Portões
Depois
Acho que qualquer pessoa, você, alguém que você conhece, enfim, qualquer um já desejou não estar em determinado lugar num dado momento da vida. Também acho que sou completamente capaz de provar, a todos, o quanto desconhecem a verdadeira essência dessa sensação que invade, de quando em vez, o espírito de alguns. Sim, por que agora conheço de verdade o que isto significa. Daria qualquer coisa (e não tenho muitas) para não estar aqui. Qualquer outro lugar penso que serviria, mas tenho dúvidas se existe “qualquer outro lugar” nesse exato momento, se as coisas lá pra fora da janela ainda são reais, pelo menos do jeito que costumavam ser até o início da noite. Se por acaso o sol decidir mais uma vez se levantar lá do oriente, ainda existir algo parecido com ele lá perto do Japão, deverá amanhecer em breve. Talvez em menos de uma hora. Não sei o que o dia trará consigo, não sei se haverá alguma coisa como o dia novamente, mas enquanto aguardo vou deixar este texto digitado no “desktop” de meu computador. Espero que ele se mantenha íntegro e que essa máquina infeliz, que vive às birras comigo, continue funcionando por algum tempo. A eletricidade parece persistir, ainda existe em alguns pontos do apartamento, nem que seja apenas para troçar conosco. De verdade: parece querer brincar com a gente, aliás, seria ótimo tudo não passar de uma grande brincadeira. Não é agradável digitar um texto num maldito computador que continua a funcionar mesmo com a tomada arrancada da parede. Como todo o resto, isso causa calafrios. Temo mesmo estar ficando demente. O barulho do martelo contra o chão, no quarto ao lado, destroçando o piso e lançando lascas de madeira com cimento para todos os lados, como uma bateria de escola de samba mal ensaiada, é de enlouquecer. Não, eu não quero me tornar um demente, não gostaria de enlouquecer e pretendia viver mais. Muito mais. Mesmo os sujeitos que caminharam para dentro daquelas salas cheias de gás mortal na segunda grande guerra não acreditavam, de verdade, que podiam morrer. Ou acreditavam? De qualquer maneira, tenho sobre as pernas o 45 que foi de meu pai quando ele era um oficial. Ainda restam três balas no tambor e tenho uma caixa com quinze cápsulas no bolso. Não sei se funcionariam, afinal, duas já falharam, apesar de uma ter funcionado muito bem. De qualquer maneira a estatística está contra mim. Entendam, são antigas e eu jamais havia pegado nessa coisa em toda minha vida. Não sou chegado à violência, armas de fogo ou qualquer coisa desse tipo. Mas vou mantê-la aqui no colo. As pessoas podem se tornar perigosas quando estão aterrorizadas, tive muitas provas disso em um curto espaço de tempo.
Apenas receio grandemente ter que usá-la contra minha própria cabeça. Começo a crer que seria capaz.
Antes
I
Um mundo de nuvens negras e pesadas como chumbo pressagiava chuva. Uma torrente. Sabemos que nem sempre é assim, elas aparecem lá atrás das montanhas, no limite do horizonte, raivosas e barulhentas, fazendo com que nos preparemos para ver o mundo se fazer água e, de repente, deixam cair toda a carga em algum outro lugar. Ou simplesmente tomam novo rumo, levando os tambores ribombantes consigo, desaparecendo antes de molharem quem quer que seja. Devo admitir, contudo, que os sítios na internet erram cada vez menos, a meteorologia no século 21 parece, finalmente, ter alcançado um patamar de acertos muito alto. E eles haviam anunciado chuva para o fim da tarde. Um temporal daqueles que merecem destaque e assunto pra muitos engarrafamentos. Resolvi checar a previsão antes de desligar o computador e sair para ir ao mercado. Mas ela deveria vir mais tarde, haveria tempo para que pudesse fazer as compras antes que o céu desabasse.
Enfiei o celular no bolso esquerdo da bermuda, apanhei as chaves que estavam por cima da mesa de jantar. Esquecê-las seria o fim, ficaria trancado fora de casa – irônico, não? – já que Telma trabalha em horário integral. As pessoas custam a acreditar, mas trabalhar em casa logra algumas desvantagens. Você não pode, por exemplo, esquecer as chaves enquanto vai às compras para o jantar informal engendrado pela mente ardilosa de uma esposa cansativa que pretende impressionar o chefe. Seria o fim – logo o responsável pelo farnel. Apenas o próprio desfecho da noite me parecia tão temeroso quanto uma falha indesculpável desse calibre. Não conheço maneira mais rápida e fácil de ficar enfastiado antes da meia noite: receber aquela turma para um encontro informal regado a vinho. “- Sabia que lembraria do vinho, Motta. Nunca mais esqueceu, não é verdade? Um bom jantar não pode ser apreciado com cerveja. Sempre digo isso, minha mulher sabe”.
Qualquer um sabe disso. O imbecil nunca parou de repetir a mesma ladainha. E então, como num ensaio muito bem coordenado para uma estréia teatral, todos abrem um sorriso forçado e tocam os copos cheios do líquido grená. Minha esposa quase babando (a única que não precisou forçar aquele sorriso), como se Brad Pitt houvesse encarnado no centro de minha sala de jantar e decidido que Telma seria a nova musa a estrelar uma película milionária a seu lado. É de se destacar que o desmiolado do Maciel (o chefe dela) não leva nenhum cacoete para astro de cinema e acredito que deva existir uma grande diferença entre o salário de uma dessas musas de cera para o cargo de supervisora de vendas para a região sudeste – pretendido por Telma. E enquanto engolimos o estrogonofe ou a Lasanha, ouvimos Renato e Jandira - amigos de minha esposa - deslindarem elogios pré-combinados sobre a capacidade, sagacidade e lealdade dessa mulher admirável, que mereceria, sem dúvida, o cargo pretendido.
Ao fechar a porta atrás de mim com a lista de compras dentro do bolso quase senti pena. De mim mesmo.
II
Tomei a direção das escadas. Isso me fazia bem. Passo muito tempo à prancheta e, depois, mais algum debruçado sobre a tela do monitor do PC lutando para conseguir transpor para dentro da maquininha idéias arquitetônicas. Sempre sentado. Usar as pernas fazia-me sentir um representante do grupo “homus erectus” novamente e causava impressão de que estava realmente me exercitando. Segui descendo os sete andares e quando alcancei o terceiro, consegui escutar os murmúrios que vinham do térreo. Foram crescendo à medida que alcançava o segundo, o primeiro e tornaram-se aquele uníssono tântrico, trespassado ora por sussurros, ora por palavras de ordem quando cheguei ao andar térreo. Em frente à porta do 102, o apartamento da velha louca, o troar crônico daquelas vozes parecia querer hipnotizar.
- Nós os conhecemos. Chamamos por eles e eles nos ouvem. Devemos temer?
Mantra interrompido - vozes respondendo em conjunto:
- Não, nada nos causa temor. Não precisamos ter medo.
- Para os que nos ajudam a abrir os portões, chamando por eles ao matar, sujando a terra escura com sangue vermelho, roubando e dizimando. O que os aguarda? Não percebem que veneram falsos Deuses, fazem guerras e geram ganância. Assim chamam por eles, tanto quanto nós que oramos há muito. O que aguardam esses?
