É Tudo Minha Culpa – DTRL23 - #Luto#

#Luto# - Em respeito e homenagem ao autor e amigo; Paulo Moreno.

Era noite e a aba da janela fazia-se de assombrada, açoitando o próprio marco, em batidas ocas e impiedosas. Através do vão os olhinhos arregalados miravam o breu avassalador, que apresentava-lhe o vazio do medo, lá fora. Cada centímetro adiante diminuía a visibilidade, até que a escuridão se tornava total. A criança permanecia inquieta, sem dentes, como se quisesse dizer algo, mas como poderia? Quando a brisa gélida e sombria tocou-lhe o rosto, mãos funestas balançaram o berço uma última vez e o silêncio apossou-se do cômodo, deixando apenas resquícios de um suspiro que se dispersava invisível pelo ar.

Arrastando-se pelo teto uma sombra carregou-a nos braços, rastejando em direção a janela.

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Antonieta era mulher linda, dona de trinta e uma primaveras, ostentava um corpo de atriz de cinema, mesmo após o nascimento do bebê, o pequeno Arthur, que viera ao mundo por intermédio de um doloroso e divino parto normal.

As grades do berço, o mosquiteiro branco, o chocalho colorido e decorado com argolas verdes e azuis, e a mamadeira de Aptamil traziam esperança de um pouco de tranquilidade para que a mãe pudesse terminar o preparo do jantar para Filippo, seu doce e romântico marido.

O casal italiano viera para o Brasil há cinco anos, e residiam na ala leste da Tijuca, numa casa de aluguel, a qual era paga pela multinacional que contratara em definitivo os serviços do renomado Consultor em Economia. Era tudo que ele queria, um lugar para firmar raízes, e o Brasil sempre foi uma de suas paixões.

Antonieta era designer de interiores e prestava serviços a domicílio para famílias nobres da região. Quando precisava agendar visitas o pequeno ficava aos cuidados de Don’ana, uma senhora de cor, humilde, que fora indicada por uma vizinha.

A italiana deixou as panelas ao fogo, caminhou em direção ao banheiro, passando frente a escada de mármore que levava para o andar superior onde ficavam os três quartos; o de casal, o de Arthur e o de visitas. Sua família e a do marido moravam em Roma. Com o nascimento do neto os pais já haviam programado a viagem para a primeira semana do mês seguinte. A ansiedade era tanta que Filippo havia organizado uma pequena recepção para os sogros.

Estava sentada no sanitário, com a porta do banheiro entreaberta. Os joelhos se tocavam, batendo como dentes em reação ao corpo frio, e os pés estavam afastados cerca de trinta centímetros um do outro, lembrando a imagem burlesca de Julia Roberts em Uma Linda Mulher. Indiferente a isso o dedo indicador articulava com destreza alternando fotos e mensagens que chegavam pelo aplicativo do celular. Risinhos escapavam pelas esquinas dos lábios volumosos. A chaleira apitou, febril, feito choro de criança, despertando-a de seu transe.

Levantou e partiu desengonçada pelo corredor, esquecendo-se até de apertar a descarga, como se estivesse participando de uma corrida de saco, erguendo a calça jeans enquanto a calcinha entrava torta e desacomodada pelas partes íntimas.

- Cazzo! - Soltou, quando viu a bagunça na cozinha. O cheiro de queimado começava a surgir do arroz, e o vapor da chaleira indicava o quanto a água havia aquecido. Desligou as chamas das panelas, sorte que o apito ainda salvara o jantar. No forno a carne já estava no ponto, Antonieta esperava apenas que aquele livrinho de receitas da “Tânia Maria Vargas” realmente funcionasse, pois se adaptar a culinária brasileira estava sendo seu maior desafio.

O silêncio pairou no ambiente, a não ser pelo bater da janela.“A janela! O frio! Pobre Arthur!”, pensou e de imediato saiu em direção ao quarto do filho, subindo degrau por degrau, enquanto a mão direita era usada para tomada de impulso, abraçando o corrimão. O som do trombar da janela ficava cada vez mais forte, e o curioso era que não havia sequer sinal de choro ou riso do pequeno.

- Está dormindo, ragazzo mio?

Ao chegar a porta do quarto olhou para o berço e o que viu a assustou. Soltou um grito de pânico, e o som de sua voz foi camuflado pelo bater oco da veneziana, escancarada. “Não pode ser! Não! Dio mio!”. Correu desesperada em direção ao vão que mirava o escuro, e ao olhar para o jardim que tanto gostava não viu nada, nem sombra de alguém que pudesse socorrê-la, ou... “E agora?”

Pensou em gritar por ajuda. Estava apavorada. Olhou novamente para o berço, a tensão dominando-lhe por inteira. “Não pode ser verdade” Ponderou. Colocou a mão dentro do móvel, e quando teve certeza que realmente havia perdido seu bebê, caiu ao chão. As mãos trêmulas tentavam encontrar equilíbrio e coordenação para teclar e ligar... Mas era inútil. Mal podia gritar, a voz simplesmente não saia. Sentiu-se um navio perdido no Triângulo das Bermudas, sua pressão afundou tal qual uma ancora, e então desmaiou.

...Três meses depois...

- Antonieta, coma um pouco, querida.

- Não quero.

