MEA CULPA

"Um homem que não projeta sombra não possui alma..."

(Out of the Shadows - Iron Maiden)

Conta-se que num extinto vilarejo rural, nos arredores de Santiago de Compostela, teve lugar um estranho e singular caso de possessão, cujo trágico desfecho acabou por culminar na dissolução da aldeia.

Por volta do ano de 1657, nesse lugarejo chamado El Paso De Los Mártires, uma jovem de quatorze anos foi acometida por violenta sucessão de crises nervosas com todos os indícios de ação demoníaca, segundo os relatos orais da época. Dada a localização da aldeia, numa das maiores rotas de peregrinação da cristandade e a conseqüente influência pujante da doutrina católica, como soia acontecer na Espanha, os moradores de El Paso acabaram por abandonar a região depois do acontecido, temerosos de que a aldeia houvesse se convertido em verdadeira zona de influência diabólica. Uma espécie de perímetro infernal sobre a Terra.

Inutilmente buscará o leitor referências canônicas para o que ocorreu ali. A Igreja, diante da tragédia que ali tivera lugar, achou por bem silenciar a fim de evitar alardear com isso uma suposta vitória das forças do Abismo sobre os prepostos da Divindade. Ademais, El Paso De Los Mártires distava pouco mais de dez quilômetros de Santiago de Compostela e, se os boatos se espalhassem, era bem possível que muitos peregrinos pensassem duas vezes antes de demandar ao túmulo do apóstolo. De maneira que as autoridades seculares e os representantes do clero acabaram por persuadir os moradores a deixar para sempre o malsinado sítio que, com o tempo, converteu-se numa espécie de cidade fantasma, onde nem mesmo os malfeitores tinham coragem de se aventurar em busca de rapinar os viajantes do Sagrado Caminho. Não obstante, alguns descendentes dos antigos habitantes de El Paso perpetuaram a história através do tempo pela tradição oral, acrescentando grande riqueza de detalhes ao que realmente teria ocorrido ali, naqueles longínquos dias do século XVII...

Felícia Aguirre era a única filha de um casal de lavradores domiciliados em El Paso. Assim como os pais e os demais membros da comunidade, era fiel observadora dos princípios da fé cristã. De compleição esguia, longos cabelos negros e olhos sonhadores, Felícia era uma das mulheres mais belas e cobiçadas da aldeia e mesmo das cercanias. Desde os aldeões até os fidalgos, não havia quem não admirasse a sua beleza e muitos lhe faziam a corte, mas a jovem sempre se esquivava, afirmando que era seu dever cuidar dos pais e que, quando chegasse a hora de lhes cerrar os olhos, terminaria seus dias num convento consagrando-se a Deus.

O cenário pacato e bucólico do vilarejo mudaria dramaticamente com a vinda do novo pároco da aldeia, um mancebo de vinte e cinco anos oriundo de Valladolid e filiado à Companhia de Jesus. Abelardo Lopez y Ruiz era o seu nome civil e indicava ascendência fidalga, mas uma vez tendo tomado os votos perpétuos, escolhera para si o epíteto de Frei Estéban De La Santissima Pasión. De estatura alta, olhos negros e sombrios, o jovem sacerdote era uma exceção na paróquia da vila, costumeiramente presidida por clérigos mais idosos provindos das cercanias. Bastante reservado, Frei Estéban falava muito pouco de seu passado, limitando-se a dizer que deixara Valladolid depois de sepultar a genitora e agora desejava atuar na qualidade de vigário. Solicitara de seus superiores a transferência para alguma aldeia distante, pois sentia a necessidade de estar em contato com a simplicidade da vida no campo. Em resposta ao seu pedido haviam-no enviado para ali, nas proximidades do túmulo do apóstolo que liderara a cristandade ibérica contra a opressão sarracena.

Em pouco tempo o jesuíta se integrara completamente à comunidade, onde, aliás, fora muito bem recebido. A despeito da sua personalidade sempre discreta, Frei Estéban era bastante comunicativo e versava com grande propriedade sobre os textos sagrados. Dotado de uma oratória vibrante e apaixonada, os sermões e as missas por ele ministradas arrebatavam aquela gente simples a uma atmosfera de enlevo místico que logo ganhou notoriedade na região. Os ofícios celebrados nas manhãs dos domingos eram assaz concorridos, ao ponto de afluírem fieis de outras aldeias próximas e até de Santiago. Na verdade, mesmo os peregrinos costumavam demorar-se em El Paso para ouvir o seu verbo inspirado, antes de seguir viagem rumo ao destino final.

A atuação do vigário como confessor era outro espetáculo a parte. Era comum ver os aldeões retornarem mais de uma vez na semana para se consultarem com o sacerdote, que sempre acolhia generosamente a todos. Dentre os freqüentadores da capela dos Santos Mártires, uma havia cuja ininterrupta assiduidade já havia se convertido em parte integrante da rotina do jovem clérigo, ao ponto de ele mesmo estranhar quando ela se atrasava ou deixava de vir. Tratava-se de Felícia Aguirre. A presença constante da jovem na paróquia só era interrompida quando alguma enfermidade acometia os seus genitores, o que era igualmente motivo de preocupação para Estéban.

Certa feita, numa manhã chuvosa que anunciava a aproximação do outono, Felícia fora ter à paróquia. Embora estivesse habituado à presença diária da jovem, o jesuíta percebeu de imediato que havia algo de anormal. O semblante da garota, costumeiramente risonho, estava tisnado de uma angústia intraduzível que contrastava severamente com o seu jeito habitual.

- Que tens,Felícia? – indagou apreensivo – Algo sucedeu aos teus pais?

- Não, padre. Não ocorreu nada com os meus pais – respondeu com a voz embargada e os olhos de um azul profundo já aljofrados de pranto – É que... Preciso confessar-me! Eu pequei!

- E quem não o terá feito jamais, filha? – tornou ele com bonomia – Somos humanos, estamos sujeitos a tais coisas. Vinde, estou à tua disposição.

Fez sinal para que a seguisse e se dirigiram em direção ao confessionário.

- Fala sem receio, filha. Que dúvidas atormentam o teu jovem coração?

- Padre... Eu pequei contra a castidade!

Aquela declaração o deixou um tanto abismado. Estava há pouco mais de um ano na paróquia de El Paso e sabia que a conduta de Felícia era de todo irrepreensível. A donzela vivia tão somente para auxiliar os pais e reiterava com freqüência a intenção de abraçar a vida monástica no futuro. Não obstante, ela era ainda demasiado jovem para deliberar a este respeito de forma irrevogável e era mais do que natural que, em dado momento, acabasse por descobrir que Deus a chamaria à vocação sacramental por outros caminhos que não necessariamente a assunção dos votos perpétuos.

- Do que se trata, filha? – interpelou transparecendo certa inquietação

- Eu... Eu sinto que estou apaixonada – tornou a moçoila arfante

Estéban experimentou relativo alívio ao ouvir aquilo, mas ainda temeu haver alguma história mais terrível por trás daquela declaração.

