A Mão Direita do Diabo - part 5
Libertar o Pan não era apenas dar liberdade a uma criatura, mas talvez, libertar o último da espécie. Estranho, disseram-me muitos, pois que todas as missões de Orfeo parecem resultar em algo de bom, embora ele estivesse a serviço do diabo. Orfeo mesmo percebera isso, mas alguns conceitos talvez estivessem errôneom na mente das pessoas. Quem sabe o mal não seja tão “mau” assim... Quem sabe exista alguma segunda intenção nas ordens de Zack... Ou mesmo, quem saberá, o mal não seja uma contraparte necessária, para equilibrar as coisas?...
Mas, divagações tão poderosas não podiam ocupar por muito tempo a mente de Orfeo. Ele fora incumbido de enfrentar as serpentes aladas. Os animais mais terríveis que habitaram um dia a superfície da terra. Mas ele tinha as suas armas... Uma lira habilmente construída por ele, aquela sensação de coragem que geralmente acompanha aqueles que venderam a alma ao capeta, e que pode ser traduzida por: alta confiança. E a tradicional burrice dos camponeses da idade das trevas, que aqui traduzo por falta de oportunidades, já que não se tratava de uma burrice hereditária. Lembrando que o fato de Orfeo ter ficado rico não aliviou em nada a sua falta de instrução, sabedoria e conhecimento, já que riqueza não é diretamente proporcional a inteligência - embora dê oportunidades - assim como duas sacas de milho extras é diretamente proporcional a mais galinhas.
Seja como for, abstrações linguísticas e raciocínios complexos matemáticos à parte, Orfeo partira para cumprir a sua missão. E embora esta parecesse mais fácil do que entrar nas catacumbas e enfrentar ratos, baratas e vampiros sociais, uma cobra alada poderia facilmente enrolar-se nele e parti-lo em dois, caso desejasse. E sim, elas desejavam!
O vale em questão parecia um queijo parmesão, cheio de buracos. Cada buraco era uma toca em potencial para uma serpente fria e escorregadia, doida para enfiar os dentes afiados na carne macia de alguém. Quando os moradores das vilas eram atacados conseguiam, às vezes, com certo sucesso, se livrarem da cobra com tochas e flechas de fogo. Mas Orfeo estava se dirigindo para o ninho das víboras, e nem todo o fogo do inferno poderia ajudá-lo ali, ainda menos a chama ridícula que carregava.
Ora, mas Orfeo era o mais exímio dos artistas, para quem já se esqueceu. E não só a sua lira era encantada, como também a sua musica! E foi com as duas que ele entrou saltitando no vale, como uma jovenzita que vai de repente passear no parque em pleno dia de sol, entoando notas tão maravilhosas e contagiantes, que esse que vos escreve começa a bailar e cantarolar enquanto se lembra das notas, e o que dizer das serpentes então? Que ao ouvirem semelhante melodia saíram a rastejarem em ritmo compassado e alegre, todas na mesma direção e sem controle da própria vontade! Alguns anos mais tarde, lembrando-se dessa mesma ocasião, Orfeo construiria uma tal flauta mágica para um certo flautista com problemas de infestação de ratos, mas isso é uma outra história.
Seguiram assim, todas as cobras, a dança hipnótica de Orfeo e sua lira, todos na direção do lago, até que em mal hora, e já cantando vitória antes da mesma, uma corda da lira arrebenta-se! E se Orfeo não estivesse a serviço do próprio diabo, com certeza o culparia de tão desafortunado acontecimento.
Aproximadamente oitenta serpentes de dois metros de altura, e envergadura de asa de quatro metros, libertaram-se de repente do transe, e deram de cara com o personagem mais azarado que já tive o desprazer de conhecer. Ali estava ele, sozinho, no meio de um ninho de cobras, como se de repente um cidadão comum se levantasse e fosse errar em pleno planalto central, entre o palácio do planobaixo, com-gresso, e supremo tribunal infernal!
A sua sorte, se é que posso chamar isso de sorte, foi que cada cobra queria exclusividade em seu refeição, e começaram a brigar entre si para ver quem ficava com o petisco...