O cão do escritor - DTRL 23
- Esperava melhores noticias, só isso. – disse por fim Alexandro.
Raul tagarelava do outro lado da linha sobre a dificuldade das editoras naquele momento em adotar novos títulos, que esperassem mais um pouco, só mais um pouquinho, era uma crise momentânea e blábláblá... Bateu o telefone deixando-o muito irritado do outro lado da linha, assim supôs Alexandro e isso lhe arrancou um riso breve, gostava quando podia fazer alguém como Raul sentir como era ser posto para baixo e Raul era especialista nesse assunto.
O agente conseguira lançá-lo brevemente numa maré de boas vendas em seu primeiro romance mas após isso foram somente ligações sobre aguardar mais um pouco e enquanto isso vá preparando algo novo etc. No momento Alexandro vendera alguns pequenos contos para revistas de terror, mas o pagamento estava atrasado e isso o irritava ainda mais por que tinha recusado algumas ofertas de emprego por acreditar piamente que a carreira como escritor estabilizaria-os. Bem, lá estava ele passando tardes e noites no computador. Acumulando volumes de textos.
Carla, com quem era casado há cinco anos, era secretária e administradora financeira de uma pequena Clínica ortodôntica que prometia tornar-se um negócio lucrativo se conseguisse manter-se por mais pelo menos seis meses fora do vermelho. Na pequena cidade de Luzia todo negócio que ultrapassava mais de seis meses em aberto poderia ser chamado negócio de sucesso, dizia-lhe Alexandro, ela fingia estar irritada, logo depois ria e perguntava-lhe sobre suas grandes criações. As vezes sentia-se profundamente magoado com essa pergunta e seria assim até a maré de azar recuar, mas não a deixava notar isso, também ria e a conversa sempre tomava outros rumos.
O celular tocou arrancando-o do devaneio, era Raul novamente e ele apenas abaixou o volume (sinta-se ignorado agora, Hermano!) Pensou e voltou-se ao notebook e os esboços espalhados na mesa.
Lá fora, Victor começou a latir repentinamente como vinha fazendo há pelos menos duas semanas. Já conseguia ver a cena em sua mente, o pastor alemão de torso negro ladrando de maneira tão estridente e furiosa que uma pequena espuma acumulava nos cantos da boca, as orelhas voltadas para trás e a corrente presa a coleira tão esticada que ameaçava estrangulá-lo. Os olhos brilhavam como para acentuar a fúria canina.
O que havia com ele?
Suspirou relembrando como tudo aquilo começou: Dias antes, durante o banho semanal no qual Victor ficava fora da corrente, pois era calmo nesses momentos, um cão de rua (assim supôs Alexandro quando o viu invadir o quintal, provavelmente por alguma brecha no cercado) de pequeno porte surgiu da extremidade direita da casa mancando muito de uma das pernas, havia sangue no focinho e na região do pescoço além de estar com uma das orelhas arrancada pela metade. Victor agiu instintivamente saltando para fora da banheira, Alexandro apenas pôde assistir a tudo aquilo com a mangueira pendurada ensopando-lhe os pés. Victor parou um instante muito próximo do cão de rua. Pequenas porções de espuma escapavam-lhe do corpo e ficava flutuando pelo ar. Rosnavam mutuamente e ali permaneceram por alguns segundos. Alexandro prendeu o ar nos pulmões, pareceu pressentir que... Tudo aconteceu muito rápido: O pastor alemão avançou contra o pescoço do outro, ouviu sons dos gritos do cão menor enquanto este se debatia e por fim algo como tecido sendo rasgado que lhe revirou o estômago; um segundo depois o outro animal apenas retorcia-se caído no chão, a boca muito aberta num último latido mudo. O sangue espalhou-se na grama e Victor voltou calmamente a banheira, havia sangue em seus dentes pontiagudos e no focinho.
