[7° Desafio Contadores de Histórias] - 18° Conto - "Aninha e segredo do igarapé"
 
ANINHA E O SEGREDO DO IGARAPÉ
(baseado em fatos reais)

para Ana Carol Machado

I
Era ainda o atordoamento do sono que lhe enevoava as idéias...
Érico Veríssimo

Aninha acordou tarde no domingo, ainda cansada e com as pernas pesadas. Aí resolveu dormir mais um pouco, virou para o outro lado e fechou os olhos. Coçou a perna e sentiu uma textura diferente, levantou o lençol e olhou. Parecia normal como tudo na penumbra, então fechou os olhos e escorregou para mais um soninho. Acordou uma hora depois, se espreguiçou sentindo uma dorzinha de cabeça de quem dormiu demais e as pernas ainda estavam pesadas.

A cortina coava a luz do dia e os contornos das suas coisinhas em cima da cômoda pareciam pessoinhas conversando. Pegou o copo no criado mudo e bebeu um gole d’água, para tirar o gosto de cabo de guarda chuva da boca, pegou o chocolate guardado debaixo do travesseiro, um pouco derretido, e comeu um pedaço. Gostoso como sempre.

Começou a sentir um pouco de calor nas pernas e jogou o lençol para o lado. Pareciam mais compridas, as canelas mais finas e os pés pontudos. Continuou comendo o chocolate e o calor nas pernas incomodava um pouco. Molhou a ponta do lençol no copo d’água e passou na coxa. Sentiu ondulações estranhas, molhou outra vez e passou na outra. Aninha não ligou tanto assim para aquela estranheza e, sem querer, começou a lembrar do dia anterior.
 
II
Alma do tempo é a mudança
que come o que vai mudando
e depois dorme sonhando
disfarçado de memória.
Thiago de Mello

O dia amanheceu lindo e a família resolveu passar o dia no igarapé. Aninha, a mãe e a irmã prepararam bastantes lanches para ficarem o dia todo por lá e, enquanto isso, o pai carregava o carro com o resto do equipamento. A água no igarapé estava ótima, o céu de outono azulzinho e Aninha, o pai, a mãe e sua irmã se divertiam bastante. Devia ser por volta de maio dia quando a mãe e a irmã foram arrumar as coisas para o almoço e ela e o pai ficaram na água para aproveitar mais um pouco.

Aninha quis sentir a água até o pescoço e foi mais para o fundo. Mas não queria se lembrar daquilo no momento e para espantar a lembrança, espreguiçou-se outra vez. Era hora de se levantar, com certo pesar porque a cama estava tão boa! O cérebro deu o comando para a perna direita sair da cama e depois daria para a esquerda, mas as duas saíram juntas e Aninha ficou sentada. Tocou o chão com os pezinhos descalços e tentou se levantar, mas caiu e quase foi parar debaixo da cama. Riu até a barriga doer daquele tombo besta e quando conseguiu parar de rir de si mesma, ainda com o bumbum doendo, tentou pensar porque caiu. Concluiu que seus pés não se apoiaram direito no chão e escorregaram. Ainda rindo tentou se levantar, mas não conseguia dobrar as pernas. Tentou de novo, dessa vez apoiando os cotovelos na cama e as pernas não dobraram. Tentou outra vez e conseguiu se sentar na cama, mas as pernas continuavam como uma só.

As lembranças do dia anterior, lá no igarapé, voltaram. Quando a água já estava pelo pescoço, enquanto sentia aquela sensação gostosa do líquido fazendo pressão na barriga, fazendo os braços quase boiarem, aquele barulhinho insistente de água se movendo perto dos ouvidos, dava até uma dificuldadezinha para respirar...

Que susto!

Seus pés escorregaram e ela afundou. Engoliu água, se debateu, tentou apoiar os pés no fundo, tentou subir, mas parecia que alguma coisa a segurava pelas pernas e a puxava para baixo. Uma força que não parecia bruta. Talvez nem fosse puxada para baixo, não sabia explicar direito o que se passou. Só se lembrava de ter engolido água e se desesperar. As lembranças estavam um pouco turvas, quase esverdeadas como as águas do igarapé.

Ainda sentia as pernas pesadas e começou a massageá-las, que talvez fosse má circulação. Achou que a textura da pele estava diferente, mas na penumbra parecia que estava tudo bem, como sempre acontece com as coisas na penumbra. Aí resolveu acender o abajur para olhar melhor.
 
III
 
Devia ser mentira. As coisas quando nos acontecem assim, inesperadamente, chegam sempre com cara de mentira.
Raquel de Queiroz


Gritou aterrorizada! Gritou de novo na esperança que sua mãe aparecesse, e só ela, porque só uma mãe saberia o que fazer nessa hora. Mas não era grito que saía de sua boca; parecia mais um silvo, uma nota aguda de violino desafinado, três oitavas acima. Teve ímpeto de sair correndo de perto de si mesma! Aninha não se reconhecia! Aquelas não eram suas pernas, aquilo não eram seus pés e aquele silvo não era seu grito!