- Expiação!
- Expiação! – A velha falou em seguida ao coro pérfido. Disse uma frase interira depois disso que não fui capaz de entender e então, algo mais ou menos assim:
- Estão tornando fácil nosso trabalho. Chamemos. Chamemos por eles que levarão da terra o sangue dos falsos cordeiros. Chamem por um dos mil nomes. Chamem por um dos mil nomes. – E cada voz disse, quase sussurrando, um nome estranho ao mesmo tempo. Pude escutar algo como Ctulhu, Aegoth entre outros sons desconhecidos. Imaginei as pessoas lá dentro, abaixando o rosto num gesto de reverência e sussurrando, entre dentes, palavras que nomeavam algo indizível.
Há muito que o morador do 101 havia se mudado deixando o apartamento oco como uma caixa de sapatos – jogara finalmente a toalha. A megera desmiolada cada dia enfurnava mais seguidores durante a tarde naquele apartamento e todos, sabiamente, seguiam as regras de uma conduta tolerável. Nunca se ouvia quaisquer ruídos além das 22:00 H e apesar dos sermões acaloradamente irritantes e repetitivos, nada se conseguiu na lei que pudesse impedir o que se passava ali durante as tardes. O ruído não atingia picos absurdos, não havia nenhum tipo de comércio e, para todos os efeitos, os vinte insanos ali dentro eram amigos da velha doente. “Sinal dos tempos”, pensei. Uma louca que apesar de morar num condomínio de classe média, sai por aí a arregimentar um pequeno pelotão que acredita venerar algo muito importante, com alguma missão obscura que cabe tão somente a eles. Quando as coisas não estão boas, em qualquer momento crucial de diferentes nações, surge espaço para este tipo de coisa desviada. As pessoas perdem o prumo, se agarram a qualquer pedaço de madeira lançada no mar tormentoso e acreditam na primeira voz que garanta que suas vidas tornar-se-ão melhores, que as dores insuportáveis do cotidiano, de repente, podem ser apaziguadas.
Ao pisar a calçada, antes da porta da frente fechar-se com a pressão da mola automática, ainda escutei vindo lá de dentro:
- E para os que oram para que se abram os portões? O que terão esses, o que receberão no momento da chegada do soberano e dos semoventes menores?
- Salvação!
III
Uma moça que empacotava as compras no caixa ao lado me encarava durante algum tempo. Era uma morena de cabelos lisos e cheirosos (essa foi a sensação que tive ao olhar a cachoeira negra e lisa que alcançava os ombros), dona de um sorriso que parecia angustiado – sorrisos muitas vezes carregam angústia – aprendi isso. Abriu a bolsa e arrancou lá de dentro duas notas de vinte e uma de dez. Enquanto esperava o troco, desviou o olhar do meu, fitando o outro lado da rua, tentando enxergar o que havia acima e além dos prédios antigos. Pegou o troco, enfiando moedas e duas notas de um dentro da bolsa vermelha, enquanto encarava-me novamente. Nos alto-falantes pendurados no teto a música fora interrompida e o rádio iniciara um plantão de notícias: pessoas baleadas num cerco a traficantes bem próximo daqui. O grande esquema de corrupção parecia ter mais tentáculos que uma lula. Continuavam a bombardear um país pobre e outrora soberano, do outro lado do mundo.
- Não me convida? – A menina que registrava os valores escorregando minhas compras pelo balcão avaliava uma garrafa de “Terracota” diante dos olhos.
- Acho que não gostaria. Quer morrer de tédio?
- Deus do céu, morrer de tédio? Depois da segunda destas aqui acho que ninguém morre de tédio! – Piscou o olho direito enquanto registrava o valor dum naco de queijo amarelo.
Deus parece doar a todas as pessoas pelo menos uma coisa interessante. Mesmo que elas não saibam disso. Essa caixa que trabalhava doze horas por dia e ganhava pouco menos de três salários mínimos mensais recebeu, do todo glorioso, uma dose gentil de simpatia. Gastar minha grana comprando material pra estufar a barriga de idiotas parecia menos doloroso quando ela estava por detrás daquele balcão.
- Deise! Sabia que tem nome de flor? Lá nos Estados Unidos Deise quer dizer Margarida. Sabia disso? Essas que possuem pétalas brancas e delicadas, com um miolinho de gema de ovo! – Estendi a mão e entreguei-lhe uma nota de cinqüenta.
- Acho que se meus pais soubessem disso teriam trocado meu nome – Disse isso vergando o corpo pra trás numa gargalhada gostosa. Peguei o troco e saí carregando três grandes sacolas reforçadas em direção à calçada. Pude observar aquela figura singular começando a registrar os valores referentes às compras de um casal que aguardava na fila logo atrás de mim. Ainda sorria e o tórax corpulento balançava como um boneco num filme de Tim Burton.
Tomei a direita caminhando em direção à esquina. Todo o peso das compras carregado por meu braço direito. Por algum motivo psicológico desconhecido jamais dividi o peso das sacas igualmente pelos dois braços. Carrego todo o peso no braço direito. Assim que ele cansa, passo toda a carga para o esquerdo - não funcionamos logicamente, é fato.
- Aquilo é sinal de chuva?
A morena de cabelos premonitoriamente cheirosos havia emparelhado comigo. Carregava as compras nas mesmas sacas plásticas reforçadas - todas elas no braço esquerdo. Ao me refazer da surpresa respondi:
- É o que parece. Melhor: acho que teremos um belo temporal – Aquele sorriso angustiado que havia monitorado no mercado estava escondido em algum lugar da face morena. Passamos a caminhar lado a lado.
- Já viu nuvens como aquelas?
Volvi o rosto e encarei a moça com cor de madeira. Enquanto caminhávamos, ela apontou com um menear de cabeça aquele tufo algodoado que se movia quase como se pudesse escolher, como se houvesse algum tipo de vida elétrica com vontade própria lá dentro. Avaliei o movimento e a densidade daquelas nuvens chuvosas que tomavam quase toda a linha acima dos prédios mais altos. Lembrei do site na internet que garantia chuva forte para o início da noite. De fato, algo naquela visão parecia diferente, os relâmpagos faiscavam e distribuíam uma cor rosácea pela borda do céu que imitava o interior de uma discoteca e o ruído parecia querer recordar algo ou alguém lamentando uma grande perda. Acho mesmo que nunca havia visto nuvens como aquelas.
- Deve haver uma grande tempestade elétrica ali dentro. Aquelas faíscas nervosas são um espetáculo quase macabro. – Respondi à morena caminhando sempre em frente.
- Pedi para meu filho tapar todos os espelhos da casa com lençóis brancos. Tenho medo que eles atraiam raios. Minha avó sempre disse que podem ser perigosos. Ela já viu coisas estranhas acontecerem quando eles passam por perto.
- Não acredito que nada de mal venha junto com os relâmpagos. A não ser que um azarado esteja estacionado onde um deles resolva despejar aquela carga prateada. Mas isso é tão raro hoje em dia. Já observou a quantidade de pára-raios apontando pro céu acima destes prédios aqui? – Mudei todas as sacolas de meu braço esquerdo, cujos músculos iniciavam um lamento silencioso, para o braço direito. Senti um alívio imediato.