- Amore mio, o detetive já havia nos explicado que não seria fácil. Você precisa sair dessa cama. Eles vão encontrar nosso Arthur, acredite! Cuore, per favore.

- Não quero. Andare!

- Trouxe algo para você. É uma surpresa.

- Você sabe qual é única coisa que quero.

- É para lhe fazer companhia, enquanto viajo. Estarei ausente esse fim de semana, e sabe o quanto isso é importante.

- Companhia?

- Sim. Espere só um pouco.

O marido saiu do quarto e voltou em minutos com uma caixa de madeira que possuía uma grade na frente. Colocou-a por cima da cama e abriu a portinhola liberando um filhote de gato, albino, de olhos de cores diferentes, um azul e um verde.

- O que é isso?

- Esse é o seu novo companheiro. Ele é lindo, não é? O nome dele é Bartolomeu. Olha a gravatinha que mandei colocar nele para você. Não parece comigo? – E o marido aproximou-se dela e colocou as duas mãos sobre o nó de sua gravata, fazendo pose ao lado do gato – Você vai cuidar dela, não é mesmo Bartô? – O animal ronronou, deitou de barriga para cima e miou manhoso.

- Não quero esse bicho! – Antonietta falou secamente, cobriu a cabeça e pôs-se a chorar.

- Preciso ir, amore mio. Fique bem – E o marido beijou-a. A boca tocou simplesmente o tecido felpudo. Saiu abatido, deixando o animal junto da mulher.

A esposa adormeceu e como na maioria das noites anteriores sonhou com o filho.

Ele estava no berço, ria de forma deliciosa. Diferente de outras vezes em que chorava pela ausência da mãe – “Eu vou voltar” – Uma voz infantil ninava em sua mente – “Eu tô voltando, mamãe”. Pegou o bebê no colo e ele sorria, e havia um pequeno dente despontando pelas gengivas. “Que lindo, filho. É seu primeiro dentinho.” E outro dente começou a nascer no outro canto da boca, pontiagudo. Ela arregalou os olhos sem compreender o que acontecia. As mãos do bebê se movimentavam como se possuísse garras, acariciaram o peito da mãe , por cima do tecido, aparentemente pedindo por leite materno. “Calma, meu bem”. Espontaneamente ela abaixou a alça da blusa e o pequeno Arthur abocanhou-lhe os seios, ao momento em que o leite pingava dos mamilos, numa cor rosada, pois misturava-se com sangue. “Não devia ter deixado você sozinho, querido. Não foi minha culpa! Não foi... Nãoooo!”. Acordou assustada.

Para sua surpresa estava deitada no chão do quarto do filho, próxima ao berço, e o gato lambia seu seio desnudo. Deu um salto e o gatinho miou dua vezes. “Miau, miau” – Ela quase ouviu a palavra mamãe, mas tinha certeza que estava alucinando. “Afinal como poderia ter chegado ali? Sonambulismo?” Filippo a havia deixado na cama com o bicho. Muitas coisas haviam acontecido naqueles meses árduos. Surtos e mais surtos. “Seria esse só mais um para sua coleção?” Conjecturou.

Sentiu um líquido escorrer pelo barriga, morno. Passou a mão por dentro da blusa, umedeceu o dedo e levou a boca, percebeu que era leite, leite materno. Os peitos estavam tão cheios que parecia ter dado a luz no dia anterior. Olhou para os lados, aturdida, e não encontrou Bartolomeu. Levantou-se piscando os olhos de sono, ainda pasmada, e caminhou em direção a porta. Quando estava para sair do quarto ouviu outro miado que despertou-lhe a atenção, como se o gato a chamasse. Virou-se para trás e o avistou brincando com o chocalho de Arthur, de barriga para cima, as patas se movimentando aparentemente como o filho fazia, dentro do berço (que ainda estava lá, do mesmo jeito desde quando o bebê havia sido dado como desaparecido). Arregalou os olhos e saiu de lá, apavorada, trancando antes a porta do quarto.

- Devo estar louca! – Murmurou para si quando os primeiros arranhados do animal chegaram a seus ouvidos. Olhou para o chão e pôde ver as unhas do gato despontando pela fresta inferior da porta. “Miau... Miau... Miau...”

Desceu as escadas em busca de um remédio para dor de cabeça. Eram muitos remédios, tantos horários. Sempre se confundia. O Doutor César, seu psicólogo, havia recomentado que seguisse o receituário meticulosamente, pois sua depressão estava cada vez mais profunda. Havia sugerido que procurasse também um clínico geral, e ela o fez, o nome da médica era Janaína Flores. A "idiota" havia pedido uma bateria de exames, que já haviam sido feitos. Pegou um copo de vidro, encheu-o de água da torneira e engoliu o comprimido, sentindo o analgésico descer esbarrando nas paredes de sua garganta.

Eram seis da manhã. Pensou em fazer um café e quando olhou para mesa no centro da cozinha notou que estava toda arrumada, com frutas, suco natural de laranja e pão italiano. Havia ainda um bilhete por cima do forro. Era de Fillipo.

Buongiorno, mio cuore.

Avere fede , perché saremo sempre in tre..

Buon appetito!

Ti amo!

As lágrimas rolaram, elas sempre surgiam quando lembrava-se de Arthur e daquele fatídico dia. Tinha tanto remorso de ter acusado Don’ana pelo sequestro do filho. Mesmo que nada tenha sido provado contra a babá a pobre mulher não conseguiu mais serviço no Tijuca. Antonietta não queria ter feito aquilo, mas estava desesperada. E o desespero nos leva a atitudes que não compreendemos. “Pobre mulher.”