Gritou outra vez e a mãe que não aparecia! E se aparecesse? Correria amedrontada? Daria bronca? Seja lá o que fizesse só ela poderia ajudar a Aninha.

Deu um beliscão em si mesma pensando que acordaria, que tudo voltaria ao normal e soltou um silvo de dor. Tentou gritar mais alto para ver se a mãe aparecia, mas não apareceu. Sentada na cama, olhava, incrédula, para as pernas que não eram pernas, mexendo os pezinhos que não eram pezinhos. Pegou o copo no criado mudo, derramou o resto da água nas pernas, que estavam com muito calor, e jogou o copo no chão. Apontou os ouvidos para a porta e logo ouviu os passos da mãe.
 
IV

Sentiu uma coisa passar-lhe pela vista como uma mancha, uma nuvem cheia de pontos luminosos.
Marques Rebelo

— Aninha! — abriu a porta com estrondo — O que tá acontecen... — a mãe arregalou os olhos, de boca aberta e foi andando para trás, com as duas mãos no peito, até encostar-se na cômoda.

Aninha começou a falar aflita e gesticular rápido, mas a mãe não entendia nada daquela voz entre flauta e violino desafinados e sentia as pernas ficando moles. Uma dormência nas ideias, pontinhos prateados explodindo diante dos seus olhos, ficou tudo leitoso, depois escuro de vez. Não poderia acontecer nada pior: a mãe foi escorrendo mole, derrubando suas coisinhas de cima da cômoda, até cair sentada no chão de olhos fechados. Aninha gritou pedindo socorro e, sorte sua, ninguém apareceu.

A mãe desmaiada no chão e Aninha na cama com as pernas que não eram pernas e não andavam. Se não podia se levantar da cama, tentou escorregar e deu certo. Chegou até a mãe e deu tapinhas leves no seu rosto chamando-a, mas a mãe não respondia e Aninha ficava mais aflita. E se fosse um ataque do coração? A culpa seria sua!

E naquela apavoração toda ela sacudiu forte a mãe que voltou a si devagarzinho. Aninha ficou tão aliviada que deu-lhe um abraço forte e cobriu seu rosto de beijos, esquecendo do seu próprio problema. Aos poucos a mãe retornava da breve viagem ao mundo do sem controle e, ainda zonza, pegou o rosto da filha com as duas mãos:

— Aninha? É você, filhinha?
 
V

A quem não o sente, não é possível fazê-lo compreender.
Franz Kafka

Aninha não sabia o que fazer e a mãe também parecia não saber, e é nesse espaço que surge o desespero. A mãe repetia, sem parar, que tudo daria certo, que ela ficasse calminha, mas sabia que não era bem assim que funcionava.

A mãe reuniu a reserva de forças, se recompôs, pegou Aninha no colo e colocou-a na cama. Ficou olhando a filha por um bom tempo, tentando imaginar como aquilo pôde acontecer. Sentou-se na beira da cama, fez carinho no rosto da filha, recolhendo as lágrimas com os dedos trêmulos. Hesitou várias vezes, mas encostou a mão na perna da filha e sentiu a textura. Aninha parecia que estava em outro mundo. A lembrança do que aconteceu no igarapé estava menos turva. Quando afundou, acabou se desesperando por causa do susto.
 
VI

Todos nós no fundo ansiamos por coisas impossíveis. Mas serão realmente impossíveis?
J. M. Simmel

Foi o pai que a puxou para cima, sem demorar nem dez segundos. Aninha não sabia explicar, mas lá debaixo d’água pareceu bem mais! Talvez um minuto, talvez um pouco mais!

Lembrou-se de ter afundado, sem controle, como se estivesse de ponta cabeça. Lembrou-se de ter encostado a mão no fundo fofo do igarapé e levantado uma nuvem de poeira líquida, deixando a água turva. Tentou dar um impulso para cima, mas a sensação foi de dar uma cambalhota, de dar várias cambalhotas. Talvez alguma correnteza debaixo d’agua a fizesse girar daquele jeito.

Ela teve a quase certeza de ter tocado o fundo com os pés e dado um forte impulso para cima. Teve a quase certeza, também, de que mãos a seguravam, não só pelos pés. Pareciam muitas mãos e por mais que ela fizesse força, não conseguia subir. Lembrou-se de tentar tirar aquelas mãos ocultas de si e várias outras a pegaram pelas mãos e braços. E o que mais a deixava intrigada é que essas mãos não pareciam fazer força para segurá-la.

