A BAILARINA
Deus existe e sabe que você existe? Entre as seis bilhões de pessoas vivendo na terra, porque Deus se lembraria exatamente de você? Será que ele sequer sabe o seu nome? Deus é justo? Se é, por que ele deixa que aconteçam tantas coisas ruins? Porque Hitler não nasceu morto, porque Al Capone não sofreu um acidente mortal na infância, porque Jim Jones não teve um câncer na adolescência e morreu, antes de provocar a morte de tantos ingênuos que o seguiram até as selvas da Colômbia para terminarem daquela maneira? Porque Bin Laden não foi atingido por uma bomba antes de se tornar chefe de uma facção terrorista?
Sobretudo, porque Deus permitira que aquilo acontecesse com ele, ele que sempre acreditou na justiça divina, que até se propôs a pregá-la de porta em porta, abordando pessoas nas ruas e nas praças, enfrentando a má vontade e até a repulsa de muita gente, quando ele se aproximava com aquele papo de crente, para falar das histórias da Bíblia e depois tentar vender para elas aquelas revistinhas que sua Igreja produzia. ─ Lá vem aqueles chatos das Testemunhas de Jeová outra vez!
Quantas vezes Mário ouvira pessoas se referindo a eles como sendo uns idiotas fanáticos que tentavam vender para o povo uma crença ultrapassada e fundamentalista que se apoiava em mitos e histórias da carochinha, que não já tinham o menor sentido em uma época em que a ciência já provara que o mundo é outra coisa?
Mas ele, que estudara a teodiceia ensinada pelos seus pastores nunca duvidara da justiça divina. Tinha certeza de que todo o sofrimento humano tinha um propósito; que Deus, sendo onipotente, onisciente e misericordioso, devia reservar para todos esses injustiçados da sorte uma recompensa em outra vida, enquanto os maus teriam o devido castigo. Dessa forma, o que aos olhos do vulgo parecia grosseira injustiça, passaria a ser uma inteligente estratégia de Deus para separar o joio do trigo e assim, em um mundo futuro a perfeita virtude seria instalada.
Estranha estratégia para um ser que tudo pode, como se supõe que Deus seja. Por que gastar milhões de anos de tentativas e erros para selecionar uma raça perfeita, se ele pode fazer isso com um simples sopro da sua boca? Essa era uma pergunta que Mário vivia fazendo a si mesmo, sem coragem de fazê-la ao seu pastor, pois sabia que se o fizesse, teria que romper com um passado que ainda não estava pronto para renegar.
Depois que Marta morrera, depois do horrível sofrimento que ela enfrentara, com aquele câncer, por dois longos e cruéis anos, e depois do próprio sofrimento dele por não poder fazer nada para aliviar as dores dela, e principalmente depois de rezar tanto para que Deus os ajudasse nessa provação, e ver que nada acontecera, ele também começou a duvidar da própria crença. Começou a perceber que aquela argumentação eclesiástica domingueira não convencia nem os próprios pastores, pois não percebia neles nenhum desapego pelos bens materiais, nem qualquer desejo de despir seus invólucros carnais para entrar logo nessa outra vida onde a justiça, afinal, seria feita.
“ É fácil pregar conformação e resignação ao sofrimento quando são os outros que o suportam”, concluiu ele, ao ouvir o pastor falar sobre a justiça divina. “O que vou dizer á Martinha amanhã, quando ela perguntar pela mãe dela”, sentindo as lágrimas aflorarem nos olhos.
Martinha era a sua filha de sete anos, que ele estava agora criando sozinho. "Como é difícil para um homem", pensava Mário, criar uma criança sozinho. Para uma mulher é mais fácil. Elas já têm o dom natural de criar uma família. Desde que o mundo é mundo e os seres humanos começaram a cumprir o mandamento bíblico do “crescei e multiplicai-vos," é a mulher que assume a tarefa de cuidar da prole, enquanto do homem se exige o encargo de ser o provedor do lar. Nem todos são capazes de cumprir essa tarefa, mas é o que natureza, em principio, quer eles façam. Coisa bem mais fácil, e assim mesmo...
