O Teatro do Fundo do Pântano - DTRL23 - #Luto#

Pouco fôlego lhe sobrara, mas ainda precisava correr, embrenhava-se pelas árvores e matos do pântano buscando uma única coisa: a solidão.

As pirâmides de concreto, todo aquele cinza, a vastidão de automóveis barulhentos, pessoas perdidas e estressadas transitando por todos os lados... Tudo isso a incomodava, porém o pior de tudo era aquele som infernal que rasgava o ar. Ela sentia que iria gritar até perder toda a sua voz. Não podia continuar ali...

E não continuou, fugiu, ou melhor, foi expulsa daquele local ensandecido. Agora estava perdida, sem direção alguma. Sua pele molhada de suor era alimento para mosquitos desconhecidos, era tudo uma grande loucura. Como veio parar ali?

Mas ela não estava arrependida, continuou a andar. Qualquer lugar era melhor que o inferno de onde ela veio. Mesmo agora no meio de tanto verde, pisando em solo arenoso, ainda sentia uma paz nunca antes vivenciada...

Precisava descansar, seu peito doía intensamente, seu pulmão a traíra e sentia em sua boca seca que podia cuspi-lo para fora. Temendo uma provável rebelião de seus órgãos resolveu atender as primeiras queixas. Lançou-se contra uma árvore sentando em terra úmida. A sede era tanta que lutava para não lamber aquele chão, entretanto, ao menos aquele era o sinal de que havia algo próximo para molhar sua sedenta garganta.

Ruídos e gritos de animais arruinavam o silêncio. Em meio aquele ar gélido e um feio crepúsculo de início das trevas sentia-se como uma criatura fraca e acuada. Tentou encolher-se para proteger-se das feras, mas o esforço seria inútil... Era ela das mais fracas presas daquele local.

A garganta gritava por água. Ela foi se arrastando pelas folhas, lamas, raízes e pedras. Qualquer um que passasse por aquele local não a reconheceria pelo tal estado de adaptação ao chão.

Seu peito e seu corpo começavam a ser arranhados pelo atrito com o solo. Os calombos das picadas de mosquitos e formigas davam a ela um aspecto desagradável, no entanto, apenas a vontade de saciar sua sede a guiava.

Encontrou um pequeno lago da altura de suas canelas, bebeu desesperadamente aquele líquido até sentir o seu estômago pesado, aos poucos pode levantar-se e caminhar por aquela relva submersa e aos tropeços ia superando a extensa poça d'água.

Chegou à margem do lago e pisou com sua bota em algo gosmento, olhou a trava do calçado para ver o que era: aquilo parecia um organismo vivo... não fezes de animal ou restos mortais de um bicho qualquer, parecia algum tipo de ser mutante que rasgava o seu pisante, desesperou-se e se livrou imediatamente de suas botas expondo seu pé nu e inflamado ao terreno úmido. Era boa a sensação de contato com o solo, porém estava perdida, sem casa, sem direção, com fome, com frio e com sono. Aos poucos descobria novas paisagens e nelas irrompia. Chegou a um local escuro e não notou a placa em cima de uma das grandes árvores que dizia: "O limite da civilização, o inicio do oculto aqui é o lugar onde o sol não vence o sombrio."

Estava atordoada, triste e desprotegida. Já se arrependia do ato impensado, e pensou voltar, porém era escuro demais e pensar na cidade com toda a sua bagunça depreciativa, seus sons e visões hediondas eram vetores para que sua caminhada continuasse.

Estava nauseada e tonta, sua angústia era tamanha que chorou soluçante, balbuciando por ajuda que nunca chegaria, correu sem rumo. A partir disso de nada lembrou...

Acordou dolorida em um chão de pedra, uma pequena poça entre sua face e seu peito, assustou-se com a imagem que a encarava, tentou combatê-la, mas em vão, resolveu ir para o outro lado e buscar algo para comer, sua barriga parecia um imenso vale vazio e latejava com insistência. A última vez que comeu estava em uma lanchonete, uma pausa de seu serviço, a medicina nunca foi sua preferência, mas para agradar seus pais formou-se nesta profissão, frustrada, sentia-se um ser normal, insuportável, uma verdadeira inútil em sua profissão.