- Não acredita que eles, digo, os raios, sejam capazes de desviar destes anzóis de metal quando bem entendem? Acha que são tão tolos a ponto de sempre cair numa ponta metálica construída acima de um prédio de apartamentos? Eles são tão tolos assim? Esses aí não parecem ser assim. – Ela falou e depois encarou meu rosto. Havia medo nos olhos castanhos. Não sei por que, mas no fundo daqueles olhos escuros vislumbrei temor. Nada com relação a assaltos ou balas perdidas, mas alguma coisa diferente. Estava lá. Foi fácil perceber.
- Eles não têm escolha. A ciência foi mais esperta e os engana. Acabam por se espatifar numa daquelas pontas e descem à terra inofensivamente. Nós ganhamos deles, creia. – Chegamos à esquina em que eu dobraria, fui desviando o caminho devagar enquanto ela parecia digerir minha última frase.
- Acredita mesmo nisso? – A morena pareceu suplicar, com aquela pergunta, alguma coisa que não consegui perceber. Da esquina acompanhava meus passos, ora encarando meu rosto, ora levantando o olhar de encontro ao céu onde aquelas nuvens reclamavam cada vez mais espaço.
- Não sou eu, é a ciência.
- Hummm. – A mulher ainda me fitou durante algum tempo enquanto eu caminhava tomando a direção do prédio. Os olhos escuros que me olhavam mostravam uma sensação bem diversa daquela estampada num sorriso forçado logo abaixo deles. Um relâmpago rasgou toda a borda das estranhas nuvens espessas. Escurecia rápido, a tarde caía levando a luz consigo e as nuvens ajudavam a fazer com que tudo se tornasse escuro mais depressa. Percebi a morena estremecer quando o trovão fez nossos corpos tornarem-se instrumentos de percussão. Ela me encarou novamente demonstrando angústia.
- Ciência. Não há o que temer! – Continuei andando em direção ao prédio resoluto, mas fitei com o canto dos olhos a revolta lá em cima.
IV
- Isso quer dizer que haverá festa? – Da porta do prédio semi-aberta, a velha desmiolada apontava para as compras que eu carregava. Esbarrei na aparição agourenta. – Hoje não é dia de festa. Sei que não é.
- Não, não é festa. Esperamos alguns amigos de Telma para a janta. Nada além. E quanto a seus amiguinhos? Se foram?
- Não. Não se foram. Estão lá dentro. Hoje eles não irão. Devem ficar já que não faz sentido simplesmente ir embora. Não hoje. E não adianta, Motta. Ninguém precisa de um sorriso cínico como esse aí. – A velha liberou um longo suspiro. - Está pronto pra chuva? Já viu aquelas nuvens lá em cima? Já notou ou anda por aí tão entretido consigo mesmo que não notou aquilo lá? – Apesar de ter puxado assunto comigo, mantinha uma expressão quase indiferente. Algo entre cansada e desinteressada, não se importava com minhas respostas. O peso do corpo largo sobre pernas patológicas deveria incomodar, avaliei.
- Percebi. Sinal de chuva mesmo. – Respondi tentando ser lacônico. Forcei passagem empurrando o corpo pela fresta da porta que era, agora, quase toda ocupada pela velha obesa.
- Sim. Pode acreditar. Estou aqui apenas fitando o céu com calma. Vou me juntar aos meus novamente. Logo. Previmos o temporal para essa noite (de quem falava, do serviço de meteorologia?). Olha pra lá!
Ao levantar os olhos, uma sensação tomou meu corpo e tenho absoluta certeza de que nunca antes experimentei coisa igual. Um incômodo verdadeiro, físico, nascia em algum lugar dentro do peito, mas não durou muito. A impressão de que algo revelador estava sendo dito foi quase real. Lembrei da morena amedrontada na esquina.
Ela voltou a falar com expressão cansada: - Está prevista e a data coincide. Hoje vai chover, Motta. E para quem não pode se molhar, não há salvação.
Deveria existir uma cambada de loucos fechados dentro daquele apartamento, logo ali adiante, aguardando o retorno daquela maldizente - a imagem da morena espocou novamente na minha cabeça, junto com o temor que nutria por aqueles relâmpagos estranhos.
– Ouviu o noticiário, Motta? Caos. E há quem venere o caos, além de nós, pobres humanos. Aqueles que aguardam a chuva alimentam-se disso. Vão encharcar tudo.
Finalmente abri caminho e segui corredor adiante. Antes de tomar o elevador ouvi algo. Ela disse baixinho, soando mais como uma constatação que não pode ser negada do que com pregação fanática, enunciada num sussurro que carregava desprendimento. E certeza:
- O único livre de verdade é aquele que não teme a própria morte.
V
Renato havia enfiado uma boa quantidade de torrada com pasta de atum dentro da boca falando ao mesmo tempo em que tentava mastigar: - Se eles não chegarem logo vão ter que saltar do carro no meio do temporal. Fomos obrigados a sair mais cedo de casa para chegarmos antes da chuva, não é Jan?
- Hum, hum. – Jandira respondeu da cozinha, mas tive a nítida impressão que nem escutara o que o marido havia dito. Tagarelava com Telma algo bastante importante, certamente. Talvez o efeito produzido pelo tom do cabelo, combinado ao esmalte recém aplicado.
- Abre logo essa garrafa!
Tomei a garrafa e espetei na rolha de cortiça a ponta do abridor. Enquanto girava, soou a campainha. Cheguei a tremer.
- Puxa, recebemos os primeiros pinguinhos. Tivermos que correr até a portaria. Sorte nossa. – Maciel adentrava a sala com a sutileza de um mamute desgrenhado. – Me pareceram quentes ao toque. Os pingos, entende Motta? Pingos de chuva quentes. Algum miserável deve ter instalado uma ducha elétrica lá em cima. – Deve ter achado essa frase engraçada. Iniciou uma gargalhada que expunha um monte de dentes amarelos e velhos pra fora da boca. – Nunca senti pingos de chuva quentes em toda minha miserável vida. Hei, quem são os malucos lá do primeiro andar? Parece haver um velório naquele maldito apartamento. Existe algum padre morando por aqui, Motta? Era só o que faltava, de verdade. Lara entrava logo atrás dele com passos miúdos. Boazinha demais para esse desafortunado.
Não respondi. Preferi, ao contrário, fechar a porta que havia aberto e continuar o trabalho com o saca-rolha. Segui até à mesa e tomei lugar ao lado de Renato que comia azeitonas. O cheiro quente recendia da cozinha e o congelado que fora posto no forno parecia estar quase no ponto.
VI
- O que falava sobre a chuva assim que chegou?
- Meu caro Renato, dizia a seu amigo que jamais senti um pingo de chuva quente em toda a vida. – Maciel cortou um pedaço de carne, banhando ela em molho vermelho antes de abocanhá-la. – Vinho, Motta! Cerveja, definitivamente, não combina com uma refeição dessas. Sempre digo isso.
- Que ótimo. Ainda bem que decidi pelo vinho.
- A chuva estava quente?
- Apreciei sua decisão. Um bom vinho tinto acompanha uma boa carne à hora da janta. Nunca cerveja.
- Quente? Mesmo?
- Telma me falava ainda há pouquinho, na cozinha, do quanto poderão aumentar as vendas aqui nessa região, por conta de alguns ajustes que ela percebeu necessários.