- E como isto representaria um pecado contra a castidade?

- Eu tenho me sentido confusa quanto aos meus desejos futuros, padre. Nunca havia sentido nada assim antes e temo não conseguir tomar os votos monásticos se isso continuar!

- Ora, Felícia! Não há qualquer pecado nisto! – disse sorrindo – O chamado vocacional pode vir de várias formas. Se Deus julgar que ser-lhe-ás mais útil optando pelo matrimônio do que pela clausura, isto sucederá naturalmente. Ademais, Deus é amor. Foi isto que Cristo deixou bem claro ao longo de toda a sua vida, consumando na cruz o amor extremo e incomparável que devotou a todos nós.

Um discreto soluço se fez ouvir do outro lado da grade, o que fez o pároco indagar surpreso com aquela reação:

- Felícia? O que houve?

- Padre... Mas eu jamais poderei tê-lo ao meu lado. – disse a jovem com grande tristeza

Novamente o jesuíta se viu acometido pelo temor do que ela iria lhe revelar. Caso se tratasse de um relacionamento extraconjugal, a vida daquela jovem estaria desgraçada para sempre e talvez a clausura viesse a se tornar a única opção de forrar-se ao opróbrio que certamente viria sobre ela. Sopitando a custo a inquietação, volveu a perguntar:

- Por que não? Porventura ele é casado, não reside na vila? Qual a situação?

A filha do casal Aguirre soluçou mais uma vez. O pranto fluiu caudaloso e lhe embargou a voz. Cada vez mais temeroso, Estéban insistiu:

- Fala, filha. Não temas. Deus é amor e o amor cobre a multidão de pecados. Dize o que te inquieta.

Com muito custo ela sofreou as lágrimas. Respirou fundo, como se estivesse buscando mais a coragem do que o fôlego para o que viria a seguir. Finalmente, após alguns segundos de grande tensão, Felícia aventurou-se:

- O amor cobre a multidão de pecados?

- Perfeitamente – tornou o inaciano transbordando convicção – Jamais o pecado poderá ser maior do que o amor de Deus pelos seus filhos.

- Mesmo quando esse pecado é contra a Santa Madre Igreja? – insistiu ela

Foi a vez de Estéban respirar fundo, temendo ainda mais o que viria. Lá fora a chuva se convertia em impiedosa borrasca.

- Filha... Do que se trata?

- Eu amo alguém inalcançável, padre! – confessou num assomo dilacerante de amargura – Um homem que jamais poderá ser meu, porque se consagrou a Deus! Um homem que desposou a Igreja e que por isso mesmo jamais poderá desposar-me! Este homem és tu!

Violento trovão ribombou sobreo templo católico, reverberando no bronze do sino no campanário. Dentro do confessionário, Frei Estéban encolheu-se e fez o sinal da cruz, sentindo intimamente que o estrondo produzido pela tormenta emudecera diante daquela revelação tão chocante que, não saberia dizer como, adivinhara no semblante de Felícia no exato momento em que ela adentrara a igreja. Na verdade, já desconfiava de que a jovem nutria algum sentimento para além da devoção religiosa, que a levava diariamente a procurá-lo. Mais de uma vez se penitenciara severamente, açoitando a própria carne na solidão noturna de sua cela, ao perceber que ele também se via inclinado para aquelas fantasias libidinosas que absolutamente não poderiam se concretizar.

A tormenta agora recrudescia duplamente, dentro e fora do santuário. Enquanto o vento sibilava por entre as janelas do campanário, Felícia, cada vez mais exasperada, prosseguia com a voz entrecortada pelo pranto:

- Eu sinto que estou me desgraçando, padre! E o que é pior: desgraçando um servo do Deus Altíssimo! Essa paixão impudica brotou não sei como, mas sei que ela me devora inclemente! Quando venho ter aqui é para ver-te, mas é também para implorar perdão a Deus pela minha pecaminosa fixação!

Cada palavra de Felícia era como uma vergasta de chamas a lhe calcinar a alma. Desesperado, Estéban cobria o rosto com as mãos e sentia que o coração lhe pulsava túmido dentro do peito, como se fosse explodir subitamente numa nuvem de sangue. Do outro lado do confessionário, a filha dos Aguirre prosseguia alucinada, como se alguma força maléfica a incitasse a narrar com sórdida riqueza de detalhes cada fantasia diabólica que a acometia em seus arroubos:

- Eu sonho contigo, padre! Em meus sonhos tu me possuis no altar e, no exato instante em que vais me fazer tua, eu desperto! E desperto banhada de suor, ardendo em febre, devorada por esse sentimento satânico que me faz sentir nojo de minha própria carne! Já não consigo mais fechar os olhos sem vislumbrar a tua imagem! Há dias em que tenho ganas de galgar o altar e beijar-te a boca no instante em que vais dar-nos a comunhão! Agora mesmo, desejaria que me possuísses dentro do confessionário! Que me tomasses nos braços e me rasgasses as vestes...

- Basta! Basta! Nem mais uma palavra! – berrou o clérigo premindo a cabeça com as mãos e saindo desarvorado do confessionário – Meu Deus! Meu Deus! É Satã que fala pela tua boca! O inferno tenta arrastar-te para o seu horripilante torvelinho de depravação!

A reação desesperada do inaciano, longe de pôr termo ao transe que parecia arrebatar a jovem camponesa, acabou por torná-lo ainda mais feroz. Felícia ergueu-se do assento em que se encontrava e avançou resoluta, com ímpetos de atirar-se como uma Sucubbus lasciva sobre o sacerdote. O jesuíta imediatamente empunhou a cruz de metal que trazia em volta do pescoço qual se fora uma arma, bradando ferozmente:

- VADE RETRO, SATANÁS!

Ela estacou de chofre, como se a ordem proferida houvesse conseguido trazê-la de volta à realidade. Seu aspecto agora em nada fazia recordar a doce e pudica filha dos Aguirre. De rosto afogueado, olhos injetados, boca aberta e arfante, dir-se-ia a própria encarnação do despudor. Do lado oposto, Estéban, igualmente transfigurado, rosto congesto e lívido como o mármore, personificava a própria ira divina em forma humana.

Pesado silêncio caiu sobre o recinto, quebrado apenas pelo bramir da chuva no telhado.

Quanto tempo se demoraram nessa muda contemplação? Nenhuma das partes saberia dizer. Felícia foi a primeira a quebrar o mutismo, balbuciando algo ininteligível a princípio, que por fim culminou em violentíssima crise de choro, fazendo-a cair de joelhos. Estéban, vendo que a garota recobrara a consciência, abaixou o crucifixo e declarou com secura:

- Não estou em condições de ouvir tua confissão, Felícia. É melhor que vás a Santiago e busques outro confessor. Por hora, volta para casa e trata de te penitenciares por nutrir pensamentos tão pecaminosos.

A moçoila ergueu para ele os olhos marejados de pranto e indagou em tom súplice:

- Sequer me absolveis? Não disseste que o amor cobre a multidão de pecados?

