A lenda da Abadia de Southanger
(Excerto de meu diário de viagens)
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Acordei como se meu cérebro houvesse sido substituído por uma massa de chumbo derretido – a cabeça pesava-me sobre o pescoço, e latejava com uma dor que julguei então capaz de levar-me à loucura. Sentia-me como se houvesse dormido por um século inteiro após meu desmaio nos Fens e aqueles horríveis, horríveis pesadelos que jamais cri ser capaz de engendrar, muito menos descrever sem sentir um enorme desgosto. Quantas vezes não pensei, conspurcado de pesar e nojo, em atirar este diário ao fogo, e nunca mais escrever qualquer palavra…! No entanto, registro estas visões infernais exatamente como aconteceram, sem nada acrescentar-lhes ou retirar-lhes, para que possa expiar ao menos em parte os vários pecados que hei cometido até então – e quantos mais cometerei…?
Um leve odor de mofo impregnava-me as narinas. Com minha consciência tendo retornado a um nível aceitável, resolvi analisar meus arredores: discerni estar deitado num catre simples, mas bastante confortável e asseado, rente a uma grande janela de onde podia enxergar os Fens em sua majestosa e, ao mesmo tempo, enigmática vastidão. A um canto havia uma singela escrivaninha com uma cadeira – pude ver alguns livros no topo da escrivaninha, e tentei levantar-me para enxergá-los melhor, mas um acesso de tontura não deixou-me e mais uma vez tombei em meio aos lençóis. Um antiquíssimo guarda-roupa encontrava-se oposto à escrivaninha, e à minha frente uma gasta porta de madeira abria-se ao desconhecido. Sobre minha cabeça, na parede, um crucifixo estava pendurado.
Acreditei ainda estar sonhando, e dentro em breve mais alguma criatura demoníaca haveria de acossar-me. O que era aquele velho quarto, e como chegara lá? Lembrei-me dos funestos conventos sobre os quais lera nos velhos romances góticos que tanto amava no passado, e pensei sarcasticamente que havia sido carregado a um deles com o intuito de pagar por minhas faltas pelo restante da existência – a brincadeira, no entanto, tornou-se séria e trouxe-me grande consternação quando a porta de minha cela abriu-se, e um estranho encapuzado adentrou o recinto.
Nunca fui uma pessoa supersticiosa – desde muito jovem já sabia que, mais do que qualquer espectro ou monstro, era à própria humanidade que devia temer. As impressões daqueles pesadelos, porém, continuavam vívidas em minha mente, e naquele estado seria capaz de estremecer ante uma simples mosca. Aquela figura, trajada em cinza da cabeça aos pés, avançava vagarosamente em minha direção, e numa das mãos carregava uma taça com um líquido marrom. Cogitei pular da janela a fim de escapar daquele estranho lugar – muito provavelmente tivera um relapso, e alucinava novamente, foi o que tentei inculcar em meus pensamentos; mas, se era este o caso, como a dor que sentia era tão real? Novamente fui impedido de levantar-me da cama, e optei por aguentar estoicamente qualquer outra punição a mim infligida, pois inegavelmente o merecia.
A figura encapuzada sentou-se na beira da cama e, com cuidado, estendeu a taça em minha direção.
“Beba”, disse-me. Sua voz era masculina e gentil; nada parecia ter de sobrenatural. “É brandy; haverá de aquecê-lo após ter passado a noite no relento.”
Tomei a taça de sua mão, mas ainda sentia-me desconfortável por não poder enxergar o rosto de meu interlocutor. Talvez percebendo isto, ele abaixou seu capuz e encarou-me fixamente – era um homem de, aparentemente, cinquenta e poucos anos, mas sua compleição ainda demonstrava alguns traços de jovialidade. Era calvo, e uma longa barba castanha cobria-lhe o queixo; um ou outro fio grisalho podia ser visto aqui e ali, após um exame mais minucioso. Seus olhos eram de uma cor azul penetrante, tresandando um misto de sapiência e amabilidade. “Beba”, repetiu, “pois temos muito sobre o que conversar.”
Finalmente assegurado de que não corria mais perigo, bebi a taça de uma golada só; era um brandy fortíssimo, que incendiou cada fibra de meu ser, expurgando a dor que sentia. Encontrando forças para falar, agradeci àquele bondoso homem:
“Obrigado por interessar-se por meu fado… mas devia ter-me deixado morrer. Minha vida nada pode trazer-lhe de bom, como não trouxe a tantos outros que conheci.”
