Abril sangreto
Não houve um enterro. Nada de cerimônias, velórios ou marchas fúnebres.
Não houve aquele aroma de terra vermelha. Terra recentemente molhada. Nem o cheiro nauseante dos cravos caprichosamente amarrados em arranjos coloridos.
E embora às vezes eu consiga imaginar a superfície áspera da madeira enquanto deslizo minhas unhas sobre a tábua de uma mesa, por exemplo, não houve um caixão branco descendo lentamente para uma vala de sete pés enquanto o ar silencioso e frio de um cemitério invernal sopra sobre o som das batidas de um piano que toca hinos metodistas.
Nada disso.
Não enterrei minha filha e não faço idéia do que fizeram com o corpinho dela.
Para falar a verdade, eu também não me importei quanto ao fato na ocasião e só alguns dias – ou talvez tenham sido semanas – eu viria a pensar no assunto mesmo que de uma maneira vaga e desconectada.
Quando se passa por um grande trauma, acabamos submersos num oceano de falsas realidades. Eu fiquei durante um bom tempo perdida nesse limbo em que a sensação de estar conectada a si mesmo por um fio de telefone muito frágil é claustrofóbica.
Eu ainda engolia a comida ruim do hospital, sorria para as enfermeiras, jogava palavras cruzadas e lia as notícias na internet. Mas durante todo o tempo eu tinha aquela sensação macabra de estar pendurada, balançando como um pêndulo, sobre um abismo escuro e mal cheiroso.
Tudo que eu sei é que puxaram a cabeça do bebê para fora – já que ela era muito grande para sair – e introduziram um tubo oco em sua boca. Através da sucção, eles sugaram sua massa cerebral e isso fatalmente a levou a morte. Eu não posso dizer o que aconteceu depois. Mas o mais provável é que tenham atirado tudo em um balde de metal e jogado sob um monte de lixo hospitalar.
Eu quase não recebi visitas e definitivamente não me mandaram flores. Nenhum daqueles montes de parentes e amigos que aparecem quando acontece uma tragédia. Ninguém formou um escudo de proteção ao meu redor e ninguém tentou me distrair com piadas e conversas engraçadas. Não havia chá e nem biscoitos de funeral. Não houve funeral, mas isso eu já disse...
Se fossem alguns anos antes, talvez tivesse sido diferente. Mas as pessoas se cansam uma das outras e isso é a mais pura verdade. Eu quebrei – em mais de uma ocasião - a confiança de todos que gostavam de mim e até mesmo daqueles que não gostavam, mas fingiam gostar.
Apenas meu pai – um homem atarracado de bigode e sobrancelhas grossas e pescoço curto – apareceu no hospital em certo fim de tarde, quase no limite dos horários de visitas.
Era terça-feira e ele usava um terno de trabalho caro mesmo fazendo trinta graus lá fora. Só usava roupas caras, meu pai. E fazia questão de demonstrar seu poder através do brilho de um relógio fino. Uma pulseira dourada que escapava nos pulsos cabeludos através das mangas cuidadosamente dobradas da camisa.
Eu não esperava que ele aparecesse. Na verdade, eu não desejava que ele desse a cara gorda. Mas lá estava o homem, olhando para mim, com aquele rosto enrugado, frio e sem expressão.
Nenhum de nós dois disse nada. Eu mal poderia olhar naqueles olhos. Nem quando criança, no auge da minha inocência eu poderia.
- Você – ele disse.
Então fizemos silêncio. O monitor cardíaco emitia um ruído tedioso e monofásico. Havia aquele cheiro de água sanitária. Cheiro de hospital. Um aroma que lembrava a morte. Menos quando estava impregnado em você. Nesses casos, é a morte quem parecia adquirir seu cheiro. Eu já estava fedendo iodo e clorofórmio.
- Você – meu pai repetiu.
Lembro-me que tudo que eu mais desejava era que ele fosse até meu leito e me esbofeteasse bem nas maçãs do rosto. Nada poderia me deixar tão feliz quanto vê-lo furioso, vermelho, socando-me com toda a força que um homem de cento e dez quilos presumidamente tem.
Mas ele não me bateu. Acho que meu pai nunca levantou a mão para mim. Não que eu me lembre, pelo menos...
Minto, teve uma vez... Quando a minha mãe morreu por causa de um aneurisma cerebral - que inundou seu cérebro com sangue fazendo-a desabar no meio de um metrô lotado - eu disse a ele que era sua culpa que ela tivesse partido. Eu tinha apenas oito anos e o homem me atingiu com um tapa seco na bochecha. Lembro-me do calor ruborizado e da dor aguda em seguida. E as palavras dele: “nunca mais diga isso”.
Esta foi a primeira e última vez. O homem tinha um jeito diferente de punir. Sua arma era a frieza e indiferença; a decepção visivelmente aflorando no rosto até que as palavras “Você me decepcionou” estivessem bem claras, estampadas em sua testa.
Aquilo de certa forma machucava mais do que qualquer agressão física.
Como era mesmo aquela frase de Bukowski? Alguma coisa sobre nunca esperar demais dos outros porque não existe quem não decepcione você... Ver aquele pensamento confirmado no rosto do meu pai doía. Cristo doía demais.
- Alcoólicos Anônimos – vociferou meu pai – assim que você sair daqui.
- Sim senhor – confirmei.
- Clínica de reabilitação...
- Sim senhor.
O homem girou a cabeça dando uma olhada através do quarto do hospital.
- Pai, por favor, eu...
Ele fez sinal para que eu me calasse.
- Eu não quero ouvir as suas