A IMAGEM DO TERROR.
O sentimento é simplesmente arrasador. É como se uma manopla de ferro rasgasse o peito e começasse a apertar o coração, até reduzi-lo ao tamanho de uma castanha do Pará. Não importa que a gente saiba que esse momento chega para todos nós. Que é tão certo como o nascer do dia, ou a chegada da noite, que um dia todos nós teremos que viver esse momento. Quando ele chega ninguém sabe lidar com ele.
Saber que é inevitável a chegada da morte não a torna menos temível; saber que inevitavelmente temos que envelhecer não faz a velhice menos indesejável. Por mais que a gente saiba e espere, existem coisas, que quando acontecem, doem como se fossem feridas incuráveis porque, mesmo sabendo que são inevitáveis, a nossa mente sempre espera que alguma coisa, no meio do processo, possa acontecer e ser causa de uma sentença favorável, bem diferente daquela que a gente está esperando.
Foi isso que Jordão sentiu quando viu a Mariana com aquela radiografia nas mãos. Sentada na cama, ela chorava silenciosamente. A porta estava fechada para que as meninas não ouvissem o choro. Mas ele nunca batia na porta do quarto para entrar. Afinal era o quarto deles. O quarto onde dividiam as intimidades, onde diziam, um para o outro, as coisas que um gostava que o outro fizesse, onde se cobravam e depois se embolavam, numa fusão de corpos e gemidos que, mais do que qualquer palavra, mostrava o quanto se amavam, se queriam e se entendiam, mesmo depois de brigar. Por isso, diziam os amigos, com uma ponta de surpresa, inveja e até de despeito: “ esse casal parece que nunca briga”. Brigavam sim, mas nunca na frente dos outros. Nem das filhas.
Mas isso agora parecia coisa do passado. Dez anos de um casamento que se diria quase perfeito pareciam que estava próximo do fim. Jordão não conseguia entender o que estava acontecendo com a vida deles. Do seu lado não havia traição, não havia falta de compromisso, não havia sequer a perda de interesse sexual que normalmente ocorre á medida que as parcerias vão envelhecendo. Ele continuava ativo e interessado como nos primeiros tempos da relação, e jamais sonegava carinho para Mariana e as filhas. Dificuldades financeiras também não podiam ser o motivo daquela esfriada que acontecera na relação. Ele, empresário do comércio, tinha construído uma situação financeira sólida e segura, que permitia á família que eles construíram uma existência tranquila, confortável e bem provida de todas as materialidades necessárias ao que o vulgo chama de uma vida com qualidade. Ela, Mariana, formara-se professora, e lecionava meio período em uma escola da municipalidade. Muito mais para se sentir uma profissional e ter algo com que se ocupar, além dos serviços de casa e da educação das duas filhas que tiveram, do que com a necessidade de ganhar dinheiro . Até então, tudo tinha sido perfeito para os dois.
Mas agora aquilo. De repente Mariana esfriara como se uma febre hipotérmica tivesse se instalado no corpo dela e não tivesse saído mais. De uma hora para outra ela começou a evitar as intimidades com Jordão, nção permitindo até que ele a abraçasse. E isso era o que ele mais gostava quando chegava em casa, á tarde, e ela estava na cozinha, preparando o jantar. O abraço que ele lhe dava, pegando-a por trás, beijando o pescoço dela, acariciando-lhe os seios, era como uma senha que identificava o prazer e a satisfação que havia naquela parceria.
Mas agora aquilo. Quando ele chegava e ensaiava o abraço habitual, ela se afastava e saia do alcance dele, simulando necessidade imperiosa de desligar algum aparelho ou atender á um chamado, que só ela escutava, das meninas.
“O que está acontecendo com ela?”, Jordão perguntou-se várias vezes. “Será que ela está achando que eu tenho algum caso fora de casa?”
Só podia ser isso, Jordão concluiu. Para que uma mulher, que parecia gostar tanto do jogo sensual que alimenta a relação de um casal que se ama, esse comportamento era inexplicável e só podia vir da falsa concepção de que ele a estava traindo.
“Será que alguém andou envenenando a cabeça dela com uma mentira dessas?”