“Pude bem ver que sua alma carrega negros pecados”, disse o homem num tom de sincera comiseração. “Enquanto carregava-lhe, seus gritos cortavam o ar gelado da noite… Nada compreendi de sua língua, no entanto – mas a agonia possui seu próprio idioma universal. Quem é você, desafortunado estrangeiro, que a meu ver é tão jovem e sai em busca da morte como se ainda não tivesse mais tantos anos de vida e aprendizado, nos quais pode sanar suas faltas pela fé e pela esperança em Deus, recobrando o frescor apropriado da mocidade e merecendo uma abençoada velhice desprovida de preocupações?”
“Fé e esperança em Deus…!”, repeti tristemente.
“Como!?”, o homem indagou, visivelmente pasmo e triste. “Assim tão jovem e descrê de Deus?”
“Talvez ainda creia em Deus, sim”, respondi-lhe, contemplativo. “Mas penso às vezes que é Deus que já não mais crê em mim.”
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Desencantado com as vaidades do mundo, Mervyn deixara uma vida confortável na cidade próxima de — para passar o resto de seus dias residindo como um asceta nas ruínas da Abadia de Southanger – uma das várias que existem naquela região da Inglaterra. Como vi depois, parecia maior por dentro do que por fora, com vários cômodos (alguns inabitáveis devido à ruinosa ação do Tempo), salões, corredores formando um verdadeiro labirinto no qual, antes de acostumar-me, perdia-me corriqueiramente, tendo eu que gritar por Mervyn, que sempre vinha acudir-me às gargalhadas.
Meu amigo era de trato agradável, contemplativo sem ser melancólico, e tinha uma fé em Deus que nada devia à minha antes das incontáveis desgraças que a enodoaram – esforçava-se bastante para reacendê-la em mim, e visivelmente se abatia ao fracassar, mas não insistia no assunto em demasiado. Era bem-humorado e às vezes gostava de contar divertidas anedotas a respeito de seus conhecidos e fatos da região – “Deus não inventou o riso para permanecer inutilizado”, é o que dizia.
“Tem muita sorte de vir parar aqui”, disse-me um dia. “Se é de fato escritor, gostará de ouvir a lenda desta abadia; quem sabe o inspire a algo. Por mais que não seja a mais famosa dentre as que estão espalhadas por aqui, não deixa de ter uma boa história, e não gostaria que se perdesse. Por que não leva-a consigo de volta a seu país?”
“Em falta de uma explicação plausível, um mito é sempre um divertido substituto”, respondi. “Qual é a história?”
E começou então meu amigo nos seguintes termos:
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Como é bem-sabido, o homem foi agraciado com duas cabeças: a de cima e a de baixo. A primeira serve para a reflexão, e a segunda… acho que não é preciso aprofundar-me a respeito. No entanto, há casos em que ocorre um certo desregramento nas faculdades humanas, e muitos acabam utilizando a cabeça de baixo para pensar, geralmente levando a resultados catastróficos. Isto é frequente entre a nobreza, por alguma razão – talvez porque, em sua busca constante por dinheiro e ambição de aparentarem ser o que não são, pouquíssimos são aqueles que optam por passar o tempo com atividades intelectuais e proveitosas.
E exatamente assim era Lord Charles de Vere, um dos maiores libertinos que a Inglaterra já vira. Descendente de uma das famílias que acompanharam Guilherme, o Conquistador em sua jornada, aparentava nunca ter usado sua cabeça de cima uma única vez na vida: era extremamente arrogante, cruel para com seus lacaios e qualquer um que julgava ser-lhe inferior, glutão, beberrão e, acima de tudo, obcecado por prazeres carnais. Diz a lenda que Lord Charles gostava de seduzir jovens moças, deflorando-as com métodos que fariam até mesmo Sade cobrir os olhos enojado se os presenciasse – mas o que se poderia fazer? Tanto naqueles longínquos tempos como agora, quem está errado mas pode dar-se ao luxo de pagar mais sempre vence… E seguiria ele vivendo sua vida de perversidades ileso e sem demonstrar quaisquer remorsos por anos, e anos, e anos – até que seu carma acumulado finalmente decidiu pedir-lhe contas.