Era isso que Mário estava pensando, sentado no banco da praça, tentando se recuperar da canseira que estava sentindo, depois de mais de duas horas varejando lojas e mais lojas de brinquedos atrás do presente de Natal que Martinha havia lhe pedido: uma caixinha de música, que ela havia visto em um filme, no qual uma música tocava e uma bailarina saia de dentro da caixinha, dançava a música inteira e depois voltava para dentro da caixa.Por conta disso ela dizia que iria ser bailarina quando crescesse. Ele também tinha visto o filme e sabia exatamente como era o presente que a Martinha queria, mas onde encontrá-lo? Afinal, caixinhas de músicas eram coisas tão antigas quanto máquinas de escrever neste tempo de tecnologias tão avançadas. Mas sonho de criança é como um pensamento de Deus. Quem mata o sonho de uma criança, mata
a própria manifestação divina na terra.
Procurou em todas as lojas, varejou até antiquários, mas não encontrou. Por isso estava agora sentado,tentando recuperar as pernas cansadas de andar e os olhos marejados de tristeza por não ter encontrado o que se filha tanto queria.
Estava começando a sentir um mau pai. E nesse momento sentiu ainda mais falta de Marta, sua esposa, pensando que esse seria o primeiro natal que passariam sem ela. Lágrimas silenciosas começaram a rolar dos seus olhos. Nem reparou na jovem que acabara de sentar-se ao lado dele no banco.
─ Véspera de natal é uma loucura, não é? Tanta gente na rua, tanta coisa para comprar, tantos presentes para dar...─ disse ela, como se estivesse falando consigo mesma.
Só então ele percebeu a presença dela. ─ É mesmo─ respondeu Mário, passando disfarçadamente a mãos nos olhos para enxugar as furtivas lágrimas que lhe desciam pelo rosto.
─ Já comprou os seus presentes? ─ perguntou a garota, com um ar bem jovial.
─ Na verdade não. Minha filha me pediu um presente difícil de achar. Acho que nem fabricam mais o tipo de brinquedo que ela me pediu ─ disse Mário.
─ É? E o que é que ela pediu? ─ perguntou a jovem.
─ Uma dessas caixinhas de música com uma bailarina. Acho que isso nem existe mais ─ disse Mário, desconsolado.
─ É. Hoje em dia é realmente estranho uma criança pedir um presente desses. Mas eu acho que posso ajudar o senhor a encontrar o que procura ─ disse a jovem.
─ É mesmo? ─ respondeu Mário, olhando para a jovem com alegria e esperança. E só então percebeu o quanto ela era bonita, com aquele vestido vaporoso e rodado. Parecia ter saído de um espetáculo de ballet com a roupa com a qual havia dançado o Lago do Cisne, de Tchaikovisky.
─ É. Mas antes o senhor tem que me ajudar em uma coisa─ disse ela com um sorriso angelical.
─ O que? ─ perguntou Mário, com curiosidade.
─ Tenho um monte de brinquedos para entregar em um orfanato e várias roupas e presentes para levar em um asilo ─ disse ela. ─ Ah! e também vou dançar para essas crianças e para os velhinhos. Por isso estou com esta roupa ─ completou a jovem, com aquele sorriso maravilhoso que já começava a cativar Mário.
─ Vai demorar muito? ─ perguntou Mário pensando no presente da Martinha e se ia dar tempo de comprá-lo.
─ Não. Pode ficar tranquilo. Vai dar muito tempo para a gente ir depois á loja onde eu sei que tem o que você quer ─ disse ela, como se estivesse adivinhando o pensamento dele.
Mário acompanhou a bela jovem até uma caminhonete cheia de presentes, todos embalados com papéis de lindas cores e amarrados com belas fitinhas. Depois foram a dois orfanatos e dois asilos. Em todos eles entregaram presentes e a garota dançou lindamente “ O Lago do Cisne”, ‘ Luzes da Ribalta”, “Quebra Nozes” e outros clássicos do ballet. Mário estava simplesmente comovido e impressionado com a simpatia e a amorosidade com que aquela jovem tratava as crianças e os velhinhos.
