816-OS DOIS FILHOS DO RABINO -

Nascidos sob o signo de Gêmeos: sinal de tragédia para um dos dois, como constantemente se lê nas colunas de astrologia, muito consultadas por todos que se preocupam com o futuro. Como se as infinitas coordenadas do futuro (e de outras dimensões) pudessem ser adivinhadas ou previstas.

Contudo, não era matéria que pudesse ser cogitadas pelos gêmeos (nascidos sob aquele signo) Saul e Daniel, filhos do rabino Isaac Ashmil Ben Gariel. O fato é que, tendo ambos recebido a mesma severa educação do pai, tornaram-se intelectuais e dedicaram seus talentos à literatura. Saul, mais adstrito à Doutrina Judaica, especializou-se nas narrativas do velho testamento, no que ainda estava por ser explicado e estudado, escrevendo textos de profunda sabedoria e exibindo o vasto conhecimento nos escritos dos Torá. Daniel, de espírito mais leve e um tanto romântico, aplicou seu talento aplicado também nas escrituras sagradas; contudo, seus escritos eram ficcionais e sua imaginação não tinha limites.

Como eram igualmente bons no que escreviam, alcançaram sucesso. Os artigos, ensaios, e livros de Saul eram citados por muitos estudiosos do judaísmo, e citado em palestras e conferência e até mesmo em reuniões dos Doutores da Lei. Os romances de Daniel tinham tiragens de dezenas de milhares de volumes a cada título e compareciam nas listas de best-sellers internacionais. Nos anos mais recentes, trabalhara na adaptação de seus romances para o cinema, e aventurara-se em quatro peças teatrais que apaixonaram os freqüentadores dos melhores teatros do mundo.

O Rabino Ben tinha imenso orgulho de ambos e não saberia dizer se teria preferência pela obra de Saul ou de Daniel. A ambos distribuía os maiores elogios e os incitava a cada vez serem melhores no que escreviam.

Entretanto nem tudo era tranqüilo entre as relações dos gêmeos escritores. Devido à diferença de personalidades e a especialidade literária de cada irmão, um distanciamento se formou na relação entre os dois. Encontravam-se uma vez por ano, na residência do pai, e a cada vez em que se encontravam, a cordialidade, a compreensão e o amor que deveria existir entre os dois ia-se desvanecendo.

Saul, o erudito, tinha uma certa inveja, pequena a principio, do irmão, cujo sucesso era muito festejado na mídia, esquecendo-se que seu trabalho, pelo seu valor intrínseco era muito mais duradouro e apreciado pela elite da cultura judaica.

Daniel, alegre e bonachão, era sensível ao sentimento do irmão, e procurava por todos os meios, mostrava-se afável com Saul, o qual, por sua vez, de espírito mais fechado, via tais demonstrações de afeto e carinho como provocação e desafio.

Casados e com família numerosa, tinham também, no relacionamento doméstico, muitas diferenças. Daniel residia em Londres se fazia acompanhar pela família em suas viagens. Saul vivia recluso em sua propriedade na no sul da França, enquanto a família morava em Paris, em elegante apartamento ao qual ele só aparecia em trânsito, quando viajava para uma ou outra conferência, ou para tratar das edições de seus trabalhos. Apenas mantinha Luciene, a esperta empregada que cozinhava e mantinha a casa em ordem.

No seu exílio, Saul acompanhava o sucesso do irmão, e cada vez mais a inveja lhe dominava o pensamento, transformando-se em amargura, que por sua vez, desandava em rancor e ódio pelo irmão.

O velho rabino adoeceu. Na visita que a família lhe fez, os irmãos quase não conversaram entre si. Daniel, sensível, percebeu que a antipatia do irmão por ele se transformara em rancor e ódio.

Tenho de fazer alguma coisa para aliviar meu irmão dessa mágoa sem sentido, pensou.

De volta aos seus lares, Daniel pensou em fazer uma visita ao irmão na sua casa no interior da França.

Saul, por sua vez, isolando-se cada vez mais, dispensara até os empregados da propriedade, exceto Lucy, faxineira e cozinheira, vivendo recluso e isolado. Por isso, se surpreendeu quando recebeu uma mensagem do irmão manifestando desejo de visitar-lhe.

E mais surpreso ficou com a sua própria resposta: “Venha, será bem recebido”.

Antes da chegada de Daniel, já havia se arrependido da anuência. Quando o gêmeo chegou, recebeu-o cordialmente, mas sem nenhuma efusão.