Ao comer uma caça crua lembrou-se dos motivos para seu surto: uma ligação, uma música e uma mesma cidade. O namorado a ligara com as mesmas desculpas de sempre, o romantismo de início de namoro já acabara, agora apenas aturava a companhia de tal pessoa, aliás, aturar era o que mais ela fazia. Mas dessa vez não suportou. Desligou o telefone. Jogou o salgado de lado e suspirou... O cheiro, os sons da cidade a incomodava, aquela música que nada a ajudava naquele momento com aqueles débeis versos: “vou te pegar daquele jeito" a enojava: “O que era aquilo? Cultura popular? Mas de que popular tinha aquilo? Apenas era um vangloriar de bens e supostas conquistas amorosas. Realidades distantes da imensa maioria do povo... Aquilo realmente não era popular, era mais uma forma de alienação em massa do estado dito democrático...” Sucessões de imagens rondaram pela sua mente. Sentiu vontade de vomitar e não conseguiu apenas levantou-se e deixou que seus pés a levassem. Saiu sem pagar a conta não ouvindo os protestos do dono da lanchonete. Tinha apenas o propósito de fugir...

Agora estava sozinha, como queria, comendo carne crua, de um animal qualquer e apenas a escuridão a amparava. No entanto, outros seres desconhecidos a observavam...

Um gongo ecoou. Um grito humano acompanhava seu som: tormentas, choros e risos e de repente o local sombrio tornou-se povoado por vozes perdidas. Ela não acreditava muito em Deus, mas forçou algumas orações que aprendeu na catequese durante a infância.

Porém, sentia-os, cada vez mais próximos, os gritos e os espíritos que gelavam o seu ser. Correu em pânico... Viu um homem a persegui-la com um machado, apenas pode gritar por ajuda e correr, mas estava sozinha, a noite não dormia e ninguém a iria ajudar.

O homem sem feições babava sangue. A capa preta escondia seu corpo marcado e o véu o seu rosto desfigurado. Era chamado ausente, sem sentimentos ou vida, apenas o desejo de morte.

Era impossível fugir, as raízes das árvores também a perseguiam, o ausente as controlava, elas agarraram seus pés e ela não pode mais se libertar. Era chegada à hora de sua morte, resultado de uma impulsividade adolescente, apenas caiu, ainda tentou livrar-se do domínio, mas em vão, o ausente chegara, os pingos de sangue caíram sobre o seu corpo. Ele sentou-se sobre a sua virilha, o corpo dela estava trêmulo e frio, sentiu em seu rosto a respiração forte e o bafo de morte do ausente. Ao seu grito e ao levantar do machado já sabia que era o seu fim...

Fechou os olhos e gritou como nunca, o gongo continuava, só que agora com vozes audíveis que cantavam em coro:

"Nós somos os artistas do pântano

Os desamparados pelo sucesso

Os amantes incorruptíveis

Cantamos tristes e alegres a canção do fim do universo."

Após escutar tais frases, percebeu não sentir a dor do machado em seu crânio, não sentia mais a pressão em seu corpo, nem a respiração forte, ainda estava viva... Seu corpo suado e franzino estava intacto no mesmo barro enlamaçado. Nem mesmo a raiz que lhe prendia os pés se manteve. Cantou junto com o coro, mas ele se silenciou. Alguém gritou de longe: "Ei você que no chão sucumbe, levante-se e junte-se aos artistas." Ela tentou procurar a face, procurou até encontrar, um brilho desconhecido a iluminava por suas vestes cinza e uma paz sentia ao olhá-la.

Levantou-se e seguiu a luz das artes desconhecidas... A arte que somente aqueles que possuem vendas não são capazes enxergar.

Tema: Pessoas Desaparecidas.

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Josué Viana
Enviado por Josué Viana em 10/07/2015
Reeditado em 29/08/2015
Código do texto: T5306419
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