A parte da manhã transcorreu bem, Antonietta não ouviu mais o gatinho. O bichano deveria estar dormindo, trancado onde o havia deixado. Decidiu não folhear o livro de receitas dessa vez e saiu para almoçar num restaurante da esquina, que servia comida mineira. Desde quando chegou ficou sabendo que era das melhores culinárias do país. O estabelecimento não ficava mais que quinhentos metros de sua casa. Enquanto caminhava em direção ao restaurante tentava apagar de sua memória aquele último pesadelo, mas algo parecia trazer-lhe à tona lembranças e sensações. O que mais lhe incomodava e aturdia era a dor nos seios, como se surgisse extrema necessidade em amamentar.

Chegando ao local sentou-se debaixo de um toldo, do lado de fora do mesmo, em uma área mais arejada. Ela precisava de ar. Pediu um prato que havia experimentado na primeira vez que entrou no restaurante.“Frango com quiabo”. Na oportunidade o marido comeu tanto que precisaram ficar ali por mais tempo que o normal, apenas esperando a digestão. Passados dezesseis minutos lá estava o prato sobre a mesa. O garçom desejou bom apetite e voltou para a cozinha. O cheiro era bom.

Ela fechou os olhos e suspirou afim de reconhecer o aroma do tempero mineiro. Soltou um “humm” antes da primeira investida. Segurou garfo e faca em mãos, cortou um pedaço de frango e levou à boca. Mastigou, mastigou e pegou outro pedaço, enquanto engolia o primeiro. O talher já estava armado quando percebeu algo deslizar e acariciar-lhe rugosamente a garganta. Olhou para a comida, analisando-a e não viu nada. Resolveu colocar mais um pedaço entre os dentes. Ao morder este, percebeu que algo não era triturado, mas sim mascado. A medida que os dentes comprimiam aquele corpo estranho uma sensação incômoda era provocada no céu da boca e na língua. Queria tirar aquilo para fora. Tentando ser discreta, movimentava a mandíbula e usava a ponta da língua como utensílio, no intuito de expulsar de dentro de si, e a medida que o fazia o vômito brotava inconveniente. A língua se retorcia, tocava algo estranho, talvez um fiapo, mas não era frango. Despistou, mas como podia. Olhou para os lados e notou que alguns fregueses assistiam a cena, curiosos e enojados. Ela se engasgava e tossia. O garfo caiu na mesa. Não dava para enganar mais ninguém. Soltou a faca e levou dois dedos a boca. A goela queria lhe revelar algo, a coisa ia e voltava. Enfiou os dedos o mais fundo que conseguiu e puxou, uma, duas vezes e na terceira o que saiu era de fato nojento.

- É cabelo? – Murmurou um velho magro e alto, sentado duas mesas a sua frente.

- É, parece que é cabelo... Arggg – Comentou uma loira que almoçava com o namorado.

Mas não era um simples fio de cabelo, e sim um novelo repleto de fios. Tinha cerca de um centímetro e meio de diâmetro. Largou a coisa sobre o forro da mesa, junto a saliva e algo mais. Havia mais de onde saiu aquele. Ela enfiou os dedos novamente. O que via-se ao redor eram fregueses vomitando, deixando a comida para trás e fechando os olhos para não contemplar a cena. Antonietta continuava a tirar pelos de sua boca como se aquilo se multiplicasse dentro dela. O garçom veio correndo para acudi-la.

- Perdão, Madame. Perdão!

Ela tossia e golfava. A cena era grotesca, e Antonietta ainda estava engasgada. Tossiu mais um pouco e vomitou um último punhado de pelos, junto a um jato esverdeado que empoçou sobre a mesa e escorreu pelo forro até pingar num filete grosso de gosma que escorria em direção ao piso.

- Isso estava na comida?

- Senhora, não sabemos, é que – “Miau, miau...”e então ouviu aquele som e o bichinho saiu de dentro do restaurante. Bartô requebrava-se como se estivesse em uma passarela e vinha esbarrando nas pernas dos fregueses, acariciando-os, o rabo em pé balançando de acordo com os movimentos do corpo. Os olhos do gato miraram sua dona em meio aos fregueses, como se a conhecesse à meses, e ele rumou em sua direção.

– Esse gato é seu? – Gritou o homem que saía de dentro da cozinha. A julgar pelo chapéu branco ridículo por certamente era o Chefe.

- S-sim – Respondeu, boquiaberta, ao tempo que limpava-se com os guardanapos oferecidos pelo garçom.

- É proibido animais, senhora. Veja o que esse gato provocou? Esse bicho entrou na cozinha, e... Oras! – Antonietta levantou-se atordoada. Como o gato havia chegado ali? A janela. Claro! Devia estar aberta – Senhora, por favor se retire do meu restaurante, e leve esse animal imundo daqui.

- Desculpe-me, des... – E o garçom apanhou Bartolomeu do chão e entregou a dona, que aceitou a contra-gosto e partiu envergonhada do local.

Antonietta voltou para casa levando o felino no colo. O animal arranhava o peito da mulher que constrangia-se enquanto apressava os passos.

