Do gato e do cadáver mal ocultado — DTRL23 #LUTO#
Tudo começou quando acordei e fui tomar banho. A princípio, não havia notado qualquer diferença na água; entretanto, quando cheguei no trabalho, percebi que a minha presença estava deixando o ar meio pungente.
Os mais discretos apenas afastavam-se, olhando-me de soslaio; os mais próximos, porém, não perdoaram esse mau cheiro que eu exalava, e desciam as críticas diretamente:
“Tomou banho hoje não, André?”
“Êh, André... Olha bem essas mulher que você pega na rua, hein?!”
Eu mesmo não sentia cheiro algum, mas acho que é difícil sentirmos o nosso próprio odor. Deu a hora de saída e eu fui embora, resoluto em descobrir o porquê daquela fetidez estranha.
Cheguei em casa com vontade de tomar café, abri a garrafa térmica e senti um cheiro terrível.
Quando havia feito o café pela manhã, e tomado, eu não percebi nada de incomum, nenhum odor estranho. Mas acho que foi o sono que me fez não perceber isso.
Cheirei o pó de café e ele estava normal, só podia ser a água.
Era a água, porque quando entrei sob o chuveiro, agora livre do sono que eu me encontrava de manhã, por isso mais atento aos detalhes, senti aquele mesmo fedor de podre que vinha do café, e que era o mesmo que eu exalava. Fechei o chuveiro e nem tomei banho, o que era até melhor para a minha higiene.
*
Ela estava na cama. Não era dia nem noite, era o negrume do quarto. Mirava o teto e pensava no que fizera. Era o travesseiro e o ar impedido. Era um volume maciço que ela empurrava, empurrava... Pingava o suor de sua testa e ela se satisfazia a cada pequeno movimento que conquistava. Era agora um bicho irritante ao pé da cama, um gato miando na porta, que a fazia rememorar tudo aquilo de novo. Miava o gato e o volume rolava de volta, derrubando-a.
*
Acordei era meia noite com uma vontade tremenda de vomitar. Aquela maldita água! Que diabos havia com ela?
Quando amanheceu não fiz café nem tomei banho, joguei desodorante por todo o corpo e fui trabalhar.
— E o cara que tinha sumido, o seu vizinho, já acharam ele? — perguntou um colega meu, oferecendo-me um café.
— Não, cara, a mulher dele nem tá saindo mais de casa. Nego fala que ela tá na cama já tem dois dias.
— É complicado, André... Como é que o cara foi sumir assim?
Minha vizinha sempre foi meio maluca. Até o sumiço do marido ela dava aulas de História numa faculdade aí. O homem havia desaparecido há dois dias, e ela ficou enfiada no quarto desde então.
Parece que quem se deu conta primeiro do desaparecimento foi a mãe do cara, porque a mulher ficou trancada em casa, e quando a polícia veio interrogá-la, ela, pelo que me contaram, não respondeu nada de útil, rompeu num choro estridente e voltou para o quarto.
O negócio é que o casal havia tido uma briga feia na noite anterior ao sumiço, portanto há três dias; na tarde seguinte ele já era considerado um desaparecido pela mãe. Moro num apartamento ao lado do que eles moravam, e pude ouvir a briga.
Ouvi gritos, vidros quebrando, insultos... Depois tudo se aquietou e eu não entendi o motivo de todo aquele conflito.
*
O gato raspava a porta com as garras. A mulher estava imóvel na cama, olhos fechados, o corpo duro como concreto; mas ouvia o ruído que o bicho fazia na madeira. Percebeu quando o gato pulou sobre ela, na verdade o viu, mesmo com os olhos cerrados. Era branco, os olhos amarelados: o gato era alvura no breu do cômodo.
Branco era o volume que ela empurrava e empurrava, e cada pequeno movimento ela considerava como um enorme progresso. A mulher gritava e o gato arranhava a sua face. Os olhos fechados e a boca aberta num berro de pavor; o animal enfiou a pata lá dentro e fez um corte profundo em sua língua.
Ela não podia relutar, sentia como se aquele pesado volume estivesse sobre o seu corpo, tolhendo os movimentos dos braços. E o bicho continuava naquilo.
Contudo, abriu os olhos e já não havia gato. A escuridão foi atenuada quando ela acendeu o abajur. Olhou para as mãos, estavam cheias de sangue; sob as longas unhas havia pequenos pedaços de pele, sua face ardia e o sangue pingava na cama. Havia sangue também em sua boca, sentia o gosto da língua cortada.
Ouviu o gato miar na porta e arremessou o abajur naquela direção. Debalde. O bicho continuava miando, e continuaria apesar do que ela fizesse.
Achava que o gato havia sido um sonho, mas estava acordada e ouvia o miado na porta. Correu até lá e não pôde encontra-lo. Virou-se outra vez para a cama e avistou aquele volume em cima, entre os lençóis, inerte.
O miado recomeçou e o fardo que ela tanto carregara sumiu de cima da cama. É claro que sumiu. Ela sabia que, apesar de todo o esforço fizera, havia conseguido escondê-lo; também tinha consciência de que o lugar onde o depositara era muito evidente, e logo saberiam de tudo que fizera. Deitou-se novamente, e o gato voltou na porta. Já não sabia se aquilo era sonho ou não.
*
Estou aterrorizado com o que aconteceu. E pensar que eu escovei os dentes usando aquela água!
A polícia esteve no prédio ontem, ficou lá a tarde toda tentando conversar com a mulher. E não é que aquela maluca sabia onde estava o infeliz?
Enquanto o marido dormia, depois da briga que eles tiveram, ela o matou asfixiado. Depois, e isso está me dando ânsia de vômito até agora, ela arrastou o cadáver escada acima e, para esconder o corpo, jogou o marido na minha caixa d’água. Quem se livra de um corpo desse jeito?
Levaram a louca para um hospício, depois ela deve ir para a cadeia. Sei lá.
O pior é que agora eu estou no hospital, com uma dor de barriga dos infernos.
Tema: "Pessoas desaparecidas" e "Animais possuídos"
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Olá, amigos, é bom estar de volta. Tenho lido os contos de vocês e estou achando muito bom. O Desafio está num nível altíssimo.
Acima está a minha contribuição para este DTRL, espero que tenham gostado. Valeu :)