Medo de Dormir

•1•

A rodoviária estava vazia. Eram três da madrugada, não havia muitas pessoas nas plataformas, e as que lá estavam, dormiam ancoradas em suas bagagens, cobrindo-se contra o sereno que invadia o local desprotegido.

De um dos ônibus que acabara de estacionar, vindo direto de São Paulo, desceu Rafaela. Carregava algumas bagagens leves e pequenas, e sobre os olhos, ainda que de noite, usava óculos escuros. Suas olheiras estavam impressionantes, e ela começara a se incomodar com a aparência que adquirira desde a morte de sua mãe. Era uma mulher bonita, de pele bem clara e cabelos bem escuros. Porém, não se preocupava mais em se pintar ou vestir-se bem.

Na porta da pastelaria, dois chineses varriam e enxaguavam os azulejos do chão. Perto deles, estava Gutenberg, seu cunhado. Rafaela se aproximou e o abraçou. Ele cheirava a cigarro, um cheiro forte, enjoativo. Ambos tossiram e se olharam novamente. Rafaela não simpatizava muito com ele. O achava ranzinza e primitivo demais. Sem contar, que havia suspeitas de que batia em sua irmã. Sua pobre irmã.

Letícia e Rafaela sempre foram muito amigas. Na adolescência, tiveram que se separar. As irmãs Bastos iam se casar, mudar de estado. Rafaela casou-se com um dermatologista, o casamento durou sete anos, e ele foi embora para a Inglaterra. Já Letícia, casou-se com Gutenberg. Um homem que vendia panelas na rua onde moravam. Foi paixão de primeira. Ele era um homem bonito, apesar dos traços fortes, e da barba sempre por fazer, que deixava seu pescoço sempre avermelhado por irritação de pele.

Desde 2009 as duas não se viam. A última vez fora no natal do mesmo ano. Não... na verdade, fora no enterro de sua mãe. Sim, três anos antes. Rafaela continuou morando em São Paulo com sua amiga, e veio ao Rio se despedir de sua mãe. Letícia era quem morava com ela. O enfarto fora fulminante. Irmãs sem pai, que sumira quando ainda crianças, a mãe era a ligação entre as duas. Falavam-se por telefone, whatsapp, às vezes por vídeo-conferência no Skype, mas cada dia essas conversas foram ficando mais escassas. Elas estavam se afastando. Talvez pelas lembranças que uma trazia à outra. Talvez pelo clima de dor que as duas irmãs sentiam ao se lembrar de sua mãe. Ou da infância linda que tiveram, morando no bairro de Madureira. As duas pareciam duas estranhas.

Contudo, um baque fez com que Rafaela voltasse ao Rio. Letícia encontrava-se em casa, deitada sobre uma cama por longos 3 meses. Não falava, não se alimentava direito e seus olhos pareciam sem vida. Fora de repente. Gutenberg explicou rapidamente no caminho, dentro de seu carro, indo em direção à casa onde moravam.

- ... E de repente, ela deitou e não se levantou mais, Rafa. Os médicos dizem que é depressão. Ela está tomando tarja preta há meses... Mas num melhora. Você foi minha última esperança. Eu preciso trabalhar... Não posso...

Rafaela assentiu com a cabeça, e encostou a testa no vidro da janela. Podia ver o Cristo Redentor dali, com uma iluminação avermelhada. Sentia saudades do Rio. Mas não queria voltar tão cedo.

A casa continuava a mesma. Duas colunas na porta, uma grade avermelhada, que podia se confundir com a ferrugem. Rafaela sentiu um soco no estômago. Aquela casa era uma facada em seu coração. Seu cunhado pegou as malas e entrou pelo quintal. Ela reparou que aquele lugar precisava de uma limpeza. Folhas secas espalhadas, muita poeira, e alguns passarinhos mortos, espalhados pelo chão. Mas o cheiro. O cheiro continuava o mesmo. Cheiro de terra molhada e mato. Nem parecia Madureira.

- O sol já vai nascer. Eu preciso pegar um cliente em Cascadura, e depois levar uns móveis com ele lá pra Jacarépaguá. Você pode se ajeitar, a geladeira tem fruta, arroz de ontem... Se quiser eu...

- Onde ela está? – perguntou timidamente, só agora retirando os óculos do rosto.

Gutenberg respirou fundo e colocou as malas sobre o braço do sofá com o forro rasgado.

- Ela está no quarto de vocês... Mas... Mas... Rafa, se prepare. Sua irmã não parece mais com sua irmã. Ela perdeu toda a força vital, aquele sorriso, aquele olhar...