O religioso desviou a vista e obtemperou implacável:

- Não pediste absolvição, pois sequer concluíste a confissão, se é que poderia considerar confissão o sacrilégio que acabais de perpetrar. De fato, o amor cobre a multidão de pecados, mas é Deus quem decide fazê-lo e não eu. Agora, vai-te! Preciso ficar a sós.

Cada vez mais desesperada ela volveu à carga:

- Quereis que eu parta com esta tempestade? Onde a vossa caridade, padre?

As últimas palavras haviam sido pontilhadas de rancor e ironia, mas Estéban não caiu na provocação. Voltou-se para a moça e, medindo-a de alto a baixo com o olhar, declarou com desprezo:

- Tu vieste voluntariamente sob a borrasca para insultar-me com a tua luxúria, pois bem, faze disto a tua penitência! Agora, vai-te daqui!

Ela ergueu-se com o olhar cintilando de indignação e os lábios trêmulos de cólera. Adiantou-se para a porta e, quando estava prestes a ganhar a via pública declarou com voz horríssona, sibilante de ódio:

- Hipócrita! Hei de arrancar essa tua máscara de virtude!

Violento trovão seguiu-se a esta ameaça. Ela demandou à rua açoitada pela tempestade, andando resoluta e insolente, como ele nunca supusera ser possível, levando em consideração a natureza sempre calma e serena da filha dos Aguirre.

Nas semanas que se seguiram a este incidente, a situação se agravou cada vez mais. Felícia, que sempre se mostrara solícita e doce para com todos, passara a exibir uma faceta até então desconhecida dos pais e dos demais aldeões. Agora se revelava petulante, ríspida e cruel para com todos. Furtava-se aos deveres domésticos e escarnecia abertamente de tudo que dizia respeito à religião. As visitas diárias à igreja cessaram em definitivo. A culminância dessa metamorfose teve lugar na véspera do seu décimo quinto aniversário, quando a garota despertou no meio da noite vociferando todo tipo de blasfêmias, com uma voz que absolutamente não lhe pertencia. O semblante dantes meigo, que já vinha sofrendo mudanças significativas, transmudara-se numa catadura patibular, capaz de infundir o mais acerbo terror só de ser vista.

Desesperados, os pais da desditosa criatura tentaram acalmá-la, sem lograr o menor sucesso no tentame. Felícia não reconhecia mais os próprios genitores e ordenava que se retirassem dali, ameaçando matá-los se tentassem tocá-la:

- Afastai-vos de mim, malditos! A meretriz infame a quem chamais de filha não mais está aqui! Ela se atreveu a pisar em território que não lhe pertence e castigá-la-ei exemplarmente pela insolência! Ele é meu! Meu! Tão somente meu! E hei de destruir todos aqueles que ousem se colocar no meu caminho!

Seguiu-se a esta exprobração um violentíssimo torvelinho que varreu o quarto de Felícia, como se uma tempestade fosse se deflagrar ali dentro. A cama onde ela estava ergueu-se no ar sustida por mãos invisíveis, ao mesmo tempo em que todas as imagens sacras que eram conservadas no pequeno oratório foram impiedosamente arremessadas ao solo, estilhaçando-se em mil pedaços.

- Pelas cinco chagas de Cristo! – bradou a genitora tomada de indômito terror – O demônio apossou-se de nossa filha! Meu Deus! Meu Deus! Tende piedade de nós!

Os vizinhos mais próximos, profundamente consternados com a tragédia que se abatera sobre o honesto e piedoso lar dos Aguirre, deram-se pressa em demandar à paróquia e informar Frei Estéban do que ora acontecia. Ao tomar conhecimento dos fatos, o jesuíta rumou célere para a propriedade, rogando a Deus que lhe desse o discernimento e a fibra necessária para encarar o destino que o aguardava. Algo em seu íntimo segredava-lhe que fora indiretamente o causador daquela calamidade, cujo primeiro ato tivera lugar naquela fatídica manhã de tempestade.

Em lá chegando, o velho José Aguirre caiu de joelhos e implorou desesperado:

- Padre, por misericórdia! Por quem és! Salvai a nossa filha! Só tu podes afugentar o demônio que subjugou a nossa pobre criança!

Espessa torrente de lágrimas sufocou a voz do desditoso lavrador, a quem Estéban acolheu e ergueu delicadamente.

- Não te entregues ao desespero, meu bom homem – admoestou o sacerdote, fazendo um esforço sobre-humano para acreditar ele mesmo no que ora dizia – As potências do Abismo jamais poderão prevalecer sobre o amor e a misericórdia Divina. Levai-me até ela.

Dadas as circunstâncias da situação, a curiosidade e o medo acabaram por afugentar o sono dos demais vizinhos, que ora se aglomeravam em derredor da casa dos Aguirre. Diante daquilo, o jovem padre exortou com relativa gravidade:

- Irmãos, nada há aqui para ser visto na qualidade de espetáculo. Se desejais permanecer, ponde-vos em oração a fim de quebrar o poderio maléfico de Satã e de suas nefandas hordas. Caso não possais fazê-lo, aconselho-vos a regressar aos vossos lares, em nome da consideração e do respeito que um momento tão delicado demanda de todos nós.

A multidão se moveu e começou a dispersar-se. Apenas os vizinhos mais próximos se mantiveram ali, seguindo o alvitre de Estéban, que adentrou a habitação dos Aguirre empunhando a cruz e um pequeno frasco de água benta, destinado para aspersão do ambiente. Assim que entrou, sentiu de imediato a vibração deletéria emanada pelo parasita astral que se vinculara a Felícia.

- Ela está aqui, padre – disse a matrona apontando para a porta do quarto – Não ousamos tocá-la. A criatura que a dominou ameaçou matar-nos. Na verdade, fomos jogados para fora depois de um vendaval súbito que brotou do nada e pulverizou todas as imagens que ela guardava no quarto.

Estéban sentiu-se acuado. Por várias vezes ouvira falar de possessões demoníacas, mas nunca havia estado em contato com algo dessa natureza. Não sabia o que o aguardava para além daquela porta e o pior de tudo: não fazia ideia do que iria fazer, pois estava claro que travaria combate com algum agente satânico cujos terríveis poderes ignorava por completo. Mas não havia alternativa. Ele era a única esperança daqueles pobres campônios, cuja única filha agora jazia em poder de alguma entidade diabólica. Ele era o representante de Deus ali, não lhe cabia senão ingressar no combate.

Ademais, se Deus permitira que ele chegasse até ali, haveria de dar-lhe os meios para fazer o que fosse preciso.

- Lutar por Cristo com a cruz e com a espada – disse algo absorto, rememorando o lema dos inacianos – É isto que me cabe fazer aqui e agora!

Encheu-se de coragem e adentrou a alcova da jovem. Assim que pisou no aposento de Felícia, sentiu que todos os pelos de seu corpo se eriçavam como que estranhamente eletrizados. Talvez fosse apenas o medo que o espicaçava, ou talvez estivesse entrando em algum tipo de campo de força, forjado pelas emanações pestíferas do soldado das trevas ali presente.