Por volta das oito horas da noite ela o levou á loja ele, com certeza, encontraria a caixinha de música que Martinha havia pedido.
─ Eu sei que lá tem pelo menos uma ─ disse a jovem. ─ Eu a vi ainda hoje.
Era uma loja de antiguidades. Realmente lá havia uma caixinha de música do tipo que Mário procurava. Era uma linda peça que tocava pelo menos 10 músicas próprias para ballet. Luzes da Ribalta, Quebra Nozes, Lago do Cisne, Sugar Plum Fairy, a Dança de Maria em West Side Story e outras. Só havia um problema. O lugar da bailarina estava vago.
─ Era uma peça de porcelana e quebrou. Infelizmente não encontrei ninguém que me pudesse repor ─ disse o vendedor, constrangido. ─ Mas se o senhor quiser levar assim mesmo, eu lhe dou 50 por cento de desconto.
Mário olhou para o lado procurando a sua jovem amiga para pedir uma opinião. Mas ela não estava mais ali. Esquadrinhou a loja á sua procura, sem encontrar. Saiu para a rua e olhou em todas as direções. Não a viu mais. Nem a caminhonete com a qual ele andara a tarde inteira com ela estava mais ali. Suspirou desconsolado. Será que nunca mais a veria? Era tão jovem e tão bonita...
A caixinha de música sem a bailarina era a coisa mais próxima do presente que a Martinha pedira. E tinha saído quase de graça. O dono da loja praticamente lhe dera o artefato, por um preço simbólico, como se quisesse se livrar dele. Infelizmente, ele não estava completo, pensou Mário. Mais uma vez ele ia decepcionar Martinha. Decididamente não era um bom pai. Não conseguia nem cumprir integralmente um desejo da sua filha. Sentiu outra vez, totalmente, a ausência de Marta. Interrogou-se novamente, sobre a justiça divina. Deus é justo? Deus existe? Se existe, porque permite que as pessoas boas sofram e os maus triunfem? O que mesmo se comemorava no Natal? O nascimento do Filho de Deus? E porque ele permitira que o próprio filho sofresse tanto para salvar uma humanidade que não merecia ser salva? Porque ele não conseguia nem fazer feliz a própria filha?
Mário sentiu que iria dormir naquela noite de natal com a sensação de um dever mal cumprido. Uma sensação de fracasso e derrota que lhe dava um amargo na língua como se ele tivesse bebido uma garrafa inteira de cachaça ruim.
Era quase meia noite quando Martinha entrou no quarto, onde ele estava sentado na cama, se sentindo o último dos homens.
─ Pai, eu te amo. Você achou a minha caixinha de música ─ disse a menina, pulando no pescoço dele.
─ Ah! filha, achei. Mas não sei se ela está do jeito que você queria. Sabe, ela está meio velhinha e parece que falta alguma coisa nela.
─ Nada, pai. Ela está perfeita. Igualzinha á do filme. Quer ver?
Martinha colocou a caixinha de música em cima da cama. Girou a chavinha e uma música encheu o quarto de alegria. Era o Lago do Cisne. De repente uma plataforma se abriu na tampa da caixinha e uma linda dançarina de porcelana apareceu. Usava um vestido branco e rodado. Mário olhou para ela e teve a impressão que já havia visto aquele rosto em algum lugar. Olhou mais detidamente. Sim. Ele agora tinha certeza que era ela. A jovem da praça.
─ Pai, você está chorando. O que é? Você está doente? ─ perguntou Martinha, olhando para as lágrimas silenciosas que caiam dos olhos de Mário.
─ Não filha. É que eu acabei de descobrir que Deus existe de verdade. E que Ele realmente nos ama. Só que ás vezes a gente não entende o que Ele quer dizer para nós...