Enquanto falava, ele andava e ela o seguia pela casa escura. Lá fora, ouvia-se os carros passando por cima de um buraco de obra da prefeitura. Rafaela segurava o choro. A casa parecia a mesma. Até a cor da tinta da parede era o verde-abacate.

- Acho melhor abrir um pouco as cortinas do que acender a luz. – disse Gutenberg indo em direção às janelas.

Rafaela podia ver perfeitamente uma silhueta sentada na cadeira. Achou estranho, afinal, ele dissera que Letícia não se levantara. Mas, quando seu cunhado abriu a janela, ela perdeu o controle das pernas pelo susto tomado. Não havia ninguém na cadeira. Sua irmã na verdade estava na cama, com uma magreza cadavérica, quase sem cabelos, encarando-a com um olhar assustado.

-Eu disse que não seria bonito! – brincou sadicamente Gutenberg, logo depois saindo do quarto.

Rafaela olhou novamente para a cadeira. Tivera a impressão real de que alguém estivera sentado ali. Mas resolveu se aproximar da irmã. Ajoelhou-se ao seu lado, e começou a chorar compulsivamente. Fechou os olhos e começou então a rezar junto dela, sem notar que no umbral da porta, a silhueta estranha parecia observá-la.

•2•

O bairro parecia diferente. Muito movimento, muitas pessoas, muitos vendedores entupindo as calçadas. Rafaela fora ao mercado comprar algumas coisas que precisava. Esquecera seu desodorante, filtro solar, e precisava comprar iogurtes para a sua dieta.

Ao chegar em casa, fora ao quarto constatar de que sua irmã ainda se encontrava lá deitada, e viva. Tinha a impressão otimista de que a qualquer momento Letícia se levantaria e a abraçaria matando a saudade.

DOIS DIAS DEPOIS...

•1:00am

Copos caíam. O barulho dava a impressão de que um trator destruía a cozinha. Rafaela se levantou assustada e correu para o cômodo. Nada! Não havia absolutamente nada. Porém, sentia algo estranho. Um aperto no peito. Formigamento nos braços. Encheu um copo com água, e bebeu o liquido de uma só vez.

Sentiu alguém a espreitando. Virou de supetão, e pode ver um vulto passar na porta da cozinha. Sentiu-se boba. Sempre tivera medo de fantasmas, e sua mãe costumava a contar algumas lendas urbanas envolvendo aparições. Ela então encheu o copo com mais água e foi até a sala.

Ao sentar-se no sofá, ela levou outro susto com o barulho de chave abrindo a porta da casa. Mas era seu cunhado.

-Sem sono, Rafa? – perguntou ele aparentemente bêbado.

- Sim! Sou daquelas que não conseguem dormir tranquilamente na casa dos outros. Desde criança sou assim.

-Mas essa casa é sua também! Sua e da Letícia... – comentou sentando-se ao lado da cunhada. – Sua irmã andava estranha. Como pode, né? Depois de tantos anos, a morte de sua mãe afetar a Lelê dessa,maneira?

- Letícia sempre guardou muita coisa. Era difícil ela se mostrar estressada, ou responder com sentimentos. Tem uma hora que o limite estoura, e a cabeça pira!

Gutenberg retirou uma garrafa de vodka de dentro de uma bolsa. Desatarraxou a tampa, e bebeu um pouco.

- Eu queria vender essa casa. Ela chegou a cogitar também. Essas lembranças matam a felicidade. Quando não sabemos entender a morte... Sei lá... Olha eu me metendo no assunto de vocês!

- Foi de repente mesmo que ela ficou assim? Digo... Ela não demonstrava? Não... Estava se mostrando triste?

Ele bebeu mais um gole da vodka. Tossiu e limpou a barba que estava muito molhada. Seu pescoço estava mais vermelho que de costume.

- Ela andava estranha. Balbuciando... Falando coisas sem sentido. Sua irmã estava violenta. Chegou a me agredir diversas vezes, cismando que eu tinha outra mulher na rua... Ora! Eu? Não dou conta de uma, vou dar conta de outras?

Rafaela sentiu-se desconfortável. Era como se tudo que ele falasse fosse encenação.

- Rafa, eu sei que muita gente diz que eu batia em sua irmã! Mas isso é mentira! Letícia é uma mulher de gênio forte, autoritário... Ah! – parou lembrando-se de algo. – Certo dia, eu cheguei em casa, e ela estava conversando sozinha. Me aproximei devagar, e quando a toquei, ela avançou em mim! Disse que eu era um monstro, e que eu não devia me meter, quando ela estivesse conversando com a sua mãe... Sua falecida mãe.

O desconforto aumentou. Imediatamente ela se lembrou da silhueta, do barulho dos copos, e desviou os olhos para o quarto de Letícia. Era como se ali tivesse algo estranho, apenas espiando seus passos. E de algum modo, fazendo mal a todos na casa.

