O ENCARGO DE APOLO - PARTE II

...havia horas, porém não encontrávamos o menor sinal da maldita cidade. Consultáramos inúmeras vezes o mapa; tudo em vão. Aparentemente, a cidade tinha simplesmente desaparecido, evaporado no ar ou engolida pela terra! Sue estava à beira de um ataque de nervos, a cada minuto lançando sobre meus ombros a responsabilidade pela desagradável situação. O irônico é que esta viagem –ideia minha, claro- era exatamente para tentarmos apaziguar nossa beligerante e desgastada relação. O calor sufocante (claro que eu havia me esquecido de verificar o maldito ar-condicionado do carro) que nos oprimia desde as primeiras horas da manhã não colaborava para a harmonia no diminuto ambiente do interior do veículo, e nem mesmo o infalível Elvis, que cantava para nós ininterruptamente (We're caught in a trap / I can't walk out / Because I love you too much baby / Why can't you see / What you're doing to me / When you don't believe a word I say?) através das minhas velhas fitas cassete, era mais capaz de amenizar a tensão crescente. A paisagem ao nosso redor era uma árida e desoladora sucessão de irregulares e baixos monturos de areia branquíssima, salpicados de esparsas moitas de vegetação rasteira, das quais irrompiam raquíticos arbustos que mal produziam sombra, mas eram suficientes, no entanto, para obstruir a visão de quem observasse a paisagem, impedindo que se perscrutasse as distâncias mais profundas. De repente, vislumbrei, ao longe, um pequeno vulto à margem da estrada; quando nos aproximamos o bastante, percebi tratar-se de uma pessoa; mais um pouco, divisei tratar-se de um velho, acocorado sob a parca sombra de um dos parcos arbustos mencionados anteriormente. Ele pareceu não notar, ou simplesmente não se importou, com a passagem do nosso carro. Estacionei alguns metros além, desci do automóvel e voltei para interrogá-lo quanto à cidade que, segundo o mapa, deveria estar exatamente ali. De perto, o ancião era esquálido como um faquir; tinha os cabelos e barba desgrenhados, de um branco encardido; sua pele era cor de bronze e engelhada por décadas de exposição constante ao inclemente sol da região. Era cego de um olho e, na boca, restavam-lhe poucos dentes. Antes que eu o interpelasse, ele apontou com dedos retorcidos a direção em que eu já vinha e disse: “siga em frente, sempre; seu destino está logo depois das Dunas”.

Surpreendido e meio confuso, agradeci; quando me virei para voltar ao carro, o ancião agarrou minha perna e, contorcendo a carantonha enrugada, alertou-me com a expressão grave e transida de um dervixe: “aconteça o que acontecer, jamais pare nas Dunas!”

Ofereci-lhe uma nota; ele desprezou meu gesto com indiferença. Provavelmente, as coisas deste mundo já haviam deixado de o interessar há tempos. Dei-lhe então água, da qual ele sorveu apenas um indolente gole e voltou à sua imobilidade monolítica.

Volteia ao carro e transmiti a Sue a esperançosa informação, omitindo, por motivos óbvios, o alarmante aviso sobre as Dunas. Confesso que sua careta horrorosa e o tom de sua voz me impressionaram terrivelmente, a ponto de me convencer; não tive coragem de indagar o motivo da proibição; mas deixei-o com a firme intenção de não parar nas tais Dunas, mesmo que minha vida dependesse disso.

Rodamos por mais uma hora, sem que a paisagem ao nosso redor se modificasse; então surgiram as Dunas, imponentes, ao longo da estrada. À medida em que avançávamos, as Dunas iam ficando mais altas; o forte vento espalhava a areia sobre o leito da estrada; em alguns trechos, era quase impossível prosseguir; o carro reduzia a velocidade da viagem, abruptamente e contra a minha vontade. Nestes momentos, o alerta do velho e preocupado dervixe gritava em minha mente. Em determinado momento, a estrada se bifurcava; ou melhor, havia uma suspeitosa entrada à esquerda, e uma placa informando que, logo à frente, haveria combustível; a estrada (o meu destino), por sua vez, continuava sempre em frente. Meu desejo –a lembrança da ameaça do ancião acocorado me assombrava- era seguir jornada; porém, depois de horas rodando a esmo, o nível de gasolina no tanque estava perigosamente baixo. Entardecia; entre correr o risco de sofrer uma pane seca no meio do nada –no meio das Dunas alarmantes- e arriscar um breve (assim eu esperava) desvio de rota, achei mais prudente optar pelo desvio. Ainda passaríamos mais meia hora rodando a pouco mais de quarenta quilômetros por hora –os infindáveis buracos não nos permitiam desenvolver maior velocidade- por uma deplorável estrada de terra batida até finalmente darmos com uma arruinada edificação de madeira, de três andares e cuja pintura havia desaparecido há tempos, na frente da qual uma não menos arruinada placa informava tratar-se de um inacreditável hotel; a mesma placa informava ser possível adquirir combustível no mesmo estabelecimento. Por trás do prédio, a costa.

Neste exato momento, a gasolina acabou.

paulo marreco
Enviado por paulo marreco em 12/05/2015
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