Deus existe e sabe que você existe? Entre as seis bilhões de pessoas vivendo na terra, porque Deus se lembraria exatamente de você? Será que ele sequer sabe o seu nome? Deus é justo? Se é, por que ele deixa que aconteçam tantas coisas ruins? Porque Hitler não nasceu morto, porque Al Capone não sofreu um acidente mortal na infância, porque Jim Jones não teve um câncer na adolescência e morreu, antes de provocar a morte de tantos ingênuos que o seguiram até as selvas da Colômbia para terminarem daquela maneira? Porque Bin Laden não foi atingido por uma bomba antes de se tornar chefe de uma facção terrorista?
Sobretudo, porque Deus permitira que aquilo acontecesse com ele, ele que sempre acreditou na justiça divina, que até se propôs a pregá-la de porta em porta, abordando pessoas nas ruas e nas praças, enfrentando a má vontade e até a repulsa de muita gente, quando ele se aproximava com aquele papo de crente, para falar das histórias da Bíblia e depois tentar vender para elas aquelas revistinhas que sua Igreja produzia. ─ Lá vem aqueles chatos das Testemunhas de Jeová outra vez!
Quantas vezes Mário ouvira pessoas se referindo a eles como sendo uns idiotas fanáticos que tentavam vender para o povo uma crença ultrapassada e fundamentalista que se apoiava em mitos e histórias da carochinha, que não já tinham o menor sentido em uma época em que a ciência já provara que o mundo é outra coisa?
Mas ele, que estudara a teodiceia ensinada pelos seus pastores nunca duvidara da justiça divina. Tinha certeza de que todo o sofrimento humano tinha um propósito; que Deus, sendo onipotente, onisciente e misericordioso, devia reservar para todos esses injustiçados da sorte uma recompensa em outra vida, enquanto os maus teriam o devido castigo. Dessa forma, o que aos olhos do vulgo parecia grosseira injustiça, passaria a ser uma inteligente estratégia de Deus para separar o joio do trigo e assim, em um mundo futuro a perfeita virtude seria instalada.
Estranha estratégia para um ser que tudo pode, como se supõe que Deus seja. Por que gastar milhões de anos de tentativas e erros para selecionar uma raça perfeita, se ele pode fazer isso com um simples sopro da sua boca? Essa era uma pergunta que Mário vivia fazendo a si mesmo, sem coragem de fazê-la ao seu pastor, pois sabia que se o fizesse, teria que romper com um passado que ainda não estava pronto para renegar.
Depois que Marta morrera, depois do horrível sofrimento que ela enfrentara, com aquele câncer, por dois longos e cruéis anos, e depois do próprio sofrimento dele por não poder fazer nada para aliviar as dores dela, e principalmente depois de rezar tanto para que Deus os ajudasse nessa provação, e ver que nada acontecera, ele também começou a duvidar da própria crença. Começou a perceber que aquela argumentação eclesiástica domingueira não convencia nem os próprios pastores, pois não percebia neles nenhum desapego pelos bens materiais, nem qualquer desejo de despir seus invólucros carnais para entrar logo nessa outra vida onde a justiça, afinal, seria feita.
“ É fácil pregar conformação e resignação ao sofrimento quando são os outros que o suportam”, concluiu ele, ao ouvir o pastor falar sobre a justiça divina. “O que vou dizer á Martinha amanhã, quando ela perguntar pela mãe dela”, sentindo as lágrimas aflorarem nos olhos.
Martinha era a sua filha de sete anos, que ele estava agora criando sozinho. "Como é difícil para um homem", pensava Mário, criar uma criança sozinho. Para uma mulher é mais fácil. Elas já têm o dom natural de criar uma família. Desde que o mundo é mundo e os seres humanos começaram a cumprir o mandamento bíblico do “crescei e multiplicai-vos," é a mulher que assume a tarefa de cuidar da prole, enquanto do homem se exige o encargo de ser o provedor do lar. Nem todos são capazes de cumprir essa tarefa, mas é o que natureza, em principio, quer eles façam. Coisa bem mais fácil, e assim mesmo...
