O PRÍNCIPE
Andei pelas suas ruas na noite passada. Observei com viva curiosidade e entusiasmo suas vidas fervilhantes no seu formigueiro de peles multicoloridas. Traguei seus cheiros, os aromas de seus intensos suores, tão abundantes no calor da noite tropical. Eu, entretanto, afeito ao frio intenso de minha terra, não suei. Há muito tempo que não posso suar. Tenho apenas a lembrança distante e especial do suor que deixei misturado ao meu próprio sangue nos campos de batalha. Mas isso também foi há muito tempo. O barco do tempo e as correntes marítimas me trouxeram a esta nova terra. Calorosa. Vibrante. Viva. Pulsante... Ouvi seus corações. Eu os ouço o tempo todo. Eu os vejo. Eu os percebo. E alguns me percebem também. Sinto o descompasso de seus corações e a dilatação de suas pupilas ao passar por mim. Estes têm almas que pressentem o Mal. São viajantes que, até mesmo sem saber, atravessam as fronteiras entre os vivos e os mortos...
A carruagem chegou pontualmente, e interrompeu os pensamentos do príncipe. O imperador mandou buscá-lo no ponto combinado. Pedro estranhou o pedido do visitante, de ser apanhado em plena rua, e não em sua hospedagem, mas atendeu diplomaticamente àquele pedido, que julgou ser decorrente da cultura do príncipe, certamente muito diferenciada da cultura brasileira. O cocheiro não teve dificuldades para identificar o passageiro que tinha ido buscar. A alguma distância, conseguiu distinguir o homem, muito alto, parado, destacando-se entre os transeuntes, e com sua roupa negra com detalhes vivamente dourados, como numa túnica de general. Ao se aproximar, o cocheiro teve a impressão de que os olhos do príncipe, ao se voltarem para ele, brilharam de forma estranha, como se faiscassem. O cocheiro encarou-o firmemente, e o convidou a entrar em nome de Sua Majestade. O príncipe assentiu com um movimento de cabeça e entrou, tentando lembrar-se de onde conhecia aquele cheiro, que lhe causava um misto de raiva e inquietação.
A carruagem seguiu pela rua que serpenteava, próxima ao mar, e dirigiu-se ao centro do Rio de Janeiro. Seu ocupante seguiu intrigado e irritado com o cheiro exalado pelo cocheiro. Chegando ao palácio do Paço Imperial, a carruagem parou. O príncipe desceu e olhou para o cocheiro, fingindo simpatia, e perguntou com sotaque carregado de nativo do leste europeu:
____ Qual é o seu nome, meu amigo?
_____ Farid Aben Sur*, meu senhor!
_____ Tens sangue turco, Farid?
_____ Sim, meu senhor!
O príncipe olhou-o detidamente por um pequeno intervalo de tempo, meneou a cabeça positivamente e afastou-se dizendo:
_____ Somos todos filhos de alguém, não é? Mesmo os mortos são filhos de alguém... Boa sorte, Aben Sur!
O cocheiro respondeu com tranquilidade:
______ Até o demônio tem seus filhos, meu senhor! Adeus!
(*Aben Sur significa “filho da muralha.”)
O príncipe, que já se afastava, fechou o punho direito com força ao ouvir a resposta do cocheiro, mas não se deteve, e prosseguiu em seu caminho rumo ao comitê de recepção que o aguardava. Pensaria no cocheiro depois.
A sala de espera do imperador era imponente. O teto alto era decorado com pinturas de artistas europeus e dele pendia um enorme lustre que iluminava o ambiente. Havia muitas peças douradas na ornamentação da sala e também muitas cortinas de um vermelho vivo. A sala estava cheia. Nobres de todos os cantos do mundo estavam ali para tratar com o imperador do Brasil.
A figura excepcionalmente alta do príncipe entrou na sala, conduzida pelo pequeno comitê de recepção. Por um instante, todos se calaram, enquanto o príncipe atravessava a sala, cumprimentando a todos com um discreto movimento de cabeça. Ao postar-se em um canto da sala, o príncipe atraía olhares de curiosidade e admiração. Os demais ocupantes da sala de espera observavam a longa túnica negra, que possuía símbolos dourados na altura do peito, parecendo um tipo de distinção militar. Também chamava a atenção, o gritante contraste entre o negro da túnica e a extrema brancura de sua pele. Os olhos negros, pequenos e muito vivos, magnetizavam os olhares dos demais ocupantes da sala.
Enquanto esperava o chamado do imperador, o príncipe observava as pessoas na sala. Especialmente as damas. Como era radiante a beleza daquelas mulheres dos trópicos! Suas narinas estavam inundadas pelo embriagante cheiro de seus corpos. Podia mesmo ouvir o correr do sangue em suas veias. Parecia um gato em meio a uma festa de ratos...
Um homem velho, porém robusto, trajando uniforme de marechal, sai do salão imperial e se dirige ao príncipe, estendendo o braço para que este o acompanhe. De sua posição, o príncipe já pode ver Pedro II de pé, a sua espera, e gentilmente acompanha o marechal, que o conduz ao interior do salão. Ao entrar no salão, todos os olhares se voltam irresistivelmente para ele. O príncipe sorri discretamente, mostrando dentes muito brancos e pontiagudos.
O marechal o anuncia:
______ Sua Alteza, o Príncipe Vlad Dracula*, da Valáquia!
(*Dracula significa “filho do demônio")