Era uma noite escura e tempestuosa como aquela dos contos de terror, para contribuir ainda mais com a atmosfera. Todos no palácio de Lord Charles dormiam, menos ele próprio – olhando as ruas pela janela de seu quarto enquanto se embebedava com vinho, provavelmente entretinha mais algum plano maligno com o intuito de prejudicar a algum rival, ou cogitava modos de enriquecer ainda mais, ou refletia sobre qual pobre moça da cidade haveria de desvirginar em seguida; ou ainda mesmo todas as três coisas juntas, pois neste ponto a lenda não é específica. O que se sabe, porém, é que seus pensamentos foram interrompidos quando um de seus criados bateu-lhe à porta.
“O que foi?”, gritou ele com raiva.
“Tem visitas, my lord”, o criado respondeu-lhe.
“Visitas! A esta hora da noite, chovendo a cântaros! Despeça seja lá quem for, quero ficar a sós.”
“Já a deixamos entrar, my lord…”
“Idiota! Imbecil! Poltrão!”, esbravejou Lord Charles, não deixando o criado terminar a frase. “Haverei de demiti-los todos amanhã mesmo! Expulsarei este mendigo imundo de meus domínios imediatamente!”
“Mas não passa de uma pobre garota, my lord…!”
“Uma garota!”, o nobre repetiu, menos zangado. “Já que é este o caso… Pois bem. Vejamos quem e como é esta tal garota.”
Lord Charles foi escoltado pelo criado até o hall de entrada, onde de fato esperava uma garota. Estava encharcada dos pés à cabeça, e suas vestes simples indicavam que era de condição humilde. Não aparentava ter mais que 16 anos – alguns relatos dizem que era loira, outros, morena; há também quem discuta sobre a cor de seus olhos, se eram castanhos, verdes, azuis, mas todos unanimemente concordam que era muito, muito bela, e o libertino, que tinha predileção por menores de idade, mal podia ocultar seu sórdido contentamento ao contemplá-la.
“Peço perdão por minha intromissão”, explicou-se candidamente a garota. “Sou uma pobre camponesa da cidade de — e estou caminhando há três dias para chegar a Canterbury, onde pretendo orar sobre o túmulo de São Tomás Becket pela saúde de minha cara família, impedida de trabalhar devido a uma doença. Acabei desviando-me de meu percurso devido à chuva, e vim dar neste lindo palácio, que disseram-me pertencer a Lord Charles de Vere, uma das almas mais caridosas da Inglaterra. Nada posso oferecer-lhe como paga por minha hospedagem, mas se deixar-me ficar o acrescentarei às minhas orações, e sei que Deus lhe abençoará grandemente.”
“Que nada, minha criança!”, disse-lhe Lord Charles, sem refletir muito a respeito da história que a menina lhe contara e ansiosíssimo para violá-la. “Alegro-me muito de recebê-la em minha casa, e mais ainda por fazer o bem a quem esteja necessitado. Assim que o Sol raiar mandarei uma de minhas carruagens levá-la a seu destino para que não se canse tanto, e darei-lhe algum dinheiro que, espero, seja de utilidade a você e sua família – até lá, a casa é sua, e a alojarei em um de seus melhores quartos. Deve estar com sede depois de uma viagem tão árdua; aceita um bocado de vinho para fortificar-se?”
“Agradeço-lhe sua hospitalidade”, respondeu a menina.
“Ótimo! Haverei de buscar-lhe uma taça, enquanto meus criados trocam estas suas roupas molhadas. Levem-na ao quarto que fica ao lado do meu!”, ordenou ele. “Logo estarei lá com o vinho.” E, assim, enquanto a camponesa era guiada até o quarto, Lord Charles seguiu ao seu armário secreto que a lenda não diz onde fica (afinal, é secreto), onde guardava potentíssimos sedativos. Após pingar uma ou duas gotas de um deles numa pequena taça com vinho, partiu para ver a menina, que já estava vestida com uma elegante camisola e sentada na cama.
“Espero que goste de suas acomodações”, interpelou-a o vilão, oferecendo-lhe o vinho adulterado. “Fiz-lhe esperar demais?”
“Não”, replicou ela, tomando a taça de suas mãos e bebericando-a polidamente. “É um quarto encantador; demasiado luxuoso para alguém como eu. Não importo-me de dormir com os criados…!”
