A Mão Direita do Diabo - part 10
A criatura de pedra finalmente levantou-se de seu leito gelado, trazendo com ela os destroços de gelo e rocha que se despedaçavam a cada movimento, e as águas profundas do lago desciam por seu corpo, feito a cascata de um rio muito caudaloso que viesse de uma montanha muito alta. O rígido ruído angustiante de suas juntas ao se mexerem, despertavam um grande horror em quem os ouvisse, pois feriam os seus tímpanos e as suas almas. Por centenas de anos o engenho de pedra do povo de Agharta permaneceu inerte nas águas congeladas do lago do esquecimento... até que Orfeo viesse, então, importuná-lo...
Com o seu levantar frio e robótico, uma colossal onda de vento se abateu sobre o lago, empurrando a névoa fria como se fosse uma cortina que de repente se abrisse à luz do sol, deixando que centelhas de luz invadissem a paisagem fantasmagórica e se refletissem na superfície vítrea do lago, iluminando o ambiente com um brilho espectral e diáfano.
De pé, e encarando Orfeo das alturas, o mecanismo de rocha e magia impunha o seu descomunal tamanho, frente o pequenino Orfeo. Um terrível silêncio abateu-se sobre o vale... Enquanto a névoa retornava lentamente ao seu lugar... E a sombra do gigante crescesse aos passos do sol...E o vento ia varrendo os flocos de neve da superfície do lago.
E então, um ranger terrível quebrou a monotonia. Eram as mãos da criatura se fechando num punho, enquanto os seus olhos vazios miravam Orfeo. E eis que aquilo veio desabando para cima dele, como uma casa que fosse lançada em sua direção, procurando esmagá-lo!
Um só golpe e grande parte do gelo se partiu, e se Orfeo não possuísse uma alma encantada, os seus reflexos não o teriam salvado naquele dia.
O gigante partiu pra cima dele, lançando lascas enormes de gelo e porções enormes de água, buscando abatê-lo como uma pessoa faz com uma mosca. Mas por mais que se desviasse com sucesso, Orfeo não poderia fazê-lo por muito tempo. Mas a lira de Orfeo poderia ser a sua salvação!
Tocando a lira com toda a sua arte, invocou as Sílfides do vento e do ar, que em seu auxilio vieram em glóbulos de luz azul, a distraírem o gigante de pedra do lago do esquecimento. E eis também que vieram as ondinas das águas, em degraus de gelo e água, que Orfeo galgou até os braços do gigante!
Nunca e jamais os espíritos da natureza vieram em auxilio de um homem antes. Mas ali, naquele dia, trabalharam com Orfeo pela queda do titã de Agharta.
Orfeo agarrou-se como pôde nas reentrâncias do braço de pedra, que como numa escultura, eram adornados num estilo que mesclava o gótico e o barroco, pois que o povo de Agharta amava a arte acima de tudo.
O demônio de pedra não tardou em perceber a sua intenção, e procurou esmagá-lo ali mesmo. Mas Orfeo pulou para o outro lado, enquanto as Sílfides procuravam distrair o titã. Fora um embate épico, e ninguém ali pôde assisti-lo, para quem sabe um dia, contá-lo ou cantá-lo numa historia que embalaria o coração das crianças e dos adultos. Pois o lago do esquecimento não costuma dar um pio sequer, sobretudo sobre feitos grandiosos de heróis improváveis. Mas um camponês desesperado, que um dia vendeu a sua alma, saiu da obscuridade para enfrentar o maior colosso que a Terra já vira. E as suas chances de vencer eram imensas!
E a sua lira amaldiçoada, mais uma vez o salvara, porque a maldição e a benção são lados de uma mesma moeda, depende de quem e como se a usa. Porque ao cair, Orfeo dedilhou graciosamente notas que levaram as Sílfides a buscá-lo, como um enxame de abelhas prateadas, que carregaram o seu corpo até o topo da cabeça do gigante, e lá o pousaram em frente à pedra de Lábara...
O gigante desesperara-se, e Orfeo tocara outras notas em diferentes nuances e escalas, lançado acordes de graça infinitas ao ar, que as raízes adormecidas das árvores que jaziam no solo frio do vale, despertaram, e como longos braços de um polvo, imobilizaram o titã de Agharta como se este estivesse preso a uma rede de raízes retorcidas!
Calmamente, então, Orfeo se dirigiu à flor pétrea a que chamavam Lábara, e a colheu, definitivamente. O gigante então apagou-se, e nunca mais foi dito que se levantara de novo.