Não tinha meios de saber, a menos que Mariana falasse. Mas ela não falava. Quando ele começava a tocar no assunto ela desconversava, fugia, inventava tarefas fictícias, tudo para não falar do assunto. E á noite, quando ele a procurava, era como se ela tivesse adquirido uma profunda aversão por ele, pois ao simples contato da mão dele no corpo dela, ela se afastava como se tivesse sido tocada por um inseto asqueroso.
Já fazia cerca de um mês que aquilo estava acontecendo e Jordão estava no limite da sua paciência. As desculpas de cansaço, dor de cabeça, estresse com as crianças da escola e as filhas, já não colavam mais. Ou Mariana estava doente, ou... Se fosse doença precisava tinha que ser tratada. Se fosse outra coisa... De qualquer modo tudo precisava ser esclarecido, pois daquele jeito não dava para continuar mais.
Foi com essa disposição que ele chegou em casa naquele dia. Mariana não estava na cozinha preparando o jantar, como usualmente fazia. Nem na sala assistindo televisão. “Onde está sua mãe?” perguntou á filha mais velha, que estava deitada no sofá, rolando a tela do celular para cima e para baixo.
“No quarto” respondeu a menina. “Ela está meio esquisita hoje. Passou por nós como se não visse a gente.”
Jordão foi imediatamente ao quarto. Mariana estava sentada na cama chorando convulsivamente. Soube imediatamente o que significava aquela cena. A radiografia, que ela segurava maquinalmente nas mãos, era uma imagem clara da razão de todos aqueles constrangimentos. Pontos esbranquiçados, nodosos, assustadores, se destacavam contra o fundo opaco daquela chapa radiográfica, que se apresentava ali, como se fosse uma sentença de morte que acabava de ser prolatada por um juiz.
Em cima da cama um laudo, assustador, sinistro, assinado pelo médico do laboratório. “ A histologia da mama esquerda indica a presença de células modificadas...”
Jordão nem tentou continuar a leitura. Primeiro por que não entendia a linguagem médica, segundo por que sua intuição já adivinhara o que era aquilo. Foi direto ao final do laudo, onde o diagnóstico fatal, aterrador, bateu direto no seu coração, como se tivesse recebido uma estocada mortal. Mesmo sem entender as palavras que descreviam aquela visão da morte estampada na radiografia, Jordão logo percebeu que aquelas manchas esbranquiçadas eram a verdadeira imagem do terror!
“ Trata-se de um carcinoma ductal do tipo invasor, com alto grau de malignidade...”
“ Eu não quero morrer!” explodiu Mariana, caindo num choro convulsivo, abraçando Jordão com uma força que ele nunca pensou que ela fosse capaz.
“ Você não vai morrer”, disse ele. “ Vamos vencer isso. Você vai ver.” Foram as únicas palavras que ele conseguiu pronunciar naquele momento. Sua mente estava vazia e seu coração parecia ter sido esmagado por uma prensa. Então era isso...
Mariana chorou durante cerca de duas horas, enlaçada pelos braços de Jordão. Molhou toda a camisa dele. Durante esse tempo ele não disse uma palavra. Não cessava de acariciá-la e depositar beijos na sua testa, face, olhos, cabelos. Naquela noite ela dormiu nos braços dele como costumava fazer nos primeiros anos de seu casamento. Como se precisasse de um refúgio para se proteger contra aquela imagem de terror que se instalara em sua mente.
Agora tudo estava esclarecido. Na noite seguinte eles fizeram amor com a mesma satisfação das suas primeiras noites.
Uma semana mais tarde Mariana submeteu-se á uma cirurgia onde a mama comprometida foi retirada e substituída por uma prótese. Depois submeteu-se a um tratamento quimioterápico, que ela suportou estoicamente, apesar de todo o sofrimento que ele representou. Perdeu os cabelos e os recuperou. Em toda essa verdadeira "via crucis" Jordão sempre esteve ao seu lado, dando-lhe todo o carinho, todo o suporte, demonstrando com palavras e atos o verdadeiro amor que sentia por ela.
Não há terror que não se dissipe quando a verdade é revelada. Mariana viveu dezenove anos depois disso e viu seu primeiro neto nascer. Morreu com sessenta e dois anos de parada cardíaca. Jordão ainda está vivo e não se casou de novo. Contou-me essa história como se ela fosse uma história de terror, mas na verdade eu acho que ela é, na verdade, uma linda história de amor.