- Quase comprei cerveja. Por fim optei por esse tinto aqui.
- Sim, quente. Pergunte à Lara. Fala pra ele Lara, acho que não acredita. Pudera, também não acreditaria se não estivesse lá. E não tomei um gole sequer antes de sair. Minha mulher sabe.
- Existem vendedores que estão perdendo muito tempo em áreas que não rendem de verdade. O histórico demonstra isso. Não adianta despender esforços hercúleos para, ao fim do trimestre, o resultado ser apenas razoável.
- Estava mesmo quente como ele falou?
- Foi uma pena ter esquecido de colocá-lo para resfriar um pouco. Estaria mais palatável.
- Enquanto em outras áreas, deslocando-se um pequeno grupo, em pouco tempo teremos uma resposta muito mais satisfatória. Tenho absoluta certeza disso.
- Sim. Senti quando tocaram minha pele. Um iniciozinho de chuva tocou meu braço. Uns três pinguinhos tolos. Mornos.
- Não é uma percepção fantástica? Gostaria de ter essa visão de negócios. Que inveja!
- Puxa... Acho que gostaria de tomar um banho de chuva quente. Deve ser uma coisa realmente insólita.
- Vamos levantar um brinde à brilhante idéia do Motta. Ao vinho! Ah, é claro, ao aumento de vendas no próximo trimestre também.
- Quente! Como uma ducha de verdade?
- Enche meu copo.
- E ainda sabe cozinhar. Um assado de primeira.
- Ao vinho e às vendas!
- Saíram. Eles saíram. Estão saindo, meu Deus do céu. Eu posso vê-los. Aqui. Bem aqui na sala. Em todo lugar!
Nós cinco olhamos para a esposa de Maciel. Todo aquele assunto foi interrompido de forma tão súbita que mantínhamos os garfos cheios de comida suspensos no ar.
- É horrível. Não podiam. Ninguém pode. Eles devem ficar fechados. Pra sempre. Mas abriram. Os portões abriram. “Estamos saindo” – e aqui a voz de Lara tornou-se um urro grave, como se um urso houvesse acabado de aprender a falar - “Avise. Avise a esses aí e depois a todo mundo. Vai chover e os portões se abriram”.
Ela mantinha olhos esbugalhados que fitavam o nada. Como se algum mágico muito poderoso houvesse a hipnotizado mantendo-a sob seu poder. Não percebia mais nada nem ninguém ao redor. A boca abriu, num esgar pavoroso, de onde uma baba gosmenta escorreu junto com carne mastigada e resto de vinho. Tentou balbuciar algo que não pôde ser compreendido e a pele do rosto pareceu esticar, tornando-se lisa como a de uma menina de dez anos de idade, para depois envelhecer novamente. Uma espuma branca parecia surgir lá do fundo da garganta, enquanto o corpo de Lara iniciou movimentos convulsos, debatendo-se contra a mesa, derrubando copos e talheres. Renato e Maciel não esboçaram reação e fui o primeiro a tomá-la nos braços tentando evitar que mordesse ou engolisse a própria língua, enfiando a mão dentro da boca, que então se trincara. Parecia estar sofrendo um ataque epilético e pude perceber o quanto todos demoram a reagir quando algo inesperado acontece. Os gritos das outras mulheres em nada ajudaram. Lá fora o temporal desabou de forma contundente, com um turbilhão de água em pingos grossos e pesados. Antes de a mulher desmaiar de uma vez por todas, no meio daquele ataque neurológico terrível, olhou-me no fundo dos olhos.
E parecia estar enxergando algo muito, muito mais terrível do que meu rosto.
VII
Lara era a mais calma de todos nós. Parecia não acreditar, observando as mãos trêmulas de Telma que limpavam a sujeira acumulada sobre a mesa e espantavam lágrimas que teimavam nascer no canto dos olhos. Fitava incredulamente os rostos pálidos que a encaravam, o resultado que acumulara sobre a mesa. A si mesma, como procurando a prova dos nove. Não recordava absolutamente nada do que acontecera e mantinha-se plácida.
A mesa transformara-se numa maquete de campo de batalha napoleônica. Alguns copos e um prato haviam se espatifado no chão. Maciel triturava pedaços de vidro em lascas cada vez menores ao andar de um lado para outro. Renato tinha sobre o colo o pratinho de azeitonas e colocava uma pra dentro da boca de quando em vez. Os lábios finos, brancos como cera. Janaína procurava ajudar Telma, mas apenas conseguia atrapalhar. Sentado ao lado de Lara, eu observava a cena e o rosto da mulher. Olhei para a janela, onde a chuva parecia imitar um espesso edredom que não admitia que enxergássemos nada além de um palmo adiante lá pra fora. Emitia um ruído ensurdecedor. Apesar da adrenalina em meu sangue ainda provocar sintomas, senti pena de Telma. Acho que de Lara também. O resultado daquilo não estava bonito de ver e tudo o quanto minha mulher havia imaginado parece ter-se concluído de maneira estranha e pateticamente trágica. Pela primeira vez tive absoluta certeza que seguíamos por trilhos distintos, em vagões diferentes. A viagem foi boa enquanto durou, entretanto, um desvio havia sido inexoravelmente acionado em algum ponto.
- Acho que devemos ir. Meu Deus, isso nunca aconteceu antes. O que há, querida? O que há, afinal? – Maciel mantinha o vaivém. Apertava o nó dos dedos fechando com força as mãos.
- O importante é que agora está tudo bem. Não preciso dizer que deve procurar depressa um médico, Lara. É claro que não é nada demais, contudo, não custa checar. Maciel, quanto a irem agora, não sei. Acho que o bom senso seria contra. Olha pra lá. – Apontei a janela. Gostaria muito de me ver livre dele (não de Lara, mas do mamute desgrenhado), apenas a quantidade de água que caía do céu de maneira linear, sem nenhum tipo de interrupção, era medonha. Poderia ser de fato perigoso perambular sob aquele temporal, além do que, um tanto de ruas já poderiam estar cheias de água.
- Meu Deus do céu. – Maciel comentou ao olhar para a janela. Continuou o vai e vem de maneira ainda mais frenética, conseguindo esbarrar em minha mesa de trabalho que fica ao lado da sala de jantar. Derrubou ao chão meu porta CD´s, o telefone e quase o monitor do computador, arrancando tudo da tomada na parede com os pés desajeitados. Nem parou pra observar o estrago. Continuou: – Era só mesmo o que faltava, estamos presos aqui. Me dá um copo cheio dessa coisa aí, Motta.
Enchi uma das taças que se mantinham inteiras com vinho.
- Sente-se bem agora, Lara? – Ela balançou a cabeça. – De verdade? – Balançou novamente.
Telma deixou o restante da arrumação de lado. A mesa já estava novamente apresentável e as partes mais indigestas de se ver haviam sumido para dentro da lixeira da cozinha. As três mulheres se aconchegaram próximas, no sofá, de onde eu havia levantado quando servi a taça de vinho a Maciel. Fui pra junto de Renato.
- Acho que eles estavam certos. – Renato falou.
- Como assim?
- Eles estavam certos, afinal. – Tinha os olhos fitos lá pra fora. – Olha aquilo.