“Não precisa ficar acabrunhada”, cortou-a Lord Charles. “É o mínimo que posso fazer por um de meus semelhantes – fui abençoado com esta vasta fortuna, então por que não compartilhá-la?”
“É uma alma muito caridosa, Lord de Vere”, disse a menina, já sonolenta devido aos efeitos do sedativo. “Deus deve amá-lo muito.”
“Estou certo que sim. Vejo que está com sono; deixarei-a dormir. Tenha uma boa noite.”
“O senhor também, Lord de Vere”, suspirou ela, e adormeceu no mesmo instante.
Feliz por desfazer-se de sua máscara de virtude e por ter mais uma vulnerável vítima à sua frente, Lord Charles exultava interiormente em mórbido triunfo. Com todo o cuidado, despiu a garota adormecida e admirou suas formas juvenis; acariciou-lhe de leve os cabelos, o rosto, os seios, as partes íntimas, achando tudo muito bem-feito. Não muito tempo depois ele próprio tirou suas roupas, e preparou-se para manchar a honra de mais uma virgem. No entanto…
Tão logo rompera-lhe o hímen, sentiu uma dor lancinante em seu membro; olhando para baixo, constatou que fora arrancado, e uma enorme poça vermelha manchava o leito. A garota despertara, observando Lord Charles com um misto de desprezo e graça, mas não foi isto que mais o espantou, e, sim, o inexplicável fato de sua vulva ter se metamorfoseado numa repugnante boca repleta de monstruosos dentes pontiagudos.
“Com certeza já deve ter ouvido falar do mito da vagina dentata, não?”, perguntou-lhe a moça, com uma voz carregada de sarcasmo e malignidade. “Prazerosamente proclamo-lhe que, não só não é um mito, como também sou eu seu inventor.”
“Quem é você…? O que é você…?”, era a única coisa que Lord Charles podia repetir, quase num sussurro, de tão assustado.
“Ora! Sou aquele mesmo a quem serve. O diabo!”, exclamou ela. “E verdadeiramente sua conduta muito me agrada – entretanto, queria deixar-lhe ciente de duas coisas… A primeira é que, ultimamente, o Inferno anda abarrotado de almas, e vem sendo tão trabalhoso torturar a todas elas…! Por mais que seja eu o príncipe do mal, não significa que não sinta cansaço. Já a segunda… Cá entre nós, amigo, tuas perversidades espantam até mesmo a mim. Imagine se o recebesse lá no Inferno! Facilmente roubaria meu posto, e se acha que tenho a intenção de rastejar a Deus e implorar por seu perdão, está muito enganado! Assim sendo, prefiro mil vezes converter uma alma a meu inimigo do que dividir meu trono. Em falta da cabeça de baixo, quem sabe começa a usar a de cima! Pode ser que faça-lhe algum bem.” Com uma ruidosa gargalhada, o Demônio desapareceu numa fétida nuvem de fumaça negra, e os criados de Lord Charles, adentrando o quarto às pressas após ouvirem seus gritos, puderam apenas ver, estupefatos, a poça de sangue que pingava da cama e seu senhor, reduzido a um castrado, transido de medo.
Na manhã seguinte, de fato como Satã previra, sendo capaz de usar sua cabeça de cima pela primeiríssima vez Lord Charles se tornara um homem mudado – pediu perdão por seus pecados, doou quase toda a sua fortuna aos pobres e, com o que restara do dinheiro, erigiu esta mesmíssima abadia, da qual foi o prior por muitos anos, vivendo uma casta e piedosa vida e merecendo adentrar o Paraíso quando veio a Morte para buscá-lo.
E é esta a lenda da Abadia de Southanger – como acontece com toda lenda, é impossível verificar sua total veracidade, mas não se pode negar que é bastante intrigante. Inclusive, certos cronistas mais pudicos garantem que, em vez de ser visitado pelo tinhoso, foi Santa Inês que apareceu ante Lord Charles, privando-o de seu membro de forma menos gráfica e admoestando-o com um prolixo sermão sobre a danação de sua alma e a imediaticidade de sua conversão; o que também explica a construção da igreja dedicada à santa que fica em —, esta muito mais famosa. No entanto, se perguntar a mim, prefiro a primeira versão, por recordar-me de um velho e divertido provérbio de meus tempos de criança:
“O diabo não é tão feio quanto se pinta”.
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