O sentimento é simplesmente arrasador. É como se uma manopla de ferro rasgasse o peito e começasse a apertar o coração, até reduzi-lo ao tamanho de uma castanha do Pará. Não importa que a gente saiba que esse momento chega para todos nós. Que é tão certo como o nascer do dia, ou a chegada da noite, que um dia todos nós teremos que viver esse momento. Quando ele chega ninguém sabe lidar com ele.
Saber que é inevitável a chegada da morte não a torna menos temível; saber que inevitavelmente temos que envelhecer não faz a velhice menos indesejável. Por mais que a gente saiba e espere, existem coisas, que quando acontecem, doem como se fossem feridas incuráveis porque, mesmo sabendo que são inevitáveis, a nossa mente sempre espera que alguma coisa, no meio do processo, possa acontecer e ser causa de uma sentença favorável, bem diferente daquela que a gente está esperando.
Foi isso que Jordão sentiu quando viu a Mariana com aquela radiografia nas mãos. Sentada na cama, ela chorava silenciosamente. A porta estava fechada para que as meninas não ouvissem o choro. Mas ele nunca batia na porta do quarto para entrar. Afinal era o quarto deles. O quarto onde dividiam as intimidades, onde diziam, um para o outro, as coisas que um gostava que o outro fizesse, onde se cobravam e depois se embolavam, numa fusão de corpos e gemidos que, mais do que qualquer palavra, mostrava o quanto se amavam, se queriam e se entendiam, mesmo depois de brigar. Por isso, diziam os amigos, com uma ponta de surpresa, inveja e até de despeito: “ esse casal parece que nunca briga”. Brigavam sim, mas nunca na frente dos outros. Nem das filhas.
Mas isso agora parecia coisa do passado. Dez anos de um casamento que se diria quase perfeito pareciam que estava próximo do fim. Jordão não conseguia entender o que estava acontecendo com a vida deles. Do seu lado não havia traição, não havia falta de compromisso, não havia sequer a perda de interesse sexual que normalmente ocorre á medida que as parcerias vão envelhecendo. Ele continuava ativo e interessado como nos primeiros tempos da relação, e jamais sonegava carinho para Mariana e as filhas. Dificuldades financeiras também não podiam ser o motivo daquela esfriada que acontecera na relação. Ele, empresário do comércio, tinha construído uma situação financeira sólida e segura, que permitia á família que eles construíram uma existência tranquila, confortável e bem provida de todas as materialidades necessárias ao que o vulgo chama de uma vida com qualidade. Ela, Mariana, formara-se professora, e lecionava meio período em uma escola da municipalidade. Muito mais para se sentir uma profissional e ter algo com que se ocupar, além dos serviços de casa e da educação das duas filhas que tiveram, do que com a necessidade de ganhar dinheiro . Até então, tudo tinha sido perfeito para os dois.
Mas agora aquilo. De repente Mariana esfriara como se uma febre hipotérmica tivesse se instalado no corpo dela e não tivesse saído mais. De uma hora para outra ela começou a evitar as intimidades com Jordão, nção permitindo até que ele a abraçasse. E isso era o que ele mais gostava quando chegava em casa, á tarde, e ela estava na cozinha, preparando o jantar. O abraço que ele lhe dava, pegando-a por trás, beijando o pescoço dela, acariciando-lhe os seios, era como uma senha que identificava o prazer e a satisfação que havia naquela parceria.
Mas agora aquilo. Quando ele chegava e ensaiava o abraço habitual, ela se afastava e saia do alcance dele, simulando necessidade imperiosa de desligar algum aparelho ou atender á um chamado, que só ela escutava, das meninas.
“O que está acontecendo com ela?”, Jordão perguntou-se várias vezes. “Será que ela está achando que eu tenho algum caso fora de casa?”
Só podia ser isso, Jordão concluiu. Para que uma mulher, que parecia gostar tanto do jogo sensual que alimenta a relação de um casal que se ama, esse comportamento era inexplicável e só podia vir da falsa concepção de que ele a estava traindo.
“Será que alguém andou envenenando a cabeça dela com uma mentira dessas?”