Uma fumaça vaporosa, como quando alguém toma banho quente no inverno, subia estranhamente das gotas pesadas de chuva que dominavam a noite. Como numa sauna recém ligada, o vapor pairava de forma bizarramente assustadora e um tanto dele entrava pela janela da sala, procurando frestas frescas. Renato concluiu de maneira quase catatônica, enquanto mantinha uma azeitona entre os dedos:
- Algum miserável realmente instalou uma ducha elétrica lá em cima...
VIII
- Merda! Fora de área. Só pode ser brincadeira. Pra que gastamos nossa grana se quando realmente precisamos desse troço ele nunca funciona?
- Usa o meu, Maciel. Toma aqui.
- Se esta coisinha aqui no canto indica a quantidade de sinal no seu aparelho, Motta, então está tão mudo quanto o meu. – Maciel colou o aparelho de encontro ao ouvido. – Nada. Parece um túmulo. Mas que droga! – Os outros nos olhavam.
- Pega o fixo ali no chão. Pode usá-lo. Depois coloca de volta na mesa de onde caiu.
Ele caminhou até a saleta contígua e abaixou, trazendo o telefone que ele mesmo havia derrubado momentos antes. Apoiou a base na mesa e aproximou o gancho da orelha direita. Deixou o braço cair, deslizando devagar ao lado do tronco, enquanto a fisionomia transtornada demonstrava que a coisa estava tão problemática quanto com os telefones móveis.
- Estou preocupado com o Garoto, Motta. De verdade. Ele ainda não havia chegado à casa quando saímos. Agora a mãe dele com um piripaque desse tamanho. Santo Deus, mas que droga de noite.
- O problema no aparelho pode ser localizado, afinal você acertou um chute direto na linha. O bicho tomou um belo tombo. Quanto aos celulares, pode ser a chuva, vá saber! Não entendo bulhufas de nada disso. Tudo deve estar bem com seu garoto. Vai ver. Logo ele mesmo liga, assim que essa chuva nos der uma trégua.
- Ela parece que vai nos dar essa trégua? Hein? Você acha mesmo que ela vai diminuir tão cedo?
Sim, ela continuava a cair. Um temporal ainda maior do que o de 1988 que deixou o Rio de Janeiro sob água e um rastro de destruição atrás de si. Carros haviam trepado, um por cima do outro, boiando como barquinhos, nas garagens subterrâneas. Chocavam-se contra as paredes, como brinquedos. A quantidade de lama que desceu dos morros era capaz de criar um novo Corcovado em algum outro bairro se amontoada. As pessoas não puderam ir trabalhar normalmente e a defesa civil nunca teve tanto trabalho. A de hoje parecia realmente bem pior, a despeito do vapor, que apesar de persistir, diminuíra. Maciel tinha razão de preocupar-se com o filho, imaginei.
- Teu guri está bem, creia. É um moleque inteligente. Deve estar protegido em algum canto, aguardando a hora certa de ir pra casa. Com os amigos. Acho que já temos algum problema por aqui, não precisamos inventar outros. – Com o canto do olho, apontei para Lara. Temia que ela ficasse nervosa com a história do Gustavo e tivesse outro ataque daqueles no centro de nossa sala de jantar. Um já era suficiente, não precisávamos de mais. – Não é mesmo, meu caro Maciel?
O homem fez que entendeu. Chegou perto de mim e apertou meu braço com a mão, disfarçadamente. A boca quase tocou meu ouvido. Falou baixinho: - Concordo com você, apesar de não gostar nem um pouco quando isso acontece. Mas teu vizinho lá da porta da frente não teria uma droga de um telefone que eu pudesse usar? Escorrego até lá e, em pouco tempo, sem ninguém precisar saber, estou de volta. E não terei dentro de minha cabeça duas preocupações, basta descobrir onde se enfiou o guri.
Avaliei o que disse o mastodonte.
- Sim. Pode ser. – Falei baixo também. – O chute que acertou a linha aqui pode ter danificado o aparelho. Se acalme, quando todos estiverem mais tranqüilos, peça pra ir ao banheiro e se esgueira até lá. Mas tome cuidado com a saúde da tua mulher. Talvez tenha algum problema na cabeça. – “Pode ser a porcaria de um mamute doente, por exemplo”. – Desejei completar.
- Está bem. Está bem, Motta. Detesto isso. Tudo isso. Meu Deus!
“Não mais do que eu”. Gostaria de completar novamente.
IX
Quando era garoto costumava freqüentar, durante as férias e em alguns finais de semana, o sítio do tio Julio. Lá havia um grande lago onde alguns jacarés costumavam nadar. Meu tio era um exímio caçador, gostava de fazer viagens ao centro-oeste para praticar seu esporte predileto e trouxe de lá alguns exemplares vivos destes animais. Enquanto eu pescava tilápias prateadas com pequenas varas de bambu, alguns deles observavam-me de perto, olhinhos acima da linha da água e aquela calma secular que só os répteis possuem. Alimentavam-se das dezenas de milhares de tilápias que viviam ali dentro do lago junto com eles e assim cresceram rápido. Tão rápido que um dia, um deles, um dos jacarés que se tornaram excessivamente grandes, teve que ser abatido a tiros. Um amigo de meu tio, com uma longa espingarda apoiada ao ombro, acertou-lhe bem entre os olhos. Uma turma foi obrigada a entrar no lago para retirar o defunto e demoraram um bocado até acharem, sob a água barrenta, o corpo inerte do animal. Nunca mais esqueci aquela cena e as que se seguiram. Um mistério havia sido desvelado e um mistério que não pode ser trazido à luz daquela maneira. De repente, ele estava lá, fora da água. O corpanzil que sempre estivera escondido debaixo do lençol marrom, exposto e revelado, os olhinhos misteriosos que me fitavam enquanto eu colocava minhocas presas à ponta de minúsculos anzóis, inertes e sem cor. Havia sangue. Escorria do centro da cabeça do animal e entrava pela boca deixando os dentes, tortos e imensos, vermelhos. Um homem que estava junto de meu tio e seu amigo que usara a arma, disventrou o jacaré utilizando uma faca que deveria ter o meu tamanho e a cauda foi extirpada logo depois. As entranhas do animal lembravam um açougue hediondo, onde carnes estranhas ficam visíveis na vitrine. Pensei comigo mesmo: “isso está errado”. Todo o segredo, tudo o quanto não deveríamos ver estava, de repente, exposto daquela maneira. Não só o animal pré-histórico, mas tudo o quanto escondia-se dentro dele. Eu não era capaz, enquanto pescava, nem de enxergar o corpo do bicho dentro do lago, muito menos saber o que havia dentro da imensa barriga. Nada disso era para ser visto. Nada. Algo me dizia que aquilo estava muito errado, invadiam um segredo que ninguém tinha o direito de quebrar. Mas estava lá e nada podia ser feito quanto a isso. O segredo havia sido revelado e não era bonito de se ver. Gostava muito mais dele quando expunha apenas uma pequena parte pra fora das águas do lago e vivia escondido. Do jeito que todos os segredos sempre mereceram viver.
X
- Vou até o banheiro.
A voz de Maciel trouxe-me de volta lá de onde me encontrava. Pensando em todos os segredos do mundo, imaginando tudo o quanto não sabemos e tudo o que devemos continuar sem conhecer.