Finalizou o banho ainda sentindo-se enjoado e em seguida arrastou a mangueira pela grama apagando os vestígios de sangue como alguém que elimina provas de um crime - nenhum vizinho xereta apareceu em momento algum e Carla estava fora também (muito obrigado mesmo, oh destino!) Evitou olhar o cão morto até ser necessário pô-lo num grande saco de lixo e levá-lo bem para longe de casa.
No dia seguinte Victor passou a agir com aquela agressividade e imediatamente Alexandro levou-o ao veterinário (apesar do dinheiro tão pouco naqueles dias). Um rápido exame constatou que estava tudo bem com o animal, mas deveria observá-lo nos próximos dias e mantê-lo na coleira sempre, acrescentou o velho entregando-lhe uma folha com anotações sobre os possíveis sinais que deveria notar se o cão manifestasse e explicou-lhe que a agressividade poderia resultado do stress que passara no dia anterior, não mais que isso... Alexandro concordou, realmente fazia sentido. Victor seguia uma rotina de longa calmaria desde que nascera, mal saia de casa. Logo, fazia sentido, 'stress'.
Nos dias que se seguiram o cão nada manifestou além da anormal agressividade. Como acontecia naquele momento...
Os latidos aumentaram significativamente e ele desistiu de tudo que pretendia fazer. Saiu para os fundos onde dias antes um cão qualquer surgira quase que por mágica e... diabos! Pusera Victor naquela situação. Ao fim do mês Carla notaria um pequeno gasto em dinheiro e o que diria a ela? Ah amor, nosso cão passou a agir dessa maneira depois que mordeu um “cão-zumbi” e tive que gastar nossa pouca grana levando-o para o médico que me disse que ele nada tinha além de... Então Victor surgiu pela extremidade esquerda da casa! Avançava em grandes passadas arrastando atrás de si a corrente e a barra de ferro na qual estivera presa. Por Deus, estava tão bem enterrada e ele a arrancara?! O olhar frio e indiferente encontrou o seu e ele percebeu tardiamente que havia algo errado. Antes que pudesse agir de quaisquer maneiras como fugir pela porta da cozinha ou avançar até os fundos ou pela lateral e saltar por um dos quintais vizinhos ou mesmo quem sabe somente esperá-lo ali e vê-lo balançar amigavelmente a cauda, por que era seu cão... nada fez, estava paralisado e o cão abocanhou sua mão direita como faria com um pedaço de filé. Sentiu os dentes enterrando-se na carne e afundando por entre os ossos então gritou e tentou recuar. O cão ainda manteve-se ali por um ou dois segundos depois largou-o fugindo pelo outro lado, arrastando furiosamente atrás de si corrente e a barra.
A mão fora perfurada pelo que parecia uma dezena de pregos e o sangue escorria pelo antebraço, pingando grandes gotas negras no piso de cerâmica azulada. Continuava gritando segurando o pulso. Virou-se pretendendo buscar ajuda, precisava estancar aquele sangue, ligar para Carla, para o veterinário e precisava... Algo lhe bloqueou os pensamentos e quaisquer ações como um torniquete mental e ele estacou. Havia algo nele, podia sentir deslizando por dentro da carne do pulso e se encaminhando pelo braço inteiro, era como um verme abrindo caminho por entre os músculos. O torniquete afrouxou espaço suficiente para ouvir alguém falar em seu ouvido num sussurro:
- precisaaa dar continuadaaadeeeee... Quantooos mais de você háááá...?
- muitos – respondeu, desesperadamente, era impossível não responder aquela voz, começou a ouvir ao longe um som de telefone a chamar, mas nada era importante, só responder aquela coisa – milhões... milhões como eu.
- vá em freeeeeente. Há algo para mimmm... fará algo para mimmmm... – a sensação de algo a adentrar pelo braço prolongou-se até o ombro, pelo pescoço e por fim alcançou-lhe a lateral da cabeça numa dor lancinante. Então tudo se apagou.
Lá dentro, o celular tocava insistentemente.
Categoria: Animais Possuídos