Não tinha meios de saber, a menos que Mariana falasse. Mas ela não falava. Quando ele começava a tocar no assunto ela desconversava, fugia, inventava tarefas fictícias, tudo para não falar do assunto. E á noite, quando ele a procurava, era como se ela tivesse adquirido uma profunda aversão por ele, pois ao simples contato da mão dele no corpo dela, ela se afastava como se tivesse sido tocada por um inseto asqueroso.
Já fazia cerca de um mês que aquilo estava acontecendo e Jordão estava no limite da sua paciência. As desculpas de cansaço, dor de cabeça, estresse com as crianças da escola e as filhas, já não colavam mais. Ou Mariana estava doente, ou... Se fosse doença precisava tinha que ser tratada. Se fosse outra coisa... De qualquer modo tudo precisava ser esclarecido, pois daquele jeito não dava para continuar mais.
Foi com essa disposição que ele chegou em casa naquele dia. Mariana não estava na cozinha preparando o jantar, como usualmente fazia. Nem na sala assistindo televisão. “Onde está sua mãe?” perguntou á filha mais velha, que estava deitada no sofá, rolando a tela do celular para cima e para baixo.
“No quarto” respondeu a menina. “Ela está meio esquisita hoje. Passou por nós como se não visse a gente.”
Jordão foi imediatamente ao quarto. Mariana estava sentada na cama chorando convulsivamente. Soube imediatamente o que significava aquela cena. A radiografia, que ela segurava maquinalmente nas mãos, era uma imagem clara da razão de todos aqueles constrangimentos. Pontos esbranquiçados, nodosos, assustadores, se destacavam contra o fundo opaco daquela chapa radiográfica, que se apresentava ali, como se fosse uma sentença de morte que acabava de ser prolatada por um juiz.
Em cima da cama um laudo, assustador, sinistro, assinado pelo médico do laboratório. “ A histologia da mama esquerda indica a presença de células modificadas...”
Jordão nem tentou continuar a leitura. Primeiro por que não entendia a linguagem médica, segundo por que sua intuição já adivinhara o que era aquilo. Foi direto ao final do laudo, onde o diagnóstico fatal, aterrador, bateu direto no seu coração, como se tivesse recebido uma estocada mortal. Mesmo sem entender as palavras que descreviam aquela visão da morte estampada na radiografia, Jordão logo percebeu que aquelas manchas esbranquiçadas eram a verdadeira imagem do terror!
“ Trata-se de um carcinoma ductal do tipo invasor, com alto grau de malignidade...”
“ Eu não quero morrer!” explodiu Mariana, caindo num choro convulsivo, abraçando Jordão com uma força que ele nunca pensou que ela fosse capaz.
“ Você não vai morrer”, disse ele. “ Vamos vencer isso. Você vai ver.” Foram as únicas palavras que ele conseguiu pronunciar naquele momento. Sua mente estava vazia e seu coração parecia ter sido esmagado por uma prensa. Então era isso...
Mariana chorou durante cerca de duas horas, enlaçada pelos braços de Jordão. Molhou toda a camisa dele. Durante esse tempo ele não disse uma palavra. Não cessava de acariciá-la e depositar beijos na sua testa, face, olhos, cabelos. Naquela noite ela dormiu nos braços dele como costumava fazer nos primeiros anos de seu casamento. Como se precisasse de um refúgio para se proteger contra aquela imagem de terror que se instalara em sua mente.
Agora tudo estava esclarecido. Na noite seguinte eles fizeram amor com a mesma satisfação das suas primeiras noites.
Uma semana mais tarde Mariana submeteu-se á uma cirurgia onde a mama comprometida foi retirada e substituída por uma prótese. Depois submeteu-se a um tratamento quimioterápico, que ela suportou estoicamente, apesar de todo o sofrimento que ele representou. Perdeu os cabelos e os recuperou. Em toda essa verdadeira "via crucis" Jordão sempre esteve ao seu lado, dando-lhe todo o carinho, todo o suporte, demonstrando com palavras e atos o verdadeiro amor que sentia por ela.
Não há terror que não se dissipe quando a verdade é revelada. Mariana viveu dezenove anos depois disso e viu seu primeiro neto nascer. Morreu com sessenta e dois anos de parada cardíaca. Jordão ainda está vivo e não se casou de novo. Contou-me essa história como se ela fosse uma história de terror, mas na verdade eu acho que ela é, na verdade, uma linda história de amor.