Levantei-me junto com ele. Fomos até a porta da cozinha. Ele pretendia tentar contatar o filho utilizando o telefone do vizinho, no 702. A tensão pairava no ambiente, como aquele maldito vapor lá pra fora da janela.
- Já volto – Falou abrindo a porta cozinha. - Segura as pontas por aí.
- Espero que o telefone esteja funcionando.
- Estará. Tem que estar. O que mais pode dar errado? Hei, você por acaso tem cachorro dentro de casa?
- Cachorro? – O sujeito havia perdido os últimos parafusos?
- Algo me picou. Pulgas ou seja lá o que for. Em meus braços. – Esticou-os para que eu pudesse ver o que ele estava querendo dizer. – Já volto. – Fechou a porta atrás das costas. Fiquei ali na cozinha um tempo. Não. Nós não tínhamos cães dentro de casa. E aquilo no braço do homem não fora causado por insetos. Três pequenas feridas arredondadas onde algo como pus parecia apontar timidamente. Algum tipo de alergia. Feridas. Como impetigo.
Carrapatos ou pulgas nada tinham a ver com aquilo ali.
XI
Era a terceira vez que Lara perguntava pelo marido. Já se havia passado tempo suficiente para uma dezena de pessoas terem usado o banheiro. Ela quase se levantou do sofá. Fiz isso antes dela e fui até a cozinha. Colei meu rosto à porta, apertando um dos olhos para mirar o corredor através do olho mágico. Trinta metros adiante deveria estar a porta do 702 mas não era possível enxergá-la completamente. Estava aberta, pude perceber, mas algo no corredor do meu andar impedia que meus olhos alcançassem o outro lado. Maciel. Mantinha-se estacado com as costas viradas para a porta escancarada de meu vizinho. Minha mão escorregou sorrateira e lentamente, como se alguém pudesse ver o que eu fazia, passando o trinco na porta onde colava meu rosto. O homem parecia olhar diretamente em meu olho, como se não houvesse nada entre eu e ele, como se estivéssemos parados um de frente para o outro a menos de um metro de distância. E pude perceber que não era de fato o chefe de minha esposa que se mantinha de pé no corredor. Parecia com ele, possuía o mesmo rosto, mas algo mudara. Algo o abandonara, talvez o que os religiosos chamem de alma, ou alguma outra coisa tomou o lugar dela. Deu um passo trôpego em minha direção ao mesmo tempo em que virava o dorso dos braços, mostrando novamente o local onde antes haviam pequenas feridas. Os ossos estavam expostos, a carne havia sido lacerada, carcomida como tocada por ácido sulfúrico. Meus membros enregelaram-se e meu rosto foi tomado por uma carga de suor gélido. Lá fora, o que um dia foi Maciel, caiu de joelhos, soltando um urro baixo e grave, que parecia durar para toda a eternidade. E quando pensei que já havia visto tudo, logo atrás dele, do vão onde fica a escada, a velha louca surgiu e pôs-se logo atrás dele. Encarou-me do mesmo modo, como se fosse capaz de enxergar meu rosto atrás da porta, sabendo, de alguma maldita maneira, que eu estava ali atrás. Foi então que percebi que os lábios daquela criatura, que parecia ter mil anos naquele momento, moveram-se sem emitir som, apenas para que eu pudesse ler naquela boca infernal uma única frase apavorante.
- Para quem não pode se molhar, não há salvação...
XII
- O que há, Motta? Onde está meu marido? – Lara parecia preocupada agora. Bastante. Acho que qualquer um que olhasse meu rosto naquele momento ficaria. ”O que há, cara Lara? Talvez o apocalipse. O flagelo final da humanidade. Algo inominável parece ter saído de algum canto obscuro do planeta, trazido por esta chuva odiosa ou por um grupo de malditos que fazem parte de uma seita ainda mais amaldiçoada, tomou conta de tudo e de todos lá fora. Acredito mesmo que a Terra tenha se deslocado da própria órbita. Nada além disso, minha querida Lara”.
- Antes de te responder qualquer pergunta, gostaria de conversar com Renato. Aliás, não sei se poderei responder qualquer pergunta. Peço apenas para ter uma conversa com o Renato. Espero que as três compreendam isso.
Telma me derreteu com o olhar. Devo ter assumido ares de traidor ao preferir conversar com Renato qualquer coisa antes de falar com ela própria. Não reunia condições de dar atenção ao burburinho criado pelas mulheres na sala, enquanto levei Renato ao quarto dos fundos e tentei contar a ele tudo o que aconteceu. Acreditei de fato que ele desmaiaria. Ao retornar à sala, ele ainda assemelhava-se a um simulacro de ser humano. Não sabíamos o que fazer, era fato. Cruzamos por Lara que havia ido ver onde se encontrava Maciel. Sem sucesso. Quando ela chegou na sala, falei:
- Lara, Maciel contou que vocês entraram aqui debaixo de chuva. Não foi isso?
- Motta, chega disso. Onde está Maciel?
- Não foi isso?
- Não chovia ainda. Alguns pingos, só isso. Mas o que isso tem a ver com o sumiço do meu marido, Motta? Resolveu fazer todo mundo de idiota? O que há com seu marido, Telma? – Minha mulher empertigou-se, espichando os ombros. Não falou nada.
- Posso ver onde a água da chuva tocou em você? Pode me mostrar?
- Motta, isso deve ser alguma brincadeira. Acredito de verdade nisso.
- Eu posso ver? – Contrariada, Lara deu dois passos à frente e com a ponta do indicador tocou a face. Depois em dois pontos do braço direito. – Não havia em nenhum desses lugares do corpo da mulher nenhuma marca como as que vislumbrei no braço de Maciel. Não sabia se me alegrava ou ficava ainda mais preocupado. As pistas se confundiam. “Para quem não pode se molhar, não há salvação”. A frase visitou minha mente.
- Satisfeito? E agora, posso saber que diabos está havendo? Podemos, as três idiotas aqui, saber o que diabos estão escondendo de nós? – O fim da frase foi dito aos berros.
Apesar de possuir absoluta certeza de que elas não gostariam nada de saber o que escondíamos delas, tentei contar da melhor maneira que pude.
XIII
Não foi fácil conter o pânico, mais ainda depois que todos olharam para o corredor pelo olho mágico. De minha parte, também o fiz novamente. Maciel caminhava como um zumbi desde minha porta até o vizinho lá adiante, cuja porta mantinha-se aberta ainda. Fazia meia volta e começava tudo de novo. Ao chegar próximo de onde estávamos, quase falava. Parecia querer nos dizer algo e sabia que fitávamos sua marcha hedionda. Renato correu até a janela sem dizer nada. Fui atrás dele e temi que aquela maldita água molhasse alguma parte do corpo dele. Aquela chuva me assustava também. As mulheres vieram logo atrás. A falação e os berros agudos terminavam com qualquer possibilidade do intelecto trabalhar. O edifício onde moro possui garagem subterrânea e nada que se pareça com um play ground. Antigo, o sétimo andar não é tão alto, de modo que sem aquela chuva, seria fácil enxergar e divisar tudo lá embaixo. Com aquela aguaceira toda, não víamos muito. Mas é fato que consegui perceber uma ou duas pessoas caminhando com o mesmo passo marchado de semimorto ensaiado por Maciel no corredor. Torci para que apenas eu mesmo houvesse enxergado aquela gente na calçada. Não havia um automóvel sequer.