O cenário era desolador. O quarto jazia nas sombras, exceto pela luz da lua que penetrava pela janela aberta. Estilhaços de imagens de santos espalhavam-se aqui e acolá. Sentada no chão e recostada à parede, cingindo a camisola branca que sempre usava, Felícia mais se assemelhava a um espectro. A cabeça repousava sobre os braços e estes se apoiavam nos joelhos. A longa cabeleira negra lhe caia por sobre as pernas cobrindo-lhe completamente o rosto.

- Finalmente vieste! – disse a possuída sem sair da posição em que se encontrava – A superstição dessa ralé tem lá as suas vantagens afinal...

Uma risada sardônica seguiu-se a esta declaração. Estéban persignou-se e avançou de crucifixo em punho, interpelando com voz autoritária:

- Quem sois e o que buscais aqui? Que nefandas intenções te fizeram vir do inferno e possuir esta jovem?

Nova risada de escárnio, desta vez uma gargalhada estrepitosa, foi a resposta da entidade. Lentamente, a possuída ergueu os olhos esgazeados e encarou com petulância o sacerdote:

- Quem sou eu? Sabes muito bem quem sou, padre! – mordaz ironia sublinhava o vocativo – Talvez não me possas ver porque a carne te impede de fazê-lo, mas sabes muito bem a quem te diriges! A excitação que ora te empolga, a mesma que experimentaste há duas semanas quando ela confessou o que sentia por ti já não to revelou a minha verdadeira identidade?

- Não tenho parte com o demônio! – redarguiu o jesuíta, indignado – Mas sei perfeitamente dos vis propósitos que te norteiam! Esta jovem que ora seviciais pretende devotar sua vida a Deus e imagino que foi por isto que a atacaste! A História Sagrada jaz repleta de exemplos de homens e mulheres de bem cujas honradas vidas, consagradas ao serviço do Senhor, mais de uma vez foram alvo da ação hedionda dos agentes de Satã. O que ora fazeis apenas atesta que Felícia é uma escolhida dos Céus e por isso mesmo é que buscais arrebatá-la para o Reino das Trevas, mas devo avisar-te: não a tereis! Darei tudo de mim para quebrar o odioso domínio que ora impondes sore ela e Deus me concederá a força necessária, a fim de banir-te definitivamente para a furna infecta de onde jamais deverias ter saído!

A entidade pôs-se a rir histericamente, como se Estéban houvesse acabado de contar a mais hilariante de todas as piadas. O clérigo, a seu turno, tomado de feroz indignação contra o deboche de que se tornava alvo, tomou da água benta e se pôs a aspergir ambos – Felícia e seu algoz invisível – em movimentos verticais e horizontais que reproduziam o sinal da cruz.

- Em nome de Deus-Pai Todo Poderoso e de Jesus Cristo, Seu único filho, que se entregou na cruz pela expiação dos nossos pecados, ordeno que abandones imediatamente o corpo desta jovem! – invectivou com voz potente e autoritária.

O corpo de Felícia começou a se contorcer, como se ela estivesse prestes a sofrer algum tipo de crise epiléptica. Os olhos se reviraram nas órbitas e ela se pôs a salivar abundantemente, deixando um filete de espuma correr pelo canto da boca entreaberta. Estéban prosseguia no rito de esconjuro, proferindo o Credo enquanto aspergia a filha dos Aguirre.

- Pela comunhão dos Santos Mártires! Por São Miguel Arcanjo, cujo triunfo sobre Satanás selou para sempre o destino dos caídos, eu ordeno que te retires, demônio!

Felícia se pôs a urrar premindo a cabeça com as mãos. Estéban, como que animado pelas Potências Celestiais que ora invocava em seu auxílio, prosseguia resoluto e inabalável. A possuída se contorcia horrivelmente, como se verdadeira chuva de fagulhas se despejasse sobre seu corpo, fazendo-a emitir grunhidos animalescos. O jovem clérigo animou-se ao ver aquilo. Era óbvio que o demônio não seria capaz de resistir aquele assédio.

- Felícia! Felícia! Desperta! – convocou em êxtase – Em nome de Deus Todo Poderoso, faze prevalecer a tua vontade! Expulsai o perverso ocupante de volta para o Abismo!

Ela ergueu a cabeça, abriu os olhos e, com uma voz horripilante, replicou estentórica:

- NÃO!!!!

Foi então que uma estranha explosão teve lugar no aposento. Estéban foi arremessado de encontro à parede e por muito pouco não fraturou a coluna, tamanha a violência do impacto recebido. As convulsões sobre o corpo de Felícia ainda prosseguiam, contudo pareciam amainar. Do outro lado do quarto, o inaciano tentava erguer-se, experimentando acerbas dores por todo o corpo e sentindo a vista turva. Ele mesmo não saberia dizer se aquela vertigem fora resultado do golpe recebido, ou se fora mais algum ardil do agente das trevas que teimava em jugular a jovem campônia.

Com muito custo ele conseguiu se pôr de pé. A mão esquerda lhe doía. Percebeu que a manga da batina estava úmida. Quando se voltou para examinar a razão disso, entendeu do que se tratava: a onda de choque que o atirara para o outro lado do quarto fizera o frasco de água benta se espatifar em sua mão, tendo os estilhaços lhe penetrado a carne. Na verdade, era ali que residia a razão da vertigem e da vista turva, na perda de sangue. Rapidamente, improvisou um torniquete rasgando a manga do hábito e envolvendo o ferimento para estancar a hemorragia. Estava decidido a pôr um fim àquilo e não permitiria que nada o impedisse.

- Cristo também sangrou pela nossa salvação – murmurou para si mesmo – Isto não é nada comparado ao Seu martírio...

A filha dos Aguirre prosseguia sob o jugo do agente obsessor mas, depois da estranha explosão que ocorrera entre ela e Estéban, começou a chorar copiosamente curvada sobre si mesma.

Estranha compaixão empolgou subitamente o sacerdote ao ver aquilo. Não saberia dizer se era Felícia quem chorava, ou se seria tão somente mais um truque do seu infernal verdugo para novamente zombar dos esforços de seu antagonista. De qualquer forma, a cena era demasiado pungente. A garota agora mais se assemelhava a uma criança desamparada, clamando por proteção. A aura odiosa do ser que a possuíra havia deixado de emitir as pestíferas vibrações que até a pouco impregnavam o ambiente, ou talvez ele houvesse sido mesmo banido de volta para o submundo, o que poderia ter ocasionado aquela onda de choque de minutos antes.

Engano. Felícia continuava subjugada pela entidade sombria. Contudo, o ímpeto violento e os modos debochados haviam cessado. A postura arrogante de antes cedera espaço ao choro convulsivo e repleto de desconsolo.