- Sossega, Bartô. Que tipo de gato é você? – Chegou em casa, abriu a porta e entrou. Soltou o bicho no chão, o mesmo saiu andando pela casa e sumiu para dentro dos cômodos, correndo e brincando, enquanto sua dona foi até o banheiro tomar banho.

Lembrou-se que ainda não havia ido ao jardim. Precisava regar, adubar as flores. Ela devia cuidar dele, era sua única distração. O doutor havia dito ao marido que se ela estava tão empenhada em algo, que era bom, pois isso iria amenizar o stress. A água vertia em gotas que uniam-se as suas lágrimas, lavando a pele, mas não a alma. Estava tão tensa, sentia-se muito mal.

- Que dia é esse? E esse gato? E essa dor? – Não queria nenhum animal e sim o filho de volta. Fillipo a deixou sozinha com o animalzinho que de repente parecia ser sua sombra. Ensaboava-se, as mãos saboreando as sinuosidades de seu corpo, e a cada toque os efeitos colaterais da ausência de sexo nos últimos meses eram experimentados. Sua vida havia deixado de ser um mar de rosas de antes para se transformar em um labirinto de espinhos. Não havia saída, não sem Arthur. Os dedos já eram mais provocativos, os olhos fechados faziam com que o toque da água soasse como um corpo acariciando outro, carinhos mais e mais aventureiros. As mãos agarraram os seios. Seguraram, espremeram e em seguida desceram, acalentando-a. Os dedos chegaram ao destino, as pernas se separaram e então encostou a nuca no azulejo, os cabelos molhados e em parte grudados as costas, pingavam. A boca respondia aos estímulos do corpo, trêmula. A respiração pesada, o movimento ininterrupto de massagem enlouquecia seu clitóris. Deslizou alguns centímetros, descendo, os ombros desenhando os movimentos no vapor alojado na parede, subia e descia. Uma mão na genitália, outra na boca, dentes mordendo dedos e lábios, dedos provocando a língua, e o desejo suprindo a carência de si própria. Chorou mais uma vez, junto dos gemidos incontroláveis que escapuliram no momento do gozo. Abriu os olhos, e enxergou o próprio reflexo no espelho. Vislumbrou-se por segundos em frente a porta aberta do Box. Enxaguou-se, e saiu envolvendo-se dentro de uma toalha, e depois partiu em direção ao quarto.

Vestiu-se e foi até o jardim. Com as mãos arrancava ervas daninhas que teimavam em se multiplicar afim de sufocar suas plantas. Juntava a terra nas raízes das menores, tirava as folhas secas, ela sempre gostou de flores, mas desde aquele dia, aquele local era seu descanso. Manter as flores vivas, a terra fofa, molhar, adubar, cuidar... Era uma rotina. As mãos pousaram sobre a terra, os joelhos já beijavam o chão. Antonietta segurava a pequena enxadinha de jardineira, e o amargo dava gosto a boca, aquela vontade enorme de se matar. “Uma pancada apenas com a parte de trás da ferramenta bem no meio de minha testa, só uma. Não, eu tenho que pagar... Eu preciso.” Os pensamentos rondavam o alicerce de suas dúvidas e certezas.

- Ah, meu piccolo – Sussurrava como se ele estivesse ali ouvindo-a. Ela se levantou ao escutar a janela do quarto do filho batendo, aquele mesmo batido oco, e ao olhar para cima, viu o gato olhando em sua direção, deitado com a cabeça voltada para baixo e os olhos encarando-a com avidez. Engoliu seco e entrou, tentando esconder os pensamentos tolos em relação ao animal. Arrancou as luvas, guardou-as, enxaguou as mãos e o rosto e sentou-se na sala.

Na TV as mesmas notícias de sempre; tragédias, crise política, e as novelas. Ainda não entendia o porquê dos brasileiros gostarem tanto de novelas. Era tudo tão artificial. Entediada tomou mais um remédio, dessa vez era um comprimidinho amarelado, segundo o médico era para ajudá-la a tolerar os efeitos da depressão e dar força para que não desistisse do tratamento. Como se algo pudesse ajudá-la. Engoliu o comprimido que desceu pela garganta sem qualquer problema. Deitou no sofá sem perceber a presença de bartolomeu que caminhava pisando suavemente sobre o porcelanato. O gato parou a vinte centímetros do sofá, olhou para o alvo, farejou o ar, e saltou após flexionar as patas traseiras. Aterrissou sobre a barriga da mulher, de pé, olhando-a nos olhos.

Antonietta sentiu uma dor indescritível nos mamilos, algo ardido, como se seu leite tivesse empedrado e houvesse uma pressão interna para que escapasse pelos bicos do peito. Levou as mãos aos seios, a dor era lancinante, e a cada passo do gato em direção de seus bustos era como se a agonia se multiplicasse. Engoliu em seco outra vez, acuada, os olhos do bichano fitavam os seus imitando um leão na caça de um cervo. As patas moviam-se como engrenagens perfeitas, o animal lambia a boca, movimentando-se passo a passo sobre o corpo da mulher. As garras grudavam levemente como carrapichos, cravando em sua roupa a cada pisada, entrando e saindo do tecido e quase levando-o junto de si. “Miauuuu...”

- Não pode ser você! – indagou a mulher, quando o animal parou a centímetros de seu rosto – Arthur? – Perguntou, e a resposta veio da única maneira que poderia.