Renato encarou-me. Não compreendia como o homem se mantinha em pé, não havia sinal de sangue na face que imitava um lençol estendido.
- O que aconteceu? O que está acontecendo afinal, Motta? Alguma doença. É isso. Um miserável vírus desconhecido trazido por essa maldita chuva. Claro. Não é isso? Hein? – Comecei a temer ser o único a guardar traços de serenidade. Isso poderia ser bastante ruim, dependendo do desdobrar dos acontecimentos.
- Vou lá fora buscar meu marido!
- Escutem aqui. Não sei se é uma maldita doença desconhecida, Renato. Por todos os Deuses se sei o que aconteceu hoje. E Lara, ninguém abre aquela porta sem meu consentimento e isso é sério. Não me façam provar do que sou capaz. Sinto pelo Maciel, mas ele fica lá fora enquanto isso.
- E quanto a nós? A merda do telefone não funciona, não podemos sair daqui. O que pretende fazer da vida, o que mais precisa acontecer? – Telma me olhava com medo e desprezo.
- Preciso pensar mais. Mas podemos tentar nos comunicar com alguém pelo computador. Saber alguma coisa do mundo lá de fora, é um começo, não? – Procurava apoio para minha idéia ao mesmo tempo trazendo as pessoas para uma atividade real. – É uma tentativa.
Todos me acompanharam. O ruído da ventoinha e os estalos característicos da máquina criaram expectativa, depois que enfiei o dedo no botão onde a palavra “on” estava escrita. O computador carregava apresentando a tela de logon, onde ao lado de meu nome e minha fotografia, existia um espaço para a senha e a frase “Você tem um e-mail em sua caixa postal”. Ajeitei-me na cadeira e digitei minha senha que apareceu na tela como sete círculos negros. Meu pé esbarrou em algo que arrastava pelo chão logo depois que a tela do desktop brilhou e o programa de correio entrou no ar. No chão, arrancada da parede pelo chute do mamute desgrenhado, jazia o fio que saía da CPU e não entrava na parede. Havia me esquecido. Os ícones diante de meu rosto, a ventoinha funcionando e os estalos que não cessavam enquanto a máquina terminava, finalmente, seu processo inicial, congelaram minhas entranhas. Tentei não dividir com o restante do grupo o terror que me tomou e mantive o pé direito sobre a tomada no chão. Meus dedos quase se negavam a continuar digitando, o tremor fazia com que teclas erradas fossem acionadas e a seta do mouse era quase errática. Meus Deus! Como continuar olhando para a tela dessa maldita máquina sabendo que a tomada está fora da parede? Apenas a necessidade de encenar um teatro para que as coisas não piorassem e fugissem de vez de qualquer tipo de controle permitiram que conseguisse.
- Conecta essa droga na internet logo, Motta. – Renato quase berrou em meu ouvido. Minhas mãos tornaram-se mais trêmulas.
- Talvez não tenha sido boa idéia. O telefone não está funcionando, é possível que qualquer tipo de conexão esteja interrompida. – Temi não ter sido convincente.
- Se isso é possível, é possível também o contrário.
Antes que clicasse em qualquer ícone surgiu uma pequenina mensagem no canto direito do monitor: “conectado a 10 Mbps”. Meu programa de e-mail buzinou logo depois: “você tem uma nova mensagem”. Imaginei que participava de uma grande brincadeira. Temia perder a consciência. Estava apavorado e meu medo aumentava só de pensar que descobririam meu pé dissimulando a tomada logo abaixo da mesa. A falta de lucidez era tanta que ninguém percebia que eu não clicava em nenhum ícone da tela, as coisas simplesmente estavam acontecendo sem nenhuma intervenção de minha parte.
- Checa essa mensagem. Pelo amor de Deus, Motta. Pode ser alguém querendo ajudar.
A mensagem se abriu. Era quase como se o computador ouvisse o que Renato gritava logo atrás de minhas orelhas.
-Você conhece essa pessoa? Isso é alguma brincadeira? Minha nossa, Motta. Trata-se de alguma brincadeira?
No local reservado ao nome do remetente apareciam escritas as palavras “Irmandade de Ctulhu” e logo abaixo o texto continha apenas uma frase. Uma desgraçada de frase recorrente: “Para os que não podem se molhar, não há salvação”.
XIV
Não sei a partir daí as coisas aconteceram depressa demais ou apenas minha mente passou a funcionar em um tempo e velocidades desconhecidos. Quem sabe uma defesa contra a loucura? Tento me esforçar para que o texto em meu computador espelhe a realidade ou algo o mais próximo possível do que tenha acontecido até agora – realidade ou não. Uma coisa posso afirmar e não há como errar:nunca senti tanto medo em minha vida. Não sabia, mas o terror não tem limite, é capaz de superar qualquer expectativa conhecida.
O fornecimento de energia falhou, as luzes do apartamento piscaram três vezes antes de se apagarem totalmente deixando apenas o brilho da tela do computador iluminando a sala. Não posso dizer como isso foi possível, não existe um conjunto de baterias nem nada que se aproxime disso para manter a alimentação de minha máquina. Ademais, a tomada continuava completamente desconectada da parede. A lâmpada fria na cozinha estalou e acendeu. Um abajur na sala também. Nada mais.
Renato, num sobressalto, disse que tentaria sair dali, que iria pra casa, que não ficaria nem mais um minuto em meu apartamento. Tentou convencer Jandira de que isso seria a melhor coisa que eles poderiam fazer assim como parece ter conseguido a simpatia de Lara, cujo marido deveria ainda estar no corredor. Como um demônio assombrando um cemitério.
- Renato, você pode sair por aquela porta mas, de verdade, aquele que pisar no corredor sem que eu concorde com a idéia não volta mais. Não põe os pés aqui dentro novamente. - Corri até meu quarto e apanhei a arma que brilhou prateada quando abri a gaveta da cômoda. Enfiei no bolso da camisa a caixa de cápusulas extra. Quando retornei à sala, a confusão parece ter aumentado. Renato arregalou dois grandes olhos quando viu, em minhas mãos, o 45 de meu pai. Telma tentou me convencer de que ele estava certo e, se por acaso eu usasse aquela coisa, me transformaria num assassino condenado. A arma foi capaz de impressionar e isso já era uma grande coisa. Alguém deveria continuar comandando os fios, de modo contrário, aquilo viraria um sanatório de títeres muito perigosos. Fui até a porta e vislumbrei o corredor novamente, utilizando o olho mágico. Renato veio logo após e foi seguido pelas mulheres. Maciel, com braços que se assemelhavam a tripas expostas num matadouro, continuava sua marcha insana e medonha - A luz no corredor persistia.
- Quer mesmo ir lá fora? Tem certeza disso? – Afastei-me para dar vez a Renato que colou o olho à porta.