Por instantes Estéban ficou absorto. Aquilo poderia muito bem ser apenas mais um artifício torpe. A literatura sagrada asseverava que os demônios eram seres sem coração, votados ao mal e à perversidade gratuita desde a sua expulsão do Reino Celeste, ao qual jamais poderiam regressar. Era absolutamente impossível que um ser daquela estirpe pudesse experimentar algo como contrição ou mesmo pesar. Além disso, de que lhe valeria o arrependimento, se o Altíssimo jamais aceitaria que os soldados de Lúcifer pudessem se penitenciar pelas atrocidades perpetradas, ainda que desejassem sinceramente fazê-lo?

Esse pensamento lhe pungiu estranhamente o coração. Nunca antes houvera parado para cogitar da imensa desgraça que representava para aqueles malsinados seres a impossibilidade da redenção. Ao mesmo tempo, considerou o quão paradoxal seria a Justiça Divina ao fechar por toda a eternidade as portas da reparação, para os que desejassem realmente trilhar o caminho da retidão. Haveria justiça nisso? Em destinar ao sofrimento perpétuo seres que poderiam em algum momento se dar conta do erro praticado?

- Não, não! – monologou balançando a cabeça, tentando expulsar tais pensamentos – Esse é o ardil do Maléfico! Confundir-me e fazer-me duvidar da grandeza dos desígnios celestes!

Mal terminou de proferir estas palavras, a entidade interceptou-o:

- Então foi nisto que te converteste, Abelardo? – inquiriu com melancólico acento – Em alguém que abdica do próprio bom-senso em nome de uma superstição perversa? Oh, Deus! Que decepção! Como decaíste!

A menção do seu nome civil fez o sacerdote erguer-se como se algum aguilhão invisível o houvesse subitamente atingido.

-Que disseste? Como sabes o meu nome? – interpelou imensamente angustiado – Quem és tu, demônio?

- Desgraça sobre ti, Abelardo! – prosseguia a infeliz criatura das sombras com um acento cada vez mais pungente, como se imensa dor a vulnerasse – Desgraça sobre nós dois, que fomos torpemente separados pelo destino em nome de um deus que nunca poderia ser o Criador do Universo! Oh, Deus! Oh, Deus! Por que nos abandonaste?

- Cala-te, espírito imundo! – bradou o jesuíta cada vez mais exasperado – Como te atreves a invocar o nome do Altíssimo com essa boca sacrílega, tu que em conluio com Lúcifer traíste a Majestade Divina, antes mesmo de surgirem os homens? Não admitirei que tentes jogar com os meus sentimentos de forma tão vil!

A filha dos Aguirre fez menção de erguer-se e estendeu a mão em atitude suplicante para o clérigo.

- Quão cego tu podes ser? – protestava em desespero – Não é possível que não consigas sentir mais nada! Não me reconheces mais, Abelardo? Teu coração fechou-se ao ponto de não mais identificares quem um dia já o fez pulsar mais forte?

O jesuíta empunhou novamente o crucifixo, tendo desta vez o cuidado de fazê-lo justamente com a mão esquerda. A pressão aplicada sobre a mão fez com que o sangue umedecesse o torniquete e acabasse por molhar igualmente a cruz, onde repousava a imagem de um Cristo coroado de espinhos, macerado e morto.

- Vade retro, Satanás! – trovejou – Nada tenho contigo e não permitirei que prossigas em teu sórdido tentame! Darei o meu próprio sangue para expulsar-te, se for necessário!

Uma gargalhada estridente e selvática reboou lugubremente pelas paredes do recinto, convertendo-se logo em seguida no pranto desesperado e rancoroso dos malditos. A possuída, cujo corpo curvado ainda se contorcia em espasmos, ergueu-se resoluta e com o olhar fuzilando de cólera, numa transfiguração característica dos que se encontram entre os dois planos da existência, disparando implacável:

- Monstro! – bradou a entidade através do aparelho fonador da médium. Dedo ameaçadoramente em riste, dir-se-ia uma das Fúrias de Nêmesis proferindo o libelo acusatório contra algum dos ímpios do submundo – Hipócrita maldito! Sacrílego infame! Tu te atreves a me chamar de demônio, quando na verdade tu é que encarnas o mal e a perversão! Quando a megera a quem chamavas de mãe foi levada pela morte, foste incapaz de reconhecer a ação da Providência Divina a libertar-te de seu jugo odioso e depravado! Ela te enterrou vivo naquele seminário com o único fito de separar-nos e, quando foi convocada ao Tribunal Celeste para responder pelos inúmeros crimes perpetrados sob a aparência de dama respeitável, tu estavas finalmente livre da sua maldição. Mas não! Preferiste seguir na qualidade de objeto de um gozo nefasto que só poderia se consumar pela via abominável do incesto, e assim, te condenaste voluntariamente a trilhar um caminho de autodestruição. Na ausência física da genitora miseranda e pérfida, te consagraste à grande meretriz sanguinária de Roma, que se autoproclama Santa Madre, porque tu também te comprazias nesse sórdido contubérnio incestuoso que afronta todas as leis do Universo e precisavas de um novo álibi que justificasse a tua abdicação da razão e da decência! Tu, Abelardo! Tu é que te converteste em demônio e não eu! Tu, que proferindo votos de lealdade à Cúria, te fizeste perjuro e sacrílego para com Cristo, porque sempre soubeste que o sacerdócio era um mero capricho da tua mãe e não um desejo de teu coração! Eu bem o sei, pois nem mesmo a morte me arrancou dos teus pensamentos, assim como eu também jamais deixei de te amar, a despeito de todo o rancor que nutro até hoje por este mundo corrupto e podre que nos impôs uma separação tão ignóbil! Pelo contrário, continuo ansiando pelo dia em que me tomarás novamente nos braços, livre das infames e obscenas convenções mundanas que te aprisionaram nessa odiosa posição...

Intenso livor cobriu a face do jovem sacerdote, qual se fora subitamente convertido em alabastro. Cada palavra proferida pela criatura que debalde vinha tentando expulsar materializara o seu passado, em cores tão vívidas e tão terríveis que a consciência ameaçou abandoná-lo. Sentiu que o chão sob seus pés desaparecia e que hiante precipício, certamente as fauces tenebrosas do próprio inferno, se escancarava para degluti-lo. A cabeça andou-lhe à roda, os sentidos lhe falharam e, a despeito de todo o hercúleo esforço que fazia para se manter de pé, acabou por tombar ali: de joelhos diante da possuída que deveria exorcizar.

- Desperta, Abelardo! – prosseguia o espírito – Nem mesmo a morte logrou separar-nos! Apesar de tudo que fizeste eu ainda te amo com todas as minhas forças!

- Isabel... tartamudeou o rapaz, num estado de quase catatonia – Isabel? És tu mesma? Isto é algum ardil depravado de Satã, ou realmente voltaste dos mortos?

