UMA LIBERTAÇÃO FEITA DE METAL
Eu não ia chegar cedo em casa. Havia tumulto nos bloqueios, fila interminável. Uma irmã de hábito negro me cedeu passagem, educada.Acho que leu em meu semblante um desespero explícito.
Estava tão cedo, mas eu ia chegar em casa no mesmo horário de sempre ou mais tarde devido ao problema. O que seria desta vez? Falha elétrica? Falha nos equipamentos de via? Usuário na via?
Os autofalantes tentavam erguer seu recado metálico e ruidoso por cima do rumor dos trabalhadores, sem sucesso. Caminhando alguns passos, avistei um funcionário do metrô que vira-se obrigado a deixar de lado o whatsapp, cercado que estava pelos usuários, como uma estrela do arrocha entre fãs convulsivas; todos ávidos por informações que ele ainda não possuía.
Ignorei a cena e me dirigi `as escadas rolantes que levavam à plataforma de embarque, paradas e choquei-me com a turba triste que subia seus infinitos degraus que eu não conseguiria descer.
- Uma pessoa se jogou – a mulher respondeu minha interrogação estampada na face – Todo mundo tem que sair.
Como assim “Todo mundo tem que sair”, pensava indignada e ligava para casa a fim de comunicar que haveria um grande atraso.
Percebi que muitas pessoas aglomeravam-se nas muretas onde era possível ver, lá embaixo, o trem parado, aguardando a retirada do usuário. Morto? Todos estavam com seus celulares posicionados para pegar o melhor ângulo e viralizar na internet; e eu caminhava próximo da multidão, procurando algum funcionário para pedir informação.
Me deparei com um portão que dava acesso à plataforma metálica acima, onde somente funcionários do metrô podiam circular nos dias normais. Estava aberto e havia gente lá, debruçada, cochichando umas com as outras. Entrei.
- Olha lá! Vai tirar! Vai tirar!
Debrucei-me sobre a estrutura de metal frio e descobri o porquê daquelas pessoas estarem lá: era um local que proporcionava visão panorâmica da desgraça.
O trem estava parado. De um lado da plataforma, do embarque, ainda haviam aqueles blocos compactos de gente ,aguardando, pois que quando a situação se resolvesse, seriam os primeiros a embarcar e observavam, atônitos, o que iria ocorrer.
Uma equipe vestida de amarelo desceu na via, levando uma pequena escada portátil. Retornaram depressa, devolvendo o corpo à plataforma do outro lado, não tão vazia, envolto numa espécie de tecido que não pude averiguar de onde estava.
Ouviu-se um “Oh!” de repulsa, quando por um breve instante, a equipe deixou , por acidente, entrever o corpo dilacerado pela libertação de metal.
“Devido à presença de usuário na via na estação Barra Funda, os trens estão circulando com velocidade reduzida e maior tempo de parada.” – consegui ouvir o aviso sonoro naquele momento ante as expressões penalizadas e a fala apressada de funcionários que vinham em nossa direção para que saíssemos de lá. Já tarde.
O que mais me chocou, no entanto, não foi a visão brutal do corpo estendido na plataforma; suicídio, mas sim a visão de dezenas de braços estendidos a tentar registrar com suas câmeras de celular, o lado mais grotesco da morte, me chocou a banalização da morte, do horror tornado espetáculo, como nos tempos dos gladiadores, como nos tempos em que prisioneiros eram atirados aos leões para entreter césares e uma plateia carente de pão e circo, me chocaram os comentários feitos por almas que já não sentiam mais nada, do gênero: “Vai ver ele levou um pé na bunda da namorada” ou “Tinha que morrer justo hoje? Justo aqui?”, me chocou eu ter presenciado tudo isso e de camarote vip.
“A circulação de trens está sendo normalizada”, eu ouvi e me dirigi às escadas não-rolantes para descer até a plataforma de embarque, pensando comigo quais motivos alguém teria para acabar com a vida desta forma tão violenta e abrupta e pensando também que, para os outros, acabara o espetáculo do bizarro, do absurdo que hoje é considerado dentro da normalidade. Pessoas morrem todos os dias nesta linha três, vermelho sangue do metrô de São Paulo. Todos os dias, suicídio ou mero acidente decorrido da superlotação nos horários de pico. Mas isso é normal, que faço eu a reclamar assim?
Encarar um metrô lotado, assustadoramente inseguro? Essas pessoas deveriam ser gratas por ter um emprego que as obrigue a enfrentar a morte todos os dias. É isso, não? Eu pergunto para o fantasma do Capitalismo que espreita a meu lado na plataforma apinhada, querendo saber se aquilo ali à nossa frente, aderido nos trilhos são mesmo pedacinhos ensanguentados da carne do homem que se suicidou.