•3•

•07:00 am

O despertador do celular ainda não havia tocado, mas desde às cinco da manhã, Rafaela estava de olhos pregados no teto. O sono fora embora após o pesadelo. Uma cena onde sua mãe caía de um precipício, e puxava Letícia junto com ela. Imóvel, não podia se mexer para salvar nenhuma das duas. E ao se inclinar para ver melhor, podia ver uma mão de fumaça puxar as duas para o fundo.

Acordou. Apenas os barulhos dos grilos e de alguns carros passando na porta da casa. Resolveu se levantar e fora à padaria na esquina após duas horas perdida em pensamentos e lembranças.

Na padaria, sentou-se ao balcão e tomou café por ali mesmo. Pediu dois pães na chapa, e um café com leite. Lembrou-se do sabor do café com leite de sua mãe. Docinho, suave, em nada se parecia com aquele amargo e cítrico que tomava. Ao terminar, fora até o caixa pagar. Notou que a moça do caixa, uma senhorinha de mãos trêmulas a encarava com curiosidade. Pensou ser culpa de suas olheiras.

- Você... É a filha de Madalena, não é, minha filha? – perguntou enquanto contava o troco.

Rafaela sorriu e concordou com a cabeça.

- Nossa! Tu é a cara dela! Estou arrepiada...

- A senhora conheceu minha mãe?

- Sim! E vocês também!... Aliás, sua irmã vivia lá em casa com minha filha... Sempre reclamando do marido, sempre dizendo que queria ir embora daqui e largá-lo...

- A Letícia queria ir embora?

- Sim... Antes de... Antes... – A senhora olhou para os lados como se o que fosse contar fosse confidencial. – Você tem um minuto, Rafinha?

“Rafinha”. Há quanto tempo ninguém a chamava assim.

Minutos depois, elas estavam conversando nos fundos da padaria.

- E ele batia nela. Vivia chegando tarde, bêbado... Acho que foi assim que ela pirou! Sua irmã estava estranha! Os vizinhos diziam ouvir gritos dentro da casa... E o mais estranho?

- Diga!

- Gritos, inclusive, quando não havia ninguém em casa!... Tem alguma coisa lá dentro. Algo mal, ou algo tentando avisar que... Tá vendo! Chego a me atrapalhar nas palavras.

As duas se despediram. Rafaela correu para casa sem olhar para os sinais, sem olhar para os lados, apenas querendo abraçar sua irmã. Mas ao chegar, o sentimento de repulsa aumentou. Encontrou Gutenberg completamente nu, fazendo amor com o corpo imóvel de Letícia.

- O que você está fazendo, seu monstro? Solte ela! – gritou partindo pra cima do cunhado!

- Ela ainda é minha esposa! E repare! – disse cheirando os dedos. – Ainda fica molhada!

Rafa partiu pra cima dele, mas foi empurrada contra a parede.

- Se ela que tá semi-morta fica molhada... Será que a irmã fica também?

De repente, quando ele ia puxar a cunhada pelos cabelos, um quadro caiu da parede. Assustado, ele a soltou e vestiu rapidamente uma cueca. Mas não parou por aí. As portas do guarda-roupas começaram a abrir e fechar sozinhas, violentamente.

- Olha aí! De novo! Deve ser sua mãe, Rafaela! Diga “oi” para o fantasma! – gritava ele demonstrando não estar assustado.

Rafaela não acreditava no que via. O quarto parecia vivo. As coisas pareciam possuídas por alguma força, e o monstro de seu cunhado observava tudo com admiração.

- Sua mãe deve estar querendo que eu saia dessa casa! Aquela velha vadia! Essa casa só vai sair da minha vida quando eu quiser, caralho!

O corpo de Letícia se suspendeu na cama e flutuou por alguns centímetros.

- Ih, rapaz! Esse efeito é novo! – debochou Gutenberg – Quer saber? Chega desse circo!

Ele então partiu pra cima de Rafaela e a empurrou contra a parede. No impacto, sua cabeça bateu com força contra a cômoda, derrubando algumas fotos, e a deixando desacordada. A última coisa que ela viu, foi o rosto inchado e vermelho de Gutenberg respirando a alguns centímetros de sua boca.

•4•

Sua cabeça latejava. Sentiu o chão gelado sobre suas nádegas, e logo percebeu que estava nua. Assim que sua visão se acostumou com o escuro, pode constatar que estava no banheiro. Suas mãos estavam presas à pia.

- Socorro! – gritava – Socorro!

Gutenberg apareceu na porta do banheiro, sem roupas, e com a parte genital coberta de sangue.

