UMA JANELA PARA A ETERNIDADE - parte 2

Os anos se passaram em conta-gotas, e tudo ia bem. Apenas três anos depois do nosso casamento recebi um convite para trabalhar na Inglaterra, origem dos meus antepassados recentes, e que me despertava curiosidade e admiração. Sempre olhei o país como um lugar onde o medieval e o moderno se misturavam de forma admirável. Eclético, para usar aqui um denominador comum, ou seja, um paraíso para arquitetos como eu, que amavam a arte.

A minha habilidade como arquiteto construtor de pontes pênsil, em arco ou em viga, tinha chegado até lá – sim, eu tinha ficando bom em alguma coisa - e eles precisavam de um que fosse capaz de unir num único modelo, beleza e funcionalidade, o que são palavras quase sempre opostas, quando se trata de arquitetura. Em meu tempo, a engenharia tratava apenas dos cálculos, deixando à arquitetura a árdua tarefa dos projetos, mas já naquela época eu tratava dos dois. Uma ponte na Inglaterra não é uma simples estrutura construída para dar passagem sobre um rio, braço de mar ou depressão do terreno. É muito mais do que apenas isso. No país de Shakespeare e dos castelos, uma ponte deve ter graça, leveza, um toque gótico ou barroco – talvez neoclássico – e um notável aspecto social de organização do espaço. Ou seja, precisa ser uma obra de arte!

Clara e eu fomos de bom grado, era um lugar que agradava a nós dois, e estávamos felizes por isso. Compramos uma casa numa cidadezinha afável, chamada Greenhill, perto de Grimsby. Tinha uma praia lá sempre vazia, por causa do frio, onde uma falésia ostentava com orgulho um velho farol abandonado, perto de onde caminhávamos nas manhãs mais ociosas. Os dias costumavam ser nublados e frios, mas isso não nos incomodava, convidava à reflexão, dava-nos tempo de ler os nossos livros, pintar os nossos quadros, e conversar no calor da lareira. Estava decidido então, seria ali que passaríamos o resto de nossas vidas! Só faltava aumentar a família, e isso já estávamos providenciando.

Às vezes, os poucos amigos que tínhamos iam lá para casa, no finalzinho da tarde, jogar baralho. Bons amigos, diga-se de passagem. Lembro-me do Carl, um sujeito bacana, tinha um humor até extravagante para um inglês, se assim posso dizer, e também para um psiquiatra de um importante hospital de Londres. Só tinha um defeito, na minha opinião: roubava em todas as partidas. Já estava ficando sem graça jogar com ele, antes mesmo de começar, já sabíamos que tinha guardado na sua manga a carta do jogo. Ora, qual baralho possui cinco coringas? Ele sempre tinha um extra na manga... Costumava dizer que precisamos ter um plano "B" na vida. A sua mulher também era uma excelente pessoa - e jamais roubava no jogo - foram eles que quebraram o gelo entre nós e a cidade, da primeira vez em que chegamos – os ingleses são muito reservados, como a maior parte dos europeus. Não os culpo, a guerra faz isso.

Bem ao lado da nossa casa havia um bosque que dava pras montanhas. A casa era a última de uma rua sem saída, que terminava na sombra das árvores que cercavam a rua. Era um bosque de contos de fadas, tirado dos livros dos irmãos Grimm, aqueles que no outono caem todas as folhas e colorem o chão de um marrom enferrujado. Nesses dias subia um cheiro de grama, mato molhado mesmo, que invadia a sala, e que nos fins de tarde, com o sol um pouco mais quente, ficava ainda mais forte. Um dia resolvemos ver até aonde ia essa floresta. Entramos nela: eu, Clara, Carl e Danna, a sua mulher. Andamos até as pernas doerem, fizemos um piquenique sob as sombras dos altos pinheiros, e mesmo depois de muito caminhar, lá pelas tantas, quando o sol começa a se tornar amarelo dourado, tipo aqueles que as crianças desenham, foi que percebemos o quão grande era aquele lugar. Não havia sinal do seu fim, só serras e mais serras, coroadas de pinheiros e Olmos ingleses, e no horizonte, rasgos de nuvens púrpura -avermelhadas. Provavelmente aquelas trilhas levavam até as cidades marinas, onde perdia espaço para os rochedos nus, e depois para o mar. Queria que os meus filhos crescessem ali, naquele lugar, brincando naquela grama... Subindo naquelas árvores que davam flores na primavera, nadando no rio, quando do verão, com as suas águas mais quentes e receptivas. Um lugar que eu não tive, mas foi bom eu não ter tido... por que agora lhe dou um valor especial, quase espiritual.

Naqueles dias já tínhamos começado o projeto da ponte. E embora novas técnicas fossem inventadas logo após a guerra, e fosse moda construir pontes mais funcionais que belas - isso adiantava as coisas - a nossa pequena ponte seria à moda antiga, arqueada, revestida em mármore e com floreios entre as carrancas. Esforcei-me para desenhá-la com beleza e praticidade, imiscuindo-se na paisagem, quase que como algo natural. Eu gostava de pensar que construía algo útil, algo que ligava as pessoas, que encurtasse as distâncias, enfim – colegas meus diriam que sou epicurista demais, um termo que hoje pode ser traduzido por "viajando" demais – mas é assim que eu pensava, na verdade, ainda penso. Algumas pessoas passam a vida inteira tentando ser útil apenas para si mesmas, e ainda se orgulham disso. Por que eu deveria me envergonhar de tentar ser útil para os outros, mesmo que fosse apenas em devaneios?

O rio que ela deveria atravessar era relativamente próximo à nossa casa, um dos braços do Trent river, não mais do que dez minutos de automóvel, passando por uma estradinha a beira mar, agradável e vazia. Os motoristas evitavam passar por ali, já que ela era calçada de pedras e não fazia muito bem para a suspensão de seus automóveis caros, mas nem suspeitavam o que perdiam, pois os que a tomavam, sobretudo nas manhãs mais claras, sentiam que estavam fazendo um bem danado para as suas almas. Era por ali que clara levava o almoço para mim todos os dias, na verdade eu poderia comer em algum restaurante qualquer, e de fato havia bons restaurantes lá. Mas eu permitia que ela trouxesse, era uma desculpa para tê-la sempre ao meu lado e todas as manhãs. Pra mim ela sempre foi como as musas que os poetas tanto cantam. Se eu fosse um poeta, teria escrito um soneto para ela.

E é aqui que a história estranha e fascinante de uma vida, tem o seu começo. Pois que num desses dias que se devem esquecer, pois carregá-los sempre na memória não pode fazer bem a ninguém, um dos meus amigos me disse, meio encabulado e sem jeito, que ela havia sofrido um pequeno acidente, nada com que eu devesse me preocupar, mas que era melhor eu ir vê-la.

Corri afoito pela estreita viela, vizinha a estrada - meio cego eu acho - pois o meu coração batia forte e vacilante, e o sangue pareceu faltar às minhas pernas. Mas logo que cheguei, tranquilizei-me de imediato, e penso ter até rido da situação, pois vi que ela havia apenas subido de leve no passeio e atropelado uma pequena árvore que tentava brotar na calçada. Parecia mais uma dessas “barbeiragens” de mulher (que me perdoem as mulheres), o meu alívio não durou muito, pois logo percebi que Clara estava desacordada. O impacto não poderia ter feito isso. A levamos para um hospital próximo, enquanto ela acordava, para o meu conforto:

London
Enviado por London em 03/07/2015
Reeditado em 03/07/2015
Código do texto: T5298051
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