Intensa mudança se operou na máscara facial de Felícia. O ricto de escárnio que trazia no rosto até então, transmutou-se em dolorosa expressão de choro. Os olhos antes injetados estavam agora aljofrados de pranto e transpareciam uma dor inenarrável. Sem dúvida, aquele não erao semblante da jovem camponesa, mas o da desditosa moça judia por quem Abelardo se apaixonara na juventude e de quem fora cruelmente separado, graças às articulações de sua genitora com o Santo Ofício.

- Ao menos vês o que estás dizendo? – tornou a morta cada vez mais melindrada – Agora atribuis ao demônio a onipotência e a onisciência que somente Deus poderia ter! Que fizeram de ti, Abelardo? Que fizeste de ti mesmo?

Foi a vez de o jesuíta curvar a fronte e deixar que o pranto longamente represado fluísse finalmente. Isabel Schneider, a única filha de um comerciante judeu queimado pela Inquisição em Valladolid, fora o seu primeiro e único amor. Depois de ser apartado dela, a mãe enviara-o para o seminário, aonde ele viria a saber, posteriormente, que falecera em circunstâncias misteriosas. Na verdade, depois de ser separada do pai, a garota fora vendida pela mãe de Abelardo para um lupanar em Sevilha, vindo a falecer de tifo antes mesmo de completar dezesseis anos. Quando haviam sido separados, ambos contavam apenas quatorze anos – a mesma idade de Felícia –, mas Estéban jamais conseguira apagar a imagem da adorável mocinha com quem passara as tardes a brincar e a sonhar com um futuro idílico, enquanto observavam as nuvens no céu, deitados na relva macia e fresca.

Toda essa retrospectiva se operava enquanto o infeliz pároco de El Paso dava vazão à sua dor tão íntima e inconfessável. Sim... Mesmo quando soubera da morte de Isabel, não conseguira chorar. Ao longo de mais de uma década carregara em seu peito a dor incomensurável daquela perda, uma perda tão dilacerante que nem sequer encontrara lágrimas para expungir de seu ser aquela sensação de que houvera sido para sempre privado de sua própria alma.

Agora finalmente lhe era permitido chorar a própria desgraça. Esqueceu-se completamente da razão que o levara até a propriedade dos Aguirre àquela hora da noite e abraçou as pernas da médium soluçando copiosamente, tal qual a criança que despertasse de longo e horrífico pesadelo, buscando o abrigo materno contra os horrores da noite.

- Isabel! Isabel! – repetia enlevado – Então tu realmente voltaste! Que incomparável mercê dos Céus reencontrar-te depois de tantos anos!

A comunicante abaixou-se e envolveu-o em efusivo amplexo, unindo as lágrimas do desditoso clérigo às suas.

- Sim, meu amor! Meu querido Abelardo – murmurava com doçura enquanto lhe beijava a fronte –Eu jamais te esqueci, mesmo estando fora do mundo dos vivos... Segui-te todos estes anos, sempre na esperança de que algum dia a morte pudesse finalmente reunir-nos em definitivo.

- Mas eu morri igualmente quando soube do teu decesso – volveu o sacerdote por entre caudais de pranto – Tamanha foi a dor da tua partida que sequer tive lágrimas para verter... Senti como se a própria alma me houvesse sido arrancada. Durante todos os anos em que estive no seminário e posteriormente na Companhia, fui um morto-vivo. Nem mesmo quando a minha mãe partiu fui capaz...

- Não! – cortou ela com rispidez – Não menciones a tua mãe! Não tragas aquele ser odioso de volta! Ela te sepultou vivo ao mesmo tempo em que me condenou à prostituição em Sevilha, onde vim a falecer apodrecendo em vida!

Aquelas palavras tiveram o condão de trazer Estéban de volta à realidade: ele era um sacerdote católico incumbido de libertar uma camponesa da ação de um demônio, mas agora se encontrava ali, a confabular com a entidade que, momentos atrás, fora sua antagonista. Ao mesmo tempo, a menção de Isabel à sua genitora, transbordante de rancor, o havia chocado profundamente.

- Que disseste? – inquiriu angustiado – Por acaso a minha mãe teve algo a ver com a tua morte?

Através da máscara facial de Felícia, Isabel cerrou os olhos e fez uma expressão onde se liam asco e revolta:

- Tua mãe denunciou-nos ao Santo Ofício e causou a ruína do meu pai! – disse exasperada – Não satisfeita, ela vendeu-me a um prostíbulo de Sevilha a fim de ter certeza de que jamais voltaríamos a nos ver! Paralelamente a isto, encerrou-te no seminário para garantir que jamais haveria a menor possibilidade de o seu filho fidalgo misturar o sangue da nobreza ibérica com a imunda raça judia, como ele costumava referir-se a nós!

- Não...Não pode ser! – murmurou estarrecido com todo o horror daquela revelação – Meu Deus! Meu Deus! Que sacrilégio abominável! Como ela foi capaz de algo tão vil?!

- Ela sempre fez de ti um dócil brinquedo, Abelardo... Jamais admitiu que nem mesmo o teu pai, a quem ela nunca amou, pudesse ter maior proximidade contigo, pois temia que pudesses fugir ao seu controle doentio. Ver-te apaixonado por uma judia foi o apogeu do intolerável para ela. Jamais poderei perdoá-la por tudo que nos fez!

- Não, não digas isso! – volveu ele tentando apaziguar a amargurada entidade – Tu deixaste este mundo e deves perdoar a quem te ofendeu assim como Cristo o fez. Estás livre de toda essa conjuntura dolorosa...

- Livre? – trovejou indignada – Livre, dizes tu? Como posso estar livre, Abelardo, se tu ainda te demoras na carne e esta criatura ousa tentar-te? Como posso estar livre, quando meu coração anseia por ti cada vez mais e vejo-te hesitar entre o nosso amor e as insinuações obscenas desta meretriz por quem ora falo? Não te atrevas a dizer que jamais detectaste as reais intenções da cavilosa criatura que se insinuou para ti, cingindo a máscara de uma pudicícia que jamais possuiu! Fazes ideia das depravações a que ela se entregava aqui, neste mesmo cubículo, todas as noites, invocando a tua imagem? Eu vi, Abelardo! Eu a tudo assisti, porque jamais deixei de estar ao teu lado! Vi com que sórdidas intenções ela passou a procurar-te diariamente na paróquia, enquanto tu vias nisso tão somente a pia devoção de uma jovem camponesa. Quando ela não foi mais capaz de sopitar a luxúria condenável que a devorava, ousou buscar-te naquela manhã de tempestade, pois seria o pretexto perfeito para estar a sós contigo na igreja e persuadir-te a trair-me!

- Não, não pode ser... Tu te enganas, não pode ser verdade. Felícia é pura e casta, ela estava apenas transtornada e confusa. – advogou o sacerdote.

- Ousas defendê-la? – retrucou duplamente enfurecida – Tu mesmo viste a que ponto ela chegou! Se agora aqui me encontro, é tão somente porque esta seria a única maneira de trazer-te a mim e abrir-te os olhos, ao mesmo tempo em que posso castigar a dissimulada marafona que, travestida de beata, atreveu-se a tentar tocar aquilo que me pertence! Não pude ter-te em vida, mas não permitirei que ninguém mais o faça! Ou será que tu, porventura, realmente planejas conspurcar os votos que tomaste para praticar uma licenciosidade desta com uma de tuas ovelhas?