- Miau, Miauuu – E o gato lambeu a blusa da mulher, e arrastou a pata direita sobre o seio como se estivesse cavando algo, mirando-a com certo dengo. Antonietta levantou um pouco as costas, desceu as alças da blusa desvencilhando o tecido do ombro e passou os braços pelo espaço vazio. Não sabia ao certo o que estava fazendo, só o fazia. Colocou-se de lado e os belos seios ficaram à mostra. O gato deitou no meio deles, apoiou a cabecinha sobre um e as garras puxaram o outro para si e ele abocanhou o mamilo, sugando-o com voracidade. As garras cravavam no seio dela, arranhavam, enquanto os dentes mordiscavam e a língua áspera coberta de pequenas papilas causava a sensação de estar escovando as bordas de sua auréola. A mulher olhava o bicho que permanecia de olhos fechados e orelhas bambas, chupando-a como um bebê faminto. Ficou ali, por minutos, assistindo e absorvendo aquele momento. A dor passou a ser referente as mordidas. Um pequeno fio de sangue escorria pela barriga, no momento em que o inconsciente parecia pregar-lhe peças.

– Você voltou pra mim, filho? Mamãe vai cuidar de você. Mame, meu bebê. Mame” – O efeito dos remédios trouxe o sono, e Antonietta dormiu com o gato nos braços. Sonhou que havia acabado de chegar no quarto do filho.

- O que você tem, meu bem? – Pegou-o no colo, o bebê procurava as alças da blusa, puxava o pano no intuito de descobrir os seios da mãe. Incomodada com aquilo ela deu um leve tapa nas mãos do menino e o pequeno pôs-se a chorar, novamente – Desculpe, meu bem. Não chore, amore mio. Mamma vai pegar uma mamadeira pra você. Mamãe já volta – Desceu para a cozinha. O marido chegaria em breve. Correu até o armário e achou o que era necessário. O vento entrava de algum canto, mas não havia nenhuma janela aberta. Um cheiro acre tomou conta do ambiente, era uma mescla de carne podre, pus e leite. Mas ela parecia acostumada com aquilo. Ao abrir a tampa da vasilha de Aptamil levou um susto. De maneira surreal e sombria duas patas emergiram de dentro do recipiente. Bartô saltou como se escapasse de uma piscina de leite coalhado, viscoso e fedorento. Os olhinhos do bicho estavam afundados em sombras. Ele agarrou o pescoço de Antonietta, cravando as unhas na nuca da mulher como um gato que fugia de um banho frio. Ao sentir a dor das garras ferindo-lhe a pele, gritou, e então abriu os olhos no mesmo instante que a campainha pôs-se a tocar, intermitente.

- Oi, Madame.

- Dona’ana?

- A sinhorinha tem que me ouvir, desculpa de incomodá a sinhora, é que – E a velha de repente viu a mancha de sangue na blusa da ex-patroa, que havia acordado – A sinhorinha tá bem?

- Sim, estou. O que você quer?

- É que esse lugá num me sai de minha cabeça. Tenhu tidu uns sõe estrãe dimais.

- Sonhos com o que?

- Sinhorinha, eu joguei as carta e a dama preceu pra sinhora.

- Dama?

- Cêis tem que arrumá jeito de si imbora. Ocê e seu marido.

- Do que está falando, Dona’ana?

- É a morte. Ela tá aqui, Dona. Di modi qui tá bem aqui nessa casa, e tá vivinha da Silva.

- Não tem nada aqui, está tudo bem Dona’ana. Eu fiquei muito feliz que a senhora veio depois de tudo que eu fiz, mas preciso...

- Que que é isso, minha Nossa Sinhora?

- É um gato, o Bartô – Disse Antonietta, olhando para o bichano que havia acabado de chegar miando, e rebolando.

- Isso num é um gato, eu posso sinti. Sá coisa é o Satanás. Saravá! Vá de reto, Demo! Vá de reto! – E a mulher fugiu se benzendo, enquanto o animal arrepiava os pelos e fazia careta para ela, como se tivesse acabado de ver um cão a sua frente.

- O que foi, meu anjo? Não se lembra dela? Venha cá, vamos, mamma vai cuidar de você – E a porta se fechou.

O restante do dia Antonietta cuidou de Bartolomeu. Brincou, correu para um lado e para o outro com o gato. Deu um banho no bichano, amamentou-o novamente, e mais ao fim da noite pegou-o no colo e o levou até o quarto, colocou-o no berço e certificou-se que a janela estava fechada. Ficou lá, olhando para o animal que dormia e roncava de barriguinha cheia. As patas abraçavam o chocalho com doçura e ele parecia sonhar.

Sorriu e teve a certeza, ainda que a ideia beirasse o impossível, de que aquele era seu filho. Foi para o quarto e deitou-se com a cabeça sobre o travesseiro. Se via aliviada, como se todo aquele pesar a deixasse. Que a polícia continuasse o procurando, afinal mesmo que ela tentasse explicar para eles, nunca iriam acreditar, nunca. Mas Filippo... Ela queria muito contar para ele. Sentiu falta do marido, ele havia ligado três vezes e como sempre a esposa não havia atendido. Haviam ainda duas mensagens perguntando se estava tudo bem, e em uma delas havia uma foto dele sentado em um restaurante, trajando um blazer de dois botões, sob ele um colete, a gravata num tom mais escuro que a camisa, mas na mesma largura da lapela, sempre lindo e elegante, com aquele queixo de linhas quase exatas, e o olhar mais apreensivo que conhecia. Como pôde ficar tanto tempo longe de seu amor?

