FRACASSO CONTABILIZADO

Fui acordado pelo soar dos sinos do campanário. “Deus te chama”, ouvi sussurrarem em meus ouvidos. Num golpe sentei-me na cama. Se alguém sussurrou aquela frase de verdade já se mandara do quarto. Lavei-me. Desci para o café. Dona Jerci cumprimentou-me, ao mesmo tempo em que depositava a bandeja sobre a mesa.

– Assustado, moço? Mesmo já acostumada à minha presença e sabendo meu nome, ela continuava a chamar-me de “moço”.

– Os sinos me jogaram para fora da cama, dona Jerci. Ela olhou-me com espanto, mas, quando falou, pareceu querer contemporizar com o freguês.

– Acho que estou ficando meio surda, moço, pois não ouvi nada.

Ao afastar-se da mesa, percebi-a se benzendo. Tomei o café com tranquilidade.

Há dias que esperava pacientemente por meu contato. Nada! Aquela cidadezinha começava a causar-me exasperação.

Andei pela rua íngreme sem um rumo definido. Cômico, falar em rumo definido numa ruazinha em que o final é logo ali. Seu Alaor, o engraxate, já estava na calçada. Sentei-me na cadeira e posicionei os sapatos. Engraxá-los era mais um gesto amistoso de minha parte do que necessidade de lustrá-los.

Olhei distraidamente para a torre da igreja.

– Esses sinos são acionados quando ou em que ocasiões, seu Alaor?

– Depende da boa vontade do sacristão, sabe, moço! Marcar as horas, anunciar as missas, alguma morte… coisas assim.

– Fui acordado pelo badalar deles, hoje. Seu Alaor fitou-me.

– Não ouvi! – Devolveu ele.

– O povo diz por aí, falou baixo como se confidenciasse, que quando isso acontece é mau agouro, azar, sabe? Costumam falar: “Deus te chama!”

Não sei se aquilo era chamado de Deus ou alucinação auditiva, seja lá o que fosse, deixei seu Alaor com suas conjecturas e continuei rua abaixo. Dobrei à esquerda e caminhei até a pracinha circular. Ao fundo a igreja demonstrava, por sua aparência e dimensões, uma imponência muito acima daquela cidadezinha. Andei direto até a escadaria e lentamente galguei cada degrau como se algo funesto me aguardasse em seu interior.

A iluminação natural banhava o interior dela. Todos os bancos estavam vazios e nada indicava que qualquer ser sombrio me aguardava atrás de púlpitos ou sacristias. Chamei, mas não houve resposta alguma. Avancei até o fundo e de lá mirei a escadaria que levava ao campanário. Fui contando cada degrau que vencia como se quisesse chegar rápido ao paraíso. Estanquei na metade. Instintivamente busquei o coldre e escorei-me na lateral da escada. Meu olhar girou pelo alto da cúpula. Reinava um silêncio absurdo. Vasculhei cada pedaço acima de mim. Nada.

Avancei até o átrio de onde os sinos eram acionados. Ali, amarrado à potente corda que os badalava, qual um boneco de vodu, jazia o corpo do sacristão já começando a enrijecer. Não havia sinais de enforcamento. Fora morto em outro local. Em seu ventre fora espetado um punhal com um papel comum: “mate o padre”.

Aliviei os bolsos do enforcado. “O pagamento estará depositado conforme suas instruções, assim que confirmarmos seu sucesso. Contato”. Respirei aliviado e iniciei a descida. Voltei à pensão de dona Jerci. Almocei. Fui para o quarto. Guardei tudo na mochila, conferi minha arma e deitei-me para aguardar o cair da noite. Deixei o dineiro sobre a cômoda.

Saltei a janela para a rua já um pouco tarde. Escuridão e silêncio. Tudo de que precisava. Fui direto à casa paroquial. Esgueirei-me para não correr risco de ser notado. Forcei levemente a maçaneta. A porta cedeu. Fiquei de lado e auscultei. Barulho algum veio lá de dentro. Muito fácil. Aquilo não se encaixava. Com o bico direito do sapato empurrei até escancará-la. Toquei o coldre. Entrei e pulei para a esquerda. A porta se fechou num baque surdo sem ser empurrada. Saquei a arma.

De algum lugar ouvi:

– Bem-vindo, forasteiro.

Permaneci quieto e protegido pela escuridão. Num clique, um painel foi aceso na parede à minha esquerda. Figuras toscamente desenhadas e que em nada lembravam símbolos religiosos saltaram daquele neon. Amaldiçoei minha súbita exposição. Mantive a arma em punho.

O neon começou incomodar. Repentinamente, três figuras esdrúxulas irromperam no ambiente através do painel luminoso. Pareceram saídos de um círculo infernal qualquer. Vestiam-se com trajes que pareceram ser sintéticos e revestidos com enchimentos que os deixavam mais fortes do que pareciam. Os rostos eram cobertos por máscaras que lembravam um personagem associado aos templários. Encimando tudo, chifres enormes.

– Abaixe a arma, um deles ordenou. Obedeci, quase hipnotizado.

– Cadê o padre?

– Esqueça! Não faça perguntas e te poupamos. Avaliei a situação. Longe das vestes ridículas e assustadoras, aqueles seres empunhavam armas bem mais potentes que a minha. Não discuti.

Contornei o campanário. Nenhuma anormalidade. Provavelmente dona Jerci e seu Alaor iriam à missa rezada pelo misterioso padre que jamais cheguei a ver. Benzi-me. Pediria aos contratantes a suspensão do pagamento. Acomodei a arma na mochila e arrumei-a em minhas costas. Disse um “adeus” imaginário. Havia uma estradinha a ser vencida! E mais um fracasso a ser contabilizado.

Cleo Ferreira
Enviado por Cleo Ferreira em 12/05/2015
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