Aninha teve, também, quase certeza de outra coisa, mas recusa-se a acreditar. Recusava-se com pouca convicção, por causa de sua mente aberta para coisas estranhas. Mas preferia recusar-se, já que aconteceu com ela. Afinal as coisas diferentes parecem menos diferentes quando acontecem com os outros; chegam ao nosso perceber com ares de que poderia acontecer com qualquer um. E entre esses qualquer um, nem nos passa pela cabeça que podemos estar entre eles. Já se for coisa boa, aí a gente se inclui rapidinho!
 
VII

E ela sente que de agora em diante a vida não poderá ser a mesma.
Érico Veríssimo

Aninha foi jogada para fora da lembrança com brutalidade! Como seria sua vida? Passado o desespero da mãe, o que ela pensaria sobre isso? E seu pai que não a deixou se afogar, puxando-a para cima, pelo braço? E sua irmã, tadinha, o que pensaria daquilo? As amigas, os amigos, a escola? Como escreveria seus contos para o DTRL e para o Desafio Contadores de Histórias depois disso?

Quais suas possibilidades de ser o que queria ser quando crescesse? Era quase como ter a vida roubada sem saber como e por quem! Será que, pelo menos, as pessoas que a amam se adaptariam à nova Aninha? Era tão mais fácil quando a nova Aninha era só aquela que mudava de penteado ou que tomava uma importante decisão!

Tomar uma importante decisão...
 
VIII

Felizmente caí em mim, como poderia cair em outro lugar.
Afonso Schmidt

Aninha começava a vislumbrar algumas boas coisas:

Primeiro, viajaria o mundo... Não, não! Primeiro precisava encontrar aquelas moças que a seguravam debaixo d’água. Se não perdeu as contas, deviam ser sete. Como eram lindas! Nem pareciam desse mundo! A lembrança tornou-se nítida, como se acontecesse tudo naquele momento! Parecia irreal demais para acreditar naquilo, mas vislumbrando as maravilhosas possibilidades, ficou tudo nítido demais para ser apenas imaginação.

Primeiro precisaria encontra-las, depois viajaria o mundo com elas, depois voltaria e contaria para seus pais tudo sobre a viagem e para sua irmã contaria tudo e mais alguma coisa.

Depois escreveria vários contos para os desafios, vários relatos de viagem, vários...

Aninha percebeu o absurdo do que pensava naquele momento de alerta vermelho!

Mas ela se lembrava dos rostos de todas aquelas moças que a seguravam debaixo d’água! Elas eram reais! Elas eram... Elas tinham... Eram como ela!

E outra lembrança a apavorou: enquanto se debatia, sem ar e engolindo água, Aninha desejou, com todas as suas forças, ser um peixe e não se afogar! Lembrou-se disso sentindo um revirar no estômago, uma sensação de que alguma coisa preciosa a abandonava sem uma chance real de ser reposta no lugar.

Olhou para mãe que chorava aquele choro comprido de quem sente culpa, culpa irreversível! Balbuciava e gaguejava que quando a Aninha estava se afogando era meio-dia em ponto, e ela lembrava-se de ter olhado no relógio! Nessa hora a mãe desejou que Aninha fosse como um peixe e que não se afogasse!

Era o horário que os anjos, lá no céu, dizem amém a tudo que se deseja aqui na terra!
 
IX

Era ainda o atordoamento do sono que lhe enevoava as idéias...
Érico Veríssimo

Aninha acordou tarde no domingo, ainda cansada e com as pernas pesadas. Aí resolveu dormir mais um pouco, virou para o outro lado e fechou os olhos. Coçou a perna e sentiu uma textura diferente, levantou o lençol e olhou. Parecia normal como tudo na penumbra, então fechou os olhos e escorregou para mais um soninho. Acordou uma hora depois, se espreguiçou sentindo uma dorzinha de cabeça de quem dormiu demais e as pernas ainda estavam pesadas.

A cortina coava a luz do dia e os contornos das suas coisinhas em cima da cômoda pareciam pessoinhas conversando. Pegou o copo no criado mudo e bebeu um gole d’água, para tirar o gosto de cabo de guarda chuva da boca, pegou o chocolate guardado debaixo do travesseiro, um pouco derretido, e comeu um pedaço. Gostoso como sempre.

Começou a sentir um pouco de calor nas pernas e jogou o lençol para o lado. Pareciam mais compridas, as canelas mais finas e os pés pontudos. Continuou comendo o chocolate e o calor nas pernas incomodava um pouco. Molhou a ponta do lençol no copo d’água e passou na coxa. Sentiu ondulações estranhas, molhou outra vez e passou na outra. Aninha não ligou tanto assim para aquela estranheza e, sem querer, lembrou que precisava se levantar logo e escrever seu conto para o Desafio Contadores de Histórias.
 
... mais que o rumo, o que importa
é o jeito de caminhar.
Thiago de Mello
 
Carlos H F Gomes
Enviado por Carlos H F Gomes em 10/07/2015
Reeditado em 18/07/2015
Código do texto: T5306740
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