Ligou e o marido atendeu antes mesmo que o segundo toque terminasse.

- Amore mio, está tudo bem? – a voz embaçada pelo sentimento de preocupação.

- Sim. É que – A respiração era forte – Bem, estou com saudades. Mi manchi, amore mio.

- Só mais um dia, querida.

- Ti amo tanto, amore mio.

- Eu também, minha linda.

Ela queria contar-lhe tudo, dizer para ele que o filho estava de volta, mas não podia fazer isso pelo telefone. O coração batia tão acelerado e estava tão contente. Ficou conversando com o marido por alguns minutos. Riam juntos, e ele mentia, dizia como havia sido o jantar de negócios. Ela ouvia o riso dele, era tão doce, há quanto tempo não faziam isso. No fim da conversa, ao despedir-se ainda ouviu a voz embarcada de Fillipo, num tom de felicidade atropelada por um soluço de pranto. Antonietta sentiu os lábios contraírem e os olhos sendo invadidos por lágrimas que de súbito saltavam do desfiladeiro de suas pálpebras. Desligou o telefone.

...Ainda no restaurante Fillipo conversava com a bela mulher que o fazia companhia...

- Era ela?

- Sim. Era.

- Você tem que contar. Infelizmente.

- Como farei isso. Tem sido tão difícil para Antonietta. E ela parecia tão feliz ao telefone.

- Sei que é difícil, mas é o certo a fazer.

...Antonietta dormia, e sonhava mais uma vez...

Era madrugada e ela estava de camisola, descalça, de pé no porão. O ambiente fedia a mofo e poeira. Tentou ligar a única lâmpada, e ao pressionar o interruptor constatou que a mesma estava queimada, ficando a mercê da luz da lua que atravessava o vitrô estreito do cômodo. Ouviu um choro infantil, aparentemente do filho, mas o som era abafado, como se estivesse distante, e havia outro ruído de algo que se arrastava em algum lugar. Era um som arranhado como o de ratos se esgueirando pelos cantos, ou fazendo algazarra dentro de algo. Começou a caminhar como se pisasse em ovos, chamando baixo pelo filho.

- Arthur, é você querido? – O choro continuava vindo de alguma direção. A temperatura do ambiente baixava de forma bizarra a cada passo. Trombava nas teias de aranha e as mesmas grudavam em seu rosto e cabeça. Sentia leves e minúsculas patas caminhando pela face e cabelo, a tensão só crescia. Enquanto tentava tirá-las de si, sentiu que a sola dos pés pisava sobre uma poça de água gelada, fazendo com que seu corpo inteiro sentisse o impacto da inexplicável mudança. Cruzou os braços a fim de abster-se do frio, e ouviu os ruídos cada vez mais próximos, vindo do mesmo local de onde o choro de Arthur surgia. Não via muita coisa, apenas móveis velhos e empoeirados que haviam sido deixados pelos antigos inquilinos, e também algumas caixas de papelão com revistas e jornais antigos. Contudo constatou que o barulho saía de outro item daquele estoque de tralhas. Uma caixa de isopor de cinquenta litros que Filippo havia ganhado de brinde, presente de uma das empresas onde havia prestado consultoria. O som de algo arranhando continuava, enquanto Antonietta tremia de frio.

- Filho, é você? – O chão continuava molhado, a água minava da tampa da caixa, escorrendo pelas juntas. A tampa parcialmente flutuava, sendo impedida apenas por um rádio velho que estava jogado por cima da caixa. De dentro dela o choro surgia e chegava aos ouvidos da mulher. O silêncio calava as batidas de seu coração – Arthur? – Perguntou, e em resposta algo começou a golpear contra a tampa que permanecia fechada. As batidas aconteciam a cada segundo mais frenéticas. Antonietta levou a mão direita em direção ao aparelho danificado, segurou pela alça e ainda trêmula tirou-o de cima do recipiente de isopor tão rápida como Billy the Kid sacando uma arma. As batidas cessaram e o peito acelerou. A respiração pesada revelava o quanto estava nervosa. Não bastasse isso ouviu a voz de Dona’ana cantando aquela música de ninar que tanto detestava.

Morenim tá cum rôpa de gatim hoje

Morenim tá tão bonitim

Morenim tá cum os óinhos briano hoje

Morenim tá tão bunitim

A priminha Pritinha mete o dedo no focim

Focim, que ela é um bebezim

Cacau já deve de tá voano pro rio

Morenim tá tão bunitim

- Arthur, é você? – Perguntou mais uma vez. Os olhos se estreitaram ao ver a tampa sendo movida vagarosamente. A fresta entre tampa e caixa aumentava revelando olhos assustadores. Dedos e unhas roxeadas escapavam pelas gretas da lateral menor do objeto, junto a gelo derretido. Uma pequena mão ossuda de pele enrugada e magra surgia da abertura. O choro voltou a ser ouvido, mas naquele instante era atormentador, um misto de dois sons, parte humano, parte animal. Logo reconheceu ambas as vozes como uma só, puro instinto de mãe. Certa de que era seu filho estendeu uma das mãos em direção a tampa e puxou-a, ao tempo que com a outra segurou os dedos molhados e asquerosos do bebê e quando o fez a segunda mão dele agarrou seu pulso e o mesmo saiu de dentro da caixa de isopor, escalando seu braço. A tampa caiu no chão após o espanto da mãe, que viu o...