Era isso que Mário estava pensando, sentado no banco da praça, tentando se recuperar da canseira que estava sentindo, depois de mais de duas horas varejando lojas e mais lojas de brinquedos atrás do presente de Natal que Martinha havia lhe pedido: uma caixinha de música, que ela havia visto em um filme, no qual uma música tocava e uma bailarina saia de dentro da caixinha, dançava a música inteira e depois voltava para dentro da caixa.Por conta disso ela dizia que iria ser bailarina quando crescesse. Ele também tinha visto o filme e sabia exatamente como era o presente que a Martinha queria, mas onde encontrá-lo? Afinal, caixinhas de músicas eram coisas tão antigas quanto máquinas de escrever neste tempo de tecnologias tão avançadas. Mas sonho de criança é como um pensamento de Deus. Quem mata o sonho de uma criança, mata
a própria manifestação divina na terra.
Procurou em todas as lojas, varejou até antiquários, mas não encontrou. Por isso estava agora sentado,tentando recuperar as pernas cansadas de andar e os olhos marejados de tristeza por não ter encontrado o que se filha tanto queria.
Estava começando a sentir um mau pai. E nesse momento sentiu ainda mais falta de Marta, sua esposa, pensando que esse seria o primeiro natal que passariam sem ela. Lágrimas silenciosas começaram a rolar dos seus olhos. Nem reparou na jovem que acabara de sentar-se ao lado dele no banco.
─ Véspera de natal é uma loucura, não é? Tanta gente na rua, tanta coisa para comprar, tantos presentes para dar...─ disse ela, como se estivesse falando consigo mesma.
Só então ele percebeu a presença dela. ─ É mesmo─ respondeu Mário, passando disfarçadamente a mãos nos olhos para enxugar as furtivas lágrimas que lhe desciam pelo rosto.
─ Já comprou os seus presentes? ─ perguntou a garota, com um ar bem jovial.
─ Na verdade não. Minha filha me pediu um presente difícil de achar. Acho que nem fabricam mais o tipo de brinquedo que ela me pediu ─ disse Mário.
─ É? E o que é que ela pediu? ─ perguntou a jovem.
─ Uma dessas caixinhas de música com uma bailarina. Acho que isso nem existe mais ─ disse Mário, desconsolado.
─ É. Hoje em dia é realmente estranho uma criança pedir um presente desses. Mas eu acho que posso ajudar o senhor a encontrar o que procura ─ disse a jovem.
─ É mesmo? ─ respondeu Mário, olhando para a jovem com alegria e esperança. E só então percebeu o quanto ela era bonita, com aquele vestido vaporoso e rodado. Parecia ter saído de um espetáculo de ballet com a roupa com a qual havia dançado o Lago do Cisne, de Tchaikovisky.
─ É. Mas antes o senhor tem que me ajudar em uma coisa─ disse ela com um sorriso angelical.
─ O que? ─ perguntou Mário, com curiosidade.
─ Tenho um monte de brinquedos para entregar em um orfanato e várias roupas e presentes para levar em um asilo ─ disse ela. ─ Ah! e também vou dançar para essas crianças e para os velhinhos. Por isso estou com esta roupa ─ completou a jovem, com aquele sorriso maravilhoso que já começava a cativar Mário.
─ Vai demorar muito? ─ perguntou Mário pensando no presente da Martinha e se ia dar tempo de comprá-lo.
─ Não. Pode ficar tranquilo. Vai dar muito tempo para a gente ir depois á loja onde eu sei que tem o que você quer ─ disse ela, como se estivesse adivinhando o pensamento dele.
Mário acompanhou a bela jovem até uma caminhonete cheia de presentes, todos embalados com papéis de lindas cores e amarrados com belas fitinhas. Depois foram a dois orfanatos e dois asilos. Em todos eles entregaram presentes e a garota dançou lindamente “ O Lago do Cisne”, ‘ Luzes da Ribalta”, “Quebra Nozes” e outros clássicos do ballet. Mário estava simplesmente comovido e impressionado com a simpatia e a amorosidade com que aquela jovem tratava as crianças e os velhinhos.