Aquelas palavras deixavam claras as reais intenções de Isabel: vigiar e punir quem quer se atrevesse a se aproximar dele. Não lhe restavam mais dúvidas: era mesmo a amada de antanho que ali estava, enlouquecida de ciúme e convertida em Esfinge Implacável, tal qual a que no passado montava guarda aos portões de Tebas e devorava todos quantos não fossem capazes de decifrar o seu terrível enigma. Estéban, na qualidade de novo Édipo, tinha de pôr termo àquilo. Pelo bem de Felícia, de seus desditosos pais e de toda a aldeia, era mister colocar de lado os sentimentos pessoais e abraçar o fardo que tomara sobre si, quando se decidira por abraçar o sacerdócio. A partir do momento em que proferira os votos perpétuos, morrera como Abelardo para tornar-se tão somente Frei Estéban De La Santissima Pasión, aquele que, como o próprio nome indicava, deveria carregar a glória do martírio em nome de uma causa maior que sua própria vida.

Não havia o que fazer. Ele tinha a obrigação de se impor, ainda que isso viesse a lhe custar uma nova e ainda mais dolorosa separação. Ergueu-se com altivez e, enquadrando a entidade e sua médium, deixou claro que não poderia compactuar com aquilo.

- Tuas palavras me atemorizam, Isabel – disse tentando manter a serenidade – Não tenho dúvidas de que és tu mesma, mas temo que venhas a cair para os abismos infernais se prosseguires nessa empresa. Entendo que hajas sofrido muito em vida, mas isso não te autoriza a agires na qualidade de vingadora. Compreendo o quanto me queres bem e sabes muito bem que isto é recíproco. Não obstante, devo concitar-te a partires, uma vez que Felícia tem a sua própria vida na Terra. O que ora fazes é consentâneo apenas com a natureza dos servos do mal e sei perfeitamente que não é essa a tua natureza...

A entidade fitou-o com estranheza, como se não acreditasse nas palavras que ora ouvia. Após uma breve pausa, o inaciano sentenciou:

- A Isabel que amei jamais faria o que agora fazes. Ela viveu como um anjo e é assim que quero lembrar-me dela.

A médium fez-se lívida como o mármore. Com um olhar onde se fundiam amargura e raiva, a comunicante explodiu colérica:

- A Isabel que tu amaste! Fazes ideia dos horrores a que fui submetida naquele maldito lupanar, onde acabei por morrer coberta de opróbrio? Que sabes tu da minha dor, Abelardo? Que sabes tu de Deus e Satã? Nada! Nada sabes! Tu te limitas a repetir o que te foi ensinado, mas apenas saberás da verdade do Além quando aqui estiveres! Deus e Satã não existem! O Céu e o Inferno existem tão somente nos delírios que diariamente te ocupais de incutir nas mentes fracas, fazendo uso do ofício de charlatanismo a que chamais de sacerdócio! Queres o Inferno? Pois bem, eu te direi o que é o Inferno: ele se resume na ânsia de ter-te ao meu lado, que me consome desde os anos vividos na crosta terrestre e se prolonga até hoje! Eu experimento o Inferno quando sei que tu desejas esta garota! Sobretudo quando imagino que ela bem poderá um dia estar em teus braços, enquanto eu não tive o direito de ser tua! Isto é o Inferno, em todas as suas horrendas e repugnantes nuances, Abelardo! É a privação do Paraíso que, para mim, seria ter-te para sempre ao meu lado!

- O que dizes é absurdo... Eu não poderei estar contigo senão depois de morrer.

Um sorriso indefinível perpassou os lábios da filha dos Aguirre que, comandada por Isabel, atirou-se para Estéban, abraçando-o e murmurando com voz melíflua:

- Afinal entendeste... Vem comigo, Abelardo. Deixa este mundo apodrecido e corrupto. A morte é tão mais justa do que a vida...Poderemos finalmente viver na morte o amor que o impuro mundo dos vivos nos negou.

- Suicídio? – indagou ele horrorizado, desvencilhando-se do amplexo como se estivesse enlaçado por uma serpente – Tu propões que atente contra a minha própria vida? Não, eu não posso! Sou um servo de Deus! Não disponho de minha própria vida! Seria um sacrilégio dos mais torpes, sobretudo para este fim!

Isabel o fixou com o olhar tremeluzente de ira:

- Covarde! Poltrão miserável! Então consideras menos sacrílego prosseguir num papel em que não te reconheces? É sacrilégio menor, porventura, desejar possuir uma de tuas ovelhas, perjuro? Julgas digno permanecer na posição de sacerdote, apenas para satisfazer o ego da mãe morta que ainda te tiraniza, quando teu coração repele veementemente a maldição que te impuseste? Onde, Abelardo, pôr termo a essa existência repleta de mentiras e de agruras, é um pecado maior do que prosseguir na conspurcação do sacerdócio a que te condenaste? Onde há vida nesta morte da alma a que ora te consagras?

O jesuíta tentava inutilmente tapar os ouvidos. As acusações de Isabel pareciam penetrar sua carne, seu cérebro e reverberar-lhe agudamente na alma ulcerada. Sim, ela tinha razão, era a mais pura verdade. Que fora a sua vida senão uma farsa odiosa, da qual ele mesmo desejaria fugir se para isso tivesse a coragem necessária? Mas... O suicídio? Um dos maiores pecados aos olhos de Deus e da cristandade? Não! Era demais! Ele não seria capaz de chegar a esse extremo. Ademais, que garantias haveriam de que poderia finalmente unir-se a Isabel se perpetrasse tão infame transgressão? Porventura isto não se configuraria em recompensa ao culpado e, por conseguinte, numa flagrante claudicância das Leis Divinas?

- Anda, Abelardo! – objurgava a comunicante – Dize! É mais honroso seguires como morto-vivo entre os viventes, do que abraçar a verdadeira vida pelas portas da morte?

- Eu não posso! – retrucou desesperado – Matar-me exigiria de mim uma coragem que eu absolutamente não possuo! Ainda que fosse para estar ao teu lado...

O religioso caiu de joelhos e pôs-se a soluçar, cobrindo o rosto com as mãos.

- Então tu acabas de condenar esta infeliz – declarou secamente a morta.

- Que dizes? – indagou ele tomado de assombro – Isabel, o que pretendes fazer?

- Não pude ser tua em vida, esperava que ao menos pudesses vir me fazer companhia na morte... Mas se te acovardas diante do meu chamado, não me deixas escolha! Jamais permitirei que ela ocupe o lugar que me foi roubado!

Não era necessário dizer mais nada. Estéban compreendeu prontamente qual seria o propósito de Isabel.

- Não! – clamou fora de si – Por Deus, Isabel! Não faças isso! Pelo amor que dizes ter por mim, não te entregues à sanha da vingança contra uma inocente!

