Os soldados que me carregavam deixou-me à frente do pelotão de fuzilamento, com as costas no paredão. O soldado mais velho trouxe uma faixa até mim e prendeu-a sobre meus olhos, vendando-me.
- Que Deus te perdoe por seus atos nefastos! – sussurrou o soldado no pé do meu ouvido, repetindo a mesma frase que li no papel que ditava sobre minha execução
Os três soldados partiram até ficarem ao lado do pelotão de fuzilamento. Enquanto os soldados caminhavam até seus respectivos lugares, o padre caminhava em minha direção. Não conseguia vê-lo chegar, entretanto, sabia que estava vindo, pelo barulho do mexer de seu penduricalho.
O padre chegou até mim, repousou uma de suas mãos sobre meu ombro esquerdo e perguntou-me:
- Qual seu nome, meu jovem?
- Chamo-me Haki.
- Haki, queres confessar?
- Não, senhor padre!
- Arrependido do que fez para se encontrar aqui, Haki?
- Jamais!
O padre fez o sinal da cruz na minha testa.
- Quod quae ostia de Rengum Caelorum sunt aperire ut cum si invenire apud Our Lorem ipsum Jesus Christus! – disse. Continuou, fazendo sinal da cruz no ar, à minha frente - In nomem de Pater, de Filius, de Spiritus Sanctus! Amen!
Eu não havia reparado, por causa da venda, mas todos fizeram sinal da cruz, junto do padre. Tão logo findou suas preces, o padre abaixou sua cabeça e partiu do local.
- Pelotão! – gritou o soldado mais velho. Os sete soldados engatilham os seus respectivos fuzis e os apontam em minha direção
O padre abaixou a cabeça e fez sinal da cruz. Não queria ver aquela cena, por isso virou de costas. Os dois soldados que me carregavam também não queriam nada daquilo. Um deles lacrimejava em um de seus olhos, tamanha tristeza de ver retirar a vida de um jovem, assim, tão brutalmente.
Os sete soldados do pelotão de fuzilamento também fizeram sinal da cruz. Eu somente abaixei a cabeça e esperei a descarga das balas cair em meu peito.
O soldado mais velho começou a contagem. Sabia que quando ele gritasse o número três seria o grito para que o pelotão me executasse. Naquele momento, tudo parou: o tempo parou, os soldados para-ram, os gritos pararam; o tempo congelara. Nada se movia, nem mesmo eu.
Os segundos – os meus últimos segundos – tornavam-se grandes, gigantes, infinitos... Aquela situação, de esperar míseros três segundos para morrer, e ele nunca passar, ou passar como se cada segundo fosse um milênio, estava me destruindo por dentro. Era como se eu estivesse encravado em uma cama de hospital, com uma doença terminal, e Deus não retirasse minha vida. Você sabia que ia morrer, mas não sabia quando. Queria que tudo chegasse logo, que todo aquele sofrimento logo se findasse, mas nunca acontecia. Ia se prolongando, se prolongando, se prolongando, só para que tudo fosse mais sofrido antes de se findar... assim estava eu, desde o dia que fui enclausurado. Aqueles dias, aliás, eu ainda tinha alguma esperança de que tudo iria mudar, de que uma revolução aconteceria e derrubariam Androi, ou que se esquecessem de mim, me perdoassem, me dali soltassem. Entretanto, toda essa situação de esperança desapareceu de minha mente com o bilhete da noite anterior. E assim me senti um encravado em uma cama de hospital, com uma doença terminal, louco para morrer, para que tudo se findasse, mas não consegui. Agora, tudo estava lento, demasiadamente lento, só para que eu sofresse mais. Eu queria morrer, eu queria que logo tudo se findasse... E finalmente chegou o três!
Tudo naquele momento parecia extremamente devagar, como se, entre uma coisa e outra, existisse um espaço temporal gigantesco, ao invés de míseros microssegundos, como realmente foi. Primeiro, escutei o grito do “TRÊS!”. Apesar da venda me impossibilitar de enxergar, fechei os olhos. Depois, o pelotão apertou o gatilho das armas e um estrondo ribombou no ar. Por fim, senti um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete tiros atravessarem meu peito e acertarem na parede. Senti meu coração, meus pulmões, minhas vísceras, meu estômago serem perfurados. Não senti dor em nenhuma das perfurações, parecia uma pequena agulha furando meu dedo; entretanto, sentia meu sangue esvaindo furiosamente pelas feridas.
Tão logo o sétimo tiro perfurou meu peito, meu corpo tombou para trás. Minhas vistas escureciam rapidamente, em velocidade igual à inconsciência de minha cabeça.
Enquanto caía no chão, eis que surge um grito afoito, oriundo de um rapaz, de terno e gravata, correndo furiosamente em nossa direção.
- Parem a execução! – gritava o rapaz
Caí no chão. Ainda estava vivo. Como o tempo voltou a correr, sentia a dor preencher furiosamente meu corpo. Respirava ofegante, enquanto minha consciência e meu sangue esvaíam de meu corpo. Minhas vistas estavam escurecidas; naquele momento, eu só conseguia escutar, enquanto minha vida esvaía – lentamente, para que eu sofresse mais – de meu corpo.
- O que aconteceu? – perguntou o soldado mais velho
- Uma rebelião aconteceu no palácio do governo. Kazigurav foi assassinado pelos líderes rebeldes, que tomaram o poder e revogaram todas as sentenças contra os opositores...
Naquele instante, ao ouvir as palavras daquele jovem, eu sorri, pouco antes de minha vida se esvair de meu corpo. Até no fim da vida me pregam uma peça. Poderia estar vivo, mas o jovem não correu – ou não quiser correr – o suficiente para evitar minha morte... Pelo menos, meu trabalho aqui foi concluído: vivi para derrubar Androi Kazigurav e consegui, mesmo que não tenha sido eu mesmo. Minha missão na terra havia findado, era hora de partir. Não tinha nada mais pra fazer nesta terra. Naquele instante, enquanto partia deste mundo, até agradeci por não ter sobrevivido ao fuzilamento...