- Olha só, R afa! Você ainda sangra! Parecia que eu estava comendo uma virgem!

Ela sentiu vontade de vomitar. O embrulho no estômago foi ficando intenso. Não acreditava naquilo tudo que estava acontecendo.

- Se eu soubesse que você era assim, tinha me casado contigo. Aliás, acho que tá na hora de essa casa ser minha. Já comi as duas da família. Vou arrumar um jeito, sumo com vocês, e digo que tu voltou pra Sampa com ela...

- Seu monstro! Você deixou Letícia assim! Você é um monstro! Sempre foi! Seu desgraçado... Seu filho da puta sádico!

Gutenberg correu na direção de Rafaela e a segurou com violência pelo queixo.

- Vai tomar no cú! Sua irmã era louca! Sua irmã se achava a espiritualizada! Sempre com papo de forças externas! De seres de luz... Sua irmã era uma mulher chata! Sem sal! Sempre reclamando! Eu não aguentava mais isso!... Um dia ela veio me bater e tentar me expulsar de casa! E tá pra nascer vagabunda que vai me bater ou me humilhar!... Foi só um soco! Um soco bem no meio da cara... Ela se assustou. E a partir daí, foi definhando...

- Você destruiu a vida da Letícia. E ela te amava.

- Foda-se! Amor num paga minhas contas! E mais, tem outras mulheres por aí, num ia ficar preso à uma maluquete. Chamei você aqui pra acabar com essa relação doentia. Matar as duas, sumir com as duas... Ficar livre dessa porra!

Rafaela começou a chorar. Sentiu que seria assassinada. Porém, seus olhos conseguiram reconhecer uma silhueta parada atrás de Gutenberg.

- Eu ia te matar na primeira noite! – disse ele soltando seu queixo – Mas você e esse medo de dormir escroto!... Agora é a hora... Cansei de vocês! Mulheres malucas!

A luz do banheiro se acendeu.

O corpo de Gutenberg foi suspenso no ar. Após isso, começou a ser jogado de um canto para o outro, batendo contra a parede, contra o espelho, contra o vaso sanitário... de repente, caiu de frente para Rafaela. Ele ainda tentou falar alguma coisa, mas antes que conseguisse, foi jogado contra a parede do corredor de frente para o banheiro, e depois, com uma força dobrada, contra a pia.

Com a batida contra a pia, Rafaela foi solta. E, após levantar-se com dificuldades, seus olhos voltaram para a porta. Lá estava a silhueta de novo. Imóvel, parecendo observá-la. A presença então andou na direção da sala.

Assustada e com muitas dores pelo corpo, Rafa foi o mais rápido que pode tentar seguir a sombra que andava pelo corredor. Quando percebeu que ela entraria no quarto de Letícia, aumentou a velocidade buscando força de onde não já não se tinha mais.

Ao entrar no quarto, ficou imóvel. Uma luz branca e intensa havia surgido, e a sombra estava de pé, sobre a cama, diante de sua irmã. A silhueta foi ganhando formas, os cabelos ganhando cores, e ao virar a cabeça, pode se perceber que era Letícia. Uma outra Letícia. E essa deitou-se sobre a outra e sumiu dentro do corpo imóvel.

A luz ficou mais forte. Mais intensa. E então, Rafaela desmaiou.

•5•

UMA SEMANA DEPOIS...

Ainda na rodoviária, Rafaela ajeitou a cadeira de rodas em um canto longe da multidão. Sobre a cadeira, um pouco mais corada, e com uma touca escondendo o cabelo ralo que começara a crescer novamente, estava Letícia.

- Quer alguma coisa, Lelê?

- Dormir! – respondeu com sua voz fraca.

As duas se abraçaram. Letícia ainda sentia dores pelo corpo, porém nenhum dos três doutores que a consultaram sabia explicar o que havia ocorrido. Rafaela também não buscou maiores explicações sobre a tal fora, ou o que sua irmã teria feito para ocasionar os eventos na casa de Madureira.

Gutenberg chegara ao hospital na noite seguinte ao evento, com traumatismo craniano, e perfuração do pulmão, rins e deslocamento de vários membros. Não conseguira suportar as dores e as inflamações. Falecera na manhã seguinte, após todos nos hospital escutarem um grito assustador vir de seu leito.

Rafaela voltou a se vestir e usar maquiagem. Era como se a vida lhe tivesse sido devolvida. Porém, após os eventos, ela não conseguira perceber mais a tal presença, mesmo que essa nunca mais tivesse saído do lado dela.

•••FIM +

Fael Velloso
Enviado por Fael Velloso em 12/06/2015
Reeditado em 12/06/2015
Código do texto: T5274237
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