A despeito daquela marcha horrenda, ele parecia decidido. Lara gostou da idéia, pois Renato poderia tentar algum tipo de contato com o que um dia foi marido dela. Jandira, aos berros, tentou demover Renato daquela idéia. Por fim, decidiu-se que ele tentaria sair dali, alcançar o térreo ou outro apartamento qualquer e que eu tentaria dar algum tipo de cobertura enquanto isso fosse possível. Não abriria mão de carregar a arma e não tinha certeza se realmente desceria aquelas escadas, caso as alcançasse. Além do mais, ninguém ali pensava de maneira adequada, as idéias eram mais baralhadas que quebra-cabeças desmontados.
Renato abriu a porta e pôs os pés para fora. Atrás dele, bati a porta e acompanhei pelo olho mágico os movimentos do homem. Jandira iniciara um choro convulso. Ele deu dois passos em direção às escadas e o ruído chamou atenção de Maciel, que estava de costas. Maciel tornou o corpo e encarou Renato com dois olhos ausentes. O homem desfigurado caminhou para Renato esticando ambos os braços a frente. Estacou diante dele e pensei ouvir Renato tentando falar algo. Acho mesmo que falou alguma coisa. Como resposta, aquele urro medonho escapou da boca de Maciel uma vez mais, ao mesmo tempo em que lançou braços doentios de encontro ao corpo do marido de Jandira. Meu Deus! Tentava arrastar o homem pra dentro do apartamento 702. E quase conseguia. Do interior do outro apartamento saíram duas coisas. Sim. Coisas. Não posso nomear. Poderiam ser confundidos com seres humanos numa penumbra ou num beco à meia noite. Mas o que vi ali era algo que não existia aqui na Terra, pelo menos não antes dessa chuva, não antes da reza final daqueles dementes lá no térreo. Nada, em nenhuma escritura, em qualquer tela de cinema ou na imaginação do homem mais doente que já pisou no planeta, se assemelha ao que vislumbrei antes de abrir a porta e correr na direção de Renato. Ao escancarar a porta, as mulheres também puderam observar com os próprios olhos aquelas demências que se moviam como hienas e possuíam rostos quase familiares. Como se fosse possível reconhecer ali a megera louca do primeiro andar ou um de seus amigos. Telma parece ter desfalecido ao cair sobre os joelhos. Aquelas coisas cheiraram Renato com focinhos que pareciam radares suspensos no ar e tentaram carregá-lo para o interior do 702, enquanto ele se debatia e eu corria na direção dele. Focinhos que lembravam imensos gambás de duas patas, por todos os demônios do mundo – cheiravam Renato, como avaliando que tipo de vida estava de pé ali no corredor. Corri e quase encostei o cano longo do 45 na testa de Maciel. Puxei o gatilho, desesperado. Não queria que nenhuma daquelas monstruosidades tocassem meu corpo. Golfei ao sentir o cheiro que exalavam. “Tlec”. Não houve nenhum estampido, o projétil picotara na câmara. Um pequeno demônio me encarou e girou a cabeça de lado, quase em 360 graus, carregando uma expressão desconhecida. Apontei a arma em sua direção pressionando novamente o gatilho. “Tlec”. As três criaturas estacaram, esqueceram de Renato, que se desvencilhou e correu novamente para dentro de minha casa. Fitaram-me como eu os fitaria. Não era capaz de codificar nenhum sentimento conhecido naqueles rostos que pertenciam ao inferno. Puxei novamente o gatilho recuando já desprovido de qualquer esperança levado por pernas que possuíam vontade própria. A explosão encheu o corredor de fumaça e ecoou diversas vezes por todo o interior do prédio. O que restou daquela coisa, preso às paredes, ao teto e esparramado pelo chão, foi algo muito pior do que um jegue atropelado por uma jamanta. O odor insuportável aumentou automaticamente. Corri, eu mesmo pra dentro de casa e bati a porta. Não sei porque, mas aquelas coisas não forçavam entrada. Pareciam, antes, esperar convite. Não em minha casa, é certo.
Jandira e Lara ajudaram Telma a se levantar. Renato perdera de vez a sanidade. Acho que elas também. Ele esparramou-se no sofá da sala - no rosto era possível ver o corredor de um sanatório. Não havia nada que eu pudesse falar. Não existia nada que pudessem falar pra mim.
XV
Telma havia tido uma idéia e daria um jeito de sair dali. Eu disse que a primeira pessoa que metesse a mão na porta levaria bala, fosse quem fosse. Ela argumentou que não sairia pela porta, a idéia era muito melhor. Foi até a área de serviço e voltou com martelo e outras ferramentas. Convenceu as outras mulheres que poderiam abrir um buraco no quarto dos fundos, passar para o apartamento debaixo e de lá para o próximo até chegarem ao térreo e finalmente alcançarem a rua e a liberdade. Não tive forças para impedir que iniciassem esse projeto insano, todas enfurnadas no quarto socando o chão com ferramentas, lacerando os tacos e vislumbrando uma chance esdruxulamente louca de conseguir escapar de tudo aquilo. E a chuva lá fora prosseguia. Não restavam dúvidas agora de que todos haviam enlouquecido ali dentro.
Não posso dizer que haverá um final. Feliz ou não. O bate estacas no quarto dos fundos continua há horas. Renato dormiu um sono que mais se aproxima do coma. Apanhei a arma em meu colo quando parei de digitar a história que pretendo que fique guardada no computador e fui até a janela fitar a chuva. Continuava a cair como cachoeira. Lá embaixo uma pessoa parecia andar normalmente. Estacou logo abaixo de onde fica meu apartamento olhando pra cima. A luz retornou em minha sala. Piscou algumas vezes antes de firmar. A chuva prosseguia e deixava a pessoa lá embaixo completamente encharcada. Ela abriu os braços em minha direção, como quem deseja saber o que está acontecendo, espichando os ombros e encarando diretamente meus olhos. Não parecia doente, louca ou afetada por aquela chuva de forma alguma. Era a morena do mercado e os cabelos cheirosos escorriam ensopados, lambendo os ombros delicados. Implorava agora com sinais para que eu me juntasse a ela lá embaixo. “Para quem não pode se molhar não há salvação”. A frase espocou novamente em minha mente, mas acreditei que nem todos estão perdidos. Nada de mal parecia ter acontecido a ela, apenas imaginei que os olhos castanhos deveriam estar mais amedrontados do que nunca. Não sei se há “qualquer outro lugar lá fora”, penso já ter dito isso em algum ponto, mas ela, ela está lá embaixo. Alcançá-la, entretanto, significava atravessar o corredor, descer as escadas e finalmente alcançá-la. O rosto amadeirado e a expressão brilhante e molhada estavam quase me convencendo a fazer isso. Estiquei hesitante o braço para fora da janela e deixei que vários pingos de chuva tocassem meus dedos, o dorso da mão, meus punhos. Fiz meia volta. Fitei a porta de entrada, levantei a arma à altura do rosto. Encostei o cano do revólver na têmpora e meu dedo pressionou de leve o gatilho, apenas sentindo a textura metálica. Lembrei das criaturas no corredor, da irmandade doentia que livrara de algum lugar profundo, com rezas malditas, coisas que deveriam permanecer pra sempre no lugar onde estavam. A loucura no quarto prosseguia e ao que tudo indica, martelavam diretamente o cimento, agora. Olhei novamente para o passeio e agora a morena mantinha os braços estendidos ao longo do corpo, os olhos ainda em minha direção.
E decidi, finalmente, o que deveria fazer.