Daniel procurou entrar no coração e na mente do irmão, mas encontrou resistência absoluta. Passou então a falar da sua própria vida, suas experiências, seus momentos difíceis, no intuito de despertar a simpatia de Saul.

Que exibido e contador de vantagens, pensava Saul.

A cada nova narrativa, a cada novo fato de Daniel, mais aumentava o ódio de Saul.

— Vamos, você ainda não me mostrou a sua propriedade! – disse Daniel no terceiro dia de sua visita.

— Há! Sim, vou lhe mostrar.

— É bem vasta! E é muito tranqüilo viver aqui, nesta casa no meio do bosque. Os sons da natureza são tranqüilizadores. Você vive calmamente!

—Hoje ao entardecer, quando a temperatura estiver mais amena, vamos sair para um giro. — Prometeu Saul.

Imediatamente lhe ocorreu levar o irmão para o lugar mais isolado do bosque, onde se situava uma pequena lagoa, escondida por ente o arvoredo, à qual ele próprio dera o nome de Lacnoir, devido à cor escura de suas águas. O lago tinha má fama, era considerado um sumidouro, contudo Saul jamais comprovara tal característica do Lacnoir.

As árvores alongavam suas sombras quando os gêmeos saíram para andar pela propriedade. Adentraram pelo o bosque, onde uma suave claridade vespertina envolvia tudo. Saul à frente guiava o irmão na direção da lagoa.

— Cuidado com a passagem. — Avisou Saul, assim que começaram a caminhar pela estreita trilha que margeava a lagoa. – De maneira pensada colocou-se ao lado do irmão que caminhava mais próximo à margem. Procurando segurá-lo pelo braço.

Ambos caminharam alguns metros quando Saul, levando um escorregão, fez com que Daniel perdesse o equilibro e caísse na lagoa.

Saul observou o esforço do irmão e ouviu, sem fazer o menor gesto de socorro, os gritos do gêmeo:

— Acuda-me, Saul! Não sei nadar! Socorro! Soco...

Daniel afundou para não mais emergir.

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A tarde fora límpida, porém a noite chegou com trovões, relâmpagos e nuvens ameaçadoras. Apesar dos comprimidos soníferos que tomou, Saul demorou a cair no sono. Pela madrugada, o barulho da tormenta recrudesceu e a chuva caiu pesadamente.

Estaria acordado ou simplesmente sonhara com um vulto que aparecia na janela, iluminada por raios contínuos? Saul pensou ver um filete de água escorrendo pelo canto das paredes, silenciosamente, e lembrou-se das telhas quebradas que pensara em substituir antes da temporada chuvosa. Mesmerizado, viu o filete engrossar e a água empoçando-se pelo chão do quarto.

O vulto na janela desapareceu. Pensou em levantar-se para fechar a janela. Ao sentar-se, seus pés mergulharam na água, que chegaram às canelas. Aterrorizado, encolheu-se para cima da cama. Olhou para o canto e o filete era agora uma torrente silenciosa que fazia subir rapidamente o nível da água no chão do quarto.

Ele tinha de fazer qualquer coisa urgente! Sair do quarto!

Sentou-se de novo e sentiu a água gelada chegar à borda da cama. Ao mesmo tempo, uma força estranha o empurrou para fora da cama. Caiu de borco. Levantou-se com dificuldade. A água agora estava à altura de seu peito. Debateu-se em direção a porta, mas a água se transformara num lodaçal que o impedia de caminhar. Com a água na altura da boca, sentiu-se preso. Alguma coisa prendia seu pé, impedia-o de caminhar. Gritou pela primeira vez, mas não ouviu o som de seus gritos.

A água cobriu sua boa, entupiu-lhe o nariz. Sentiu quando duas pinças entraram pelos seus olhos e os arrancaram.

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Pela manhã, a miúda senhora Luciene, a única empregada que fora mantida em serviço, não tendo recebido resposta às suas batidas na porta do quarto, abriu-a. O que viu a fez gritar. Correu até a próxima casa e pediu ajuda aos vizinhos.

Eles levantaram o corpo que jazia no chão, com os olhos arregalados, quase saindo das órbitas e a língua estendida para fora, entre dentes fechados numa mordida mortal, e o colocaram sobre a cama.

O único sinal de confusão ou desordem foi uma jarra d’água, tombada sobre a cama, e uma pequena poça de água suja manchando o tapete.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 7 de dezembro de 2013

Conto # 816 da Série 1OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 02/06/2015
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