Um sorriso amargo se desenhou nos lábios descorados da médium.

- Por Deus... Pelo amor que te tenho... – repetiu displicente – Uma inocente... Eu era a única inocente, Abelardo. E essa inocência me foi roubada justamente quando tinha a idade desta garota...

- Se o fizeres te tornarás parte da grande horda dos caídos! É um crime aos olhos de Deus! Imploro-te, não o faças!– insistia debalde o inaciano.

- Sequer ouviste o que acabei de te dizer há pouco... É em vão que tentas persuadir-me com essas ameaças, de resto tão ocas quanto a religião que representas. Os únicos demônios que realmente existem demoram-se na carne e envergam a batina, assim como tu. Se há alguém aqui que precisa ser exorcizado esse alguém és tu, Abelardo, que abandonaste o próprio nome para tomar um epíteto que jamais te deixou esquecer o próprio passado – sentenciou enfática.

O jesuíta sentia-se severamente acuado. Isabel fizera-o sentar no banco dos réus e contemplar toda a extensão da sua miséria, a despeito de todo o esforço sandeu que empreendera ao longo de mais de dois lustros para sofismar e negar a si mesmo. Não lhe valera abraçar o nome do primeiro mártir da cristandade, na esperança de fazer da própria dor o seu martírio redentor, pois a morta adorada o fazia enxergar a dura e cruel realidade a que buscara inutilmente se evadir.

- Tens razão... Desabafou o mancebo, admitindo finalmente a derrota – Sou mesmo o único demônio aqui, não tu. Fui eu quem causou toda esta calamidade, ao permitir que esta pobre criatura nutrisse por mim um amor que jamais poderia acontecer em verdade. Agora me dou conta de todo o mal que pratiquei e das razões que a isto me levaram. Havia algo em Felícia que me fazia lembrar de ti, Isabel... A candura e a leveza que transparecia me remetiam ao teu semblante. O olhar sonhador e puro me levava de volta àquela época em que me era permitido sonhar ao teu lado, sem que eu viesse a me dar conta do mal que estava praticando ao deixar que tudo isto ganhasse proporções que tais! Eu sabia das reais intenções de Felícia e fingi ignorá-las, abusando da sua boa fé e fingindo acolhê-la como sacerdote, quando na verdade queria acolhê-la como homem... Não! Mais do que isso! Eu buscava a ti! Era o teu sorriso que eu buscava no dela, o teu olhar, a tua presença, que me foi tão duramente arrancada que eu desejava reaver na sua presença! Eu permiti que essa obsessão me consumisse, arrastando uma jovem indefesa para o centro desse vórtice de obscenidade, onde tanto os vivos quanto os mortos foram aviltados em sua dignidade! Deixei que este delírio satânico crescesse, lançasse raízes e frutificasse, criando inclusive a circunstância atual, onde a minha transgressão te fez voltar da mansão dos mortos para me atirar em rosto toda a iniquidade da minha conduta... Tu voltaste realmente através de Felícia, como eu, sem o saber, desejava fosse possível. E agora, só agora, me dou conta do que realmente me cabe fazer! Mea culpa! Mea maxima culpa!

A rediviva Isabel transparecia grande assombro através das feições de Felícia. Aquela súbita mudança de conduta era o que realmente desejava, no entanto, a convicção com que Abelardo proferia aquele mea culpa assustava-a deveras. Seria possível? Estaria ele sendo realmente sincero?

- Abelardo, o que pretendes de fato? – perguntou inquieta.

- Exorcizar o demônio aqui presente e libertar Felícia Aguirre desta odiosa injunção – obtemperou com voz vibrante – É o meu dever como sacerdote e como cristão. Devo honrar o nome que tomei ao fazer os votos, ao menos antes de voltar a ser Abelardo Lopez y Ruiz.

O mancebo ergueu-se resoluto e encaminhou-se para a porta, lançando um último olhar para a comunicante e dizendo com gravidade:

- Ela é inocente, Isabel. Não merece o mesmo destino horripilante que nos vitimou no passado...

A filha dos Aguirre vacilou e tombou desacordada sobre o assoalho. Sem fazer qualquer menção de ampará-la, Estéban abriu a porta do aposento e franqueou a passagem aos pais da moça, que se deram pressa em acudi-la.

- Nada temam, ela só está cansada. É provável que não venha a abrir os olhos antes do nascer do sol – disse com voz calma – Algumas horas de sono bastarão para revigorá-la devidamente, além é claro das vossas orações, sem as quais esta vitória não teria sido possível.

- Padre, por Deus! – interrogou Madalena Aguirre com ares de espanto ao ver o torniquete improvisado na mão esquerda do clérigo – O que aconteceu? É preciso chamar um médico!

Estéban sorriu e respondeu com um tom onde se mesclavam devoção e gracejo:

- Cristo recebeu cinco chagas pela salvação da humanidade, eu fui honrado na noite de hoje com a minha primeira pela salvação de vossa filha.

A mãe de Felícia ainda tentou convencê-lo a tratar da ferida, mas foi em vão. Com uma serenidade cativante e um sorriso enigmático estampado no rosto, o jovem sacerdote demandou à paróquia. Ao sair da casa, deparou-se com a pequena multidão que insistira em permanecer de vigília e que fora ao seu encontro para saudá-lo efusivamente pela vitória alcançada. Havia mesmo quem o chamasse de santo, ao que ele tratou de objetar:

- Toda glória pertence a Deus, irmãos – declarou com simplicidade – Nada fiz aqui. Voltai para os vossos lares sob as bênçãos do Altíssimo.

Mas o fato é que aqueles aldeões tinham Estéban na qualidade de enviado dos Céus e o seu feito apenas iria robustecer ainda mais esta convicção. De modo que as três horas que antecederam a aurora foram de intensa celebração por parte do povo, como se El Paso houvesse subitamente se convertido na antecâmara terrena da Jerusalém Celestial, com a expulsão do agente satânico pelo jesuíta. Cânticos e louvores foram entoados em ação de graças pelo acontecido e os moradores já se preparavam para organizar uma procissão em direção a Santiago, a fim de comemorar o triunfo celestial tão logo o sol nascesse.

A aurora, entretanto, não trouxe o júbilo que tantos esperavam.

Às seis da manhã, quando o repicar do sino convocava habitualmente os moradores para as lides devocionais, El Paso foi tristemente surpreendida com o dobre fúnebre, enquanto as portas da igreja ainda permaneciam fechadas. Apenas quando o repique culminou num baque abrupto e horríssono, ao qual se seguiu um silêncio sepulcral, é que os habitantes da vila perceberam um vulto a balançar sobre a entrada do templo, um tétrico fantasma negro que erguia os olhos vítreos para o céu em atitude de desafio.

Estéban enforcara-se no sino da capela.

Alan Thanatos
Enviado por Alan Thanatos em 04/07/2015
Reeditado em 16/10/2015
Código do texto: T5299014
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