O neném era metade humano e metade gato. Os pelos molhados estavam esparramados pelo corpo, mas não de forma uniforme... Num todo haviam falhas, inclusive na cabeça, que era coberta parte por pelo e parte por cabelo. Garras saíam da ponta dos dedos. As orelhas eram uma de felino e outra de humano, e na boca haviam, espalhadas, presas afiadas. Ele estava ensopado e gelado. Os olhos quase brilhavam no escuro e a língua era porosa feito lixa. Encarar a face do filho era ainda mais difícil, não por causa dos poucos pelos e bigodes que haviam nela, mas sim pelo nariz e boca. Ele tinha um focinho ao invés de nariz, e a boca era humana, porém no formato da de um gato. Os lábios curvados para cima, dando a ligeira impressão que a criatura não parava de rir, um riso assustador. Ele encarou-a, e falou com sua voz mista:

- Miaumãeee... – E ela acordou suando frio, a cabeça latejava e a camisola estava encharcada. Sentia-se fraca, tentou levantar-se, mas o corpo parecia mais pesado que o normal. Olhou para a roupa de dormir e a cor avermelhada se destacava no tecido e no lençol. O pano se encontrava rasgado, e pelas fissuras foi fácil distinguir que Bartô era o responsável. Os mamilos estavam feridos e a dor era lancinante. Os bustos haviam sido arranhados pelo gato até quase a carne, o que provocava forte ardência.

- Dio mio! – Com muito custo conseguiu se erguer, contudo gemendo de dor. Tirou a camisola e posou para o espelho. Sentiu-se estranha ao ver a imagem refletida. Os olhos estavam fundos, e aparentava estar mais magra que o normal. Deduziu que isso fosse porque o filho nunca havia se amamentado tanto, na verdade ela nunca havia deixado Arthur colocar a boca em seus peitos. Não. Sempre havia sido na mamadeira. Seus seios eram perfeitos demais para que a boca de um menino sugasse-os ao ponto de fazê-los cair... Ficarem flácidos. Como havia sido fútil. Por esse motivo se punia tanto. Se ela estivesse com o filho naquele momento nada teria acontecido, e Arthur estaria com ela... Mas ele estava e era isso que importava e agora o pequeno mamaria o quanto quisesse. Sorriu para o espelho, pegou uma toalha de rosto, uma vasilha de álcool e umedeceu bem o tecido.

Segurou o pano na mão e começou a limpar a ferida. A cada passada gritava, era como se a pele estivesse sendo arrancada junto ao pano, queimando feito ferro de passar roupas ao esbarrar na ponta dos dedos, quente. Doía e ao mesmo tempo em que chorava a mulher ria. Estava tão feliz por ter o filho de volta. Ao terminar olhou novamente para o corpo já limpo. De algumas feridas um pouco de sangue ainda teimava em sair. Vestiu um sutiã mais largo, como se a vaidade tivesse simplesmente ido embora. A calcinha escolhida também era frouxa.

Eram oito da manhã. O marido havia enviado uma mensagem dizendo que se tudo desse certo chegaria na segunda-feira por volta das dez horas, antes do almoço. Ficou muito alegre ao ver a mensagem, e tinha certeza que ele adoraria a novidade, tanto que enviou uma resposta dizendo que estava louca para fazer amor com ele de todas as maneiras possíveis, e que tinha uma surpresa muito especial, e que tudo iria ficar bem novamente. Deixou o celular sobre a cama e saiu em direção ao corredor chamando pelo gato, mas só o chamava de Arthur, ou de filho. Não existia mais o Bartolomeu.

- Arthur? Figlio, você está no quarto? – Caminhou em direção ao quarto do bebê. Chegou e a porta estava fechada, como havia deixado quando colocou o gato para dormir. Duas perguntas martelavam em seu cérebro: “Como ele havia saído de lá? E como ele voltou e a porta estava fechada?” Ela havia conferido a janela. Tinha certeza disso.

Girou a maçaneta e abriu a porta. Bartô dormia tranquilo, onde ela o havia deixado. Parou a admirar o gato e procurar semelhanças com o menino-animal de seus sonhos. Nada daquilo poderia ser explicado. Sentia-se tão bem, tão lúcida. Como o gato poderia estar deitado?

- Arthur... Acorda, Arthur! Acorda! – O gato dormia tranquilo, apenas levantou a cabeça, olhou para Antonietta e voltou a dormir. Ela olhou para a boca do gato, procurando algo, e nas patas. “Tinha que haver um pouco de sangue. Era seu filho, ele havia feito aquilo.” O gato parecia cansado, e não havia nada.

- Sim, você tem que estar cansado, pois ficou a noite inteira chupando meus peitos! Che dormiente, ragazzo! Acorde! – O gato se levantou, desinteressado. Ela o pegou no colo, e ele simplesmente recusou o carinho, saltando de encontro ao piso, não antes de unhá-la nos braços. Saiu correndo passando o corpo de leve na porta e sumindo em direção ao primeiro andar – Mas?! – Antonietta estava passada.