Por volta das oito horas da noite ela o levou á loja ele, com certeza, encontraria a caixinha de música que Martinha havia pedido.
─ Eu sei que lá tem pelo menos uma ─ disse a jovem. ─ Eu a vi ainda hoje.
Era uma loja de antiguidades. Realmente lá havia uma caixinha de música do tipo que Mário procurava. Era uma linda peça que tocava pelo menos 10 músicas próprias para ballet. Luzes da Ribalta, Quebra Nozes, Lago do Cisne, Sugar Plum Fairy, a Dança de Maria em West Side Story e outras. Só havia um problema. O lugar da bailarina estava vago.
─ Era uma peça de porcelana e quebrou. Infelizmente não encontrei ninguém que me pudesse repor ─ disse o vendedor, constrangido. ─ Mas se o senhor quiser levar assim mesmo, eu lhe dou 50 por cento de desconto.
Mário olhou para o lado procurando a sua jovem amiga para pedir uma opinião. Mas ela não estava mais ali. Esquadrinhou a loja á sua procura, sem encontrar. Saiu para a rua e olhou em todas as direções. Não a viu mais. Nem a caminhonete com a qual ele andara a tarde inteira com ela estava mais ali. Suspirou desconsolado. Será que nunca mais a veria? Era tão jovem e tão bonita...
A caixinha de música sem a bailarina era a coisa mais próxima do presente que a Martinha pedira. E tinha saído quase de graça. O dono da loja praticamente lhe dera o artefato, por um preço simbólico, como se quisesse se livrar dele. Infelizmente, ele não estava completo, pensou Mário. Mais uma vez ele ia decepcionar Martinha. Decididamente não era um bom pai. Não conseguia nem cumprir integralmente um desejo da sua filha. Sentiu outra vez, totalmente, a ausência de Marta. Interrogou-se novamente, sobre a justiça divina. Deus é justo? Deus existe? Se existe, porque permite que as pessoas boas sofram e os maus triunfem? O que mesmo se comemorava no Natal? O nascimento do Filho de Deus? E porque ele permitira que o próprio filho sofresse tanto para salvar uma humanidade que não merecia ser salva? Porque ele não conseguia nem fazer feliz a própria filha?
Mário sentiu que iria dormir naquela noite de natal com a sensação de um dever mal cumprido. Uma sensação de fracasso e derrota que lhe dava um amargo na língua como se ele tivesse bebido uma garrafa inteira de cachaça ruim.
Era quase meia noite quando Martinha entrou no quarto, onde ele estava sentado na cama, se sentindo o último dos homens.
─ Pai, eu te amo. Você achou a minha caixinha de música ─ disse a menina, pulando no pescoço dele.
─ Ah! filha, achei. Mas não sei se ela está do jeito que você queria. Sabe, ela está meio velhinha e parece que falta alguma coisa nela.
─ Nada, pai. Ela está perfeita. Igualzinha á do filme. Quer ver?
Martinha colocou a caixinha de música em cima da cama. Girou a chavinha e uma música encheu o quarto de alegria. Era o Lago do Cisne. De repente uma plataforma se abriu na tampa da caixinha e uma linda dançarina de porcelana apareceu. Usava um vestido branco e rodado. Mário olhou para ela e teve a impressão que já havia visto aquele rosto em algum lugar. Olhou mais detidamente. Sim. Ele agora tinha certeza que era ela. A jovem da praça.
─ Pai, você está chorando. O que é? Você está doente? ─ perguntou Martinha, olhando para as lágrimas silenciosas que caiam dos olhos de Mário.
─ Não filha. É que eu acabei de descobrir que Deus existe de verdade. E que Ele realmente nos ama. Só que ás vezes a gente não entende o que Ele quer dizer para nós...