- Não pode ser. O que ele tem agora? – Foi em direção a cozinha, desceu os degraus procurando avistar o gato em algum lugar, mas o bichano parecia ter se escondido. Abriu a geladeira, pegou um copo de água fria e viu a caixinha onde guardava os remédios. Foi em direção a eles.

“Os horários. Eu preciso seguir os horários.”

Pegou dois deles e levou em direção a boca. Fechou os olhos por puro costume para engoli-los e então a imagem do filho lhe veio a mente. Sentiu-se mal. As mãos se abriram e os comprimidos escorregaram por entre os dedos caindo ao chão. Abriu os olhos e cambaleou, o copo caiu em perseguição aos remédios, e num estalido agudo se partiu em pedaços.

- Eu preciso amamentá-lo. Arthur? Filho, onde você está? A cabeça latejava. Antonietta continuou a procurar o gato, gritar por ele. Ela chamava pelo filho. Estava tão fraca - Filhooo? – Desmaiou.

- O que você quer aí fora? Quer que eu molhe o jardim? Você quer fazer cocô? Mamãe te leva no banheiro e limpa você, vem aqui, vamos.

- Miau, Miau, Miau... – O gato permanecia sentado frente a porta, quase pedindo para sair.

- Tudo bem, vou abrir pra você, meu bem. Quer me ajudar no jardim? Quer? – E o gato permaneceu calado, enquanto os pequenos olhos miravam a maçaneta. Assim que Antonietta abriu a porta o gato correu, passou por debaixo da cadeira de balanço e seguiu em direção as plantas. Ela o seguiu. Pararam em frente a uma roseira branca, da cor de Bartô. O gatinho ficou sobre duas patas e mordeu uma da flores arrancando duas de suas pétalas.

- Não faça isso, figlio – O gato passou a perseguir uma formiga, que saiu de dentro de um buraco. Antonietta se divertia com a cena, ela estava feliz de ver o filho brincando. Começou a arrancar as ervas daninhas, afofar a terra, a cuidar do jardim. A formiga entrou para dentro do formigueiro, e aquilo deixou o gato frustado. Ele olhava embasbacado para a fresta na terra, esperando que ela ressurgisse.

- Oh, ficou sem o brinquedo foi? Cave. Encontre ela, amore mio – Bartô olhou para a “mãe” e como todo gato, parecia que ele sorria para ela. Abaixou-se e cavou. Ela pegou a enxadinha e começou a ajudá-lo. “Cave filho, cave!” A terra era tirada pelas patas, o gato jogava a terra que tirava por baixo de si, as patas da frente trabalhavam num bom ritmo ao passo que as traseiras serviam-lhe de apoio. Já a italiana, cravava a enxadinha com vontade e a cada enxadada percebia que não havia formigas. “Onde elas estão?” O gato olhou para ela novamente e dessa vez sorria de verdade, era um sorriso maldoso. Antonietta viu a o macacãozinho aparecendo, era a ponta dele. O mesmo que Arthur usava naquele dia. Aquele mesmo cheiro azedo de carne podre de seus sonhos – Não. Não Arthur, não – E então o filho se levantou de sua sepultura, com a mamadeira na boca. Vermes saiam por vários orifícios; orelhas, nariz, boca, e partes decompostas do corpo. A carne putrefata se desfazia. E ele se engasgava com o que saia da mamadeira, era algo pútrido, larvas entrando forçosamente. O bebe em decomposição levou as pequeninas mãos, já sem partes dos dedos, a garganta e...

- Miau... Miauuu! – O gato miou.

- No! No! Nãoooo!!! – Despertou mais uma vez. O sangue brotava de seus seios. Lambendo a ferida estava Bartolomeu, contemplando-a caída ao chão. Estava se sentindo tão anêmica. Você quer mais? – Perguntou para o gato com a voz sussurrante – Mame... Mame mais um pouquinho. Não me importo. Non più... As vistas dela estavam embaçadas.

O gato mamou até adormecer.

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- Querida? Amore mio?

- Miauuu...

- Bartô, venha cá gattino! Onde está ela? - Disse, acariciando a cabeça do animal.

Fillipo encontrou Antonietta sentada na cadeira de balanço, próxima ao jardim.

- Querida, precisamos convers... Querida?

Ela estava apenas com a parte de baixo da lingerie. A cabeça pendia para frente, e os braços apoiados nas pernas seguravam algo. O marido deu a volta em torno da mulher, vagarosamente, a cadeira ainda balançante, indo e voltando. E no colo, em frente a roseira arrancada e murcha, Arthur, ou o que sobrara dele, com a boca encaixada no seio da mãe. Os vermes dançavam satisfeitos.

Pregado na mamadeira com fita adesiva um papel circundava o objeto vazio e sujo de terra. Apenas uma frase havia sido escrita nele, mas ela dizia tudo.

"È tutta colpa mia"

Das mãos do marido um envelope caiu ao chão. Bartolomeu encarou a palavra em destaque.

“PAGET”.

Como se pudesse lê-la, o gato pareceu sorrir.

Fim.

Temas: Pessoas Desaparecidas e Animais Possuídos

Sidney Muniz
Enviado por Sidney Muniz em 15/07/2015
Reeditado em 28/07/2015
Código do texto: T5311406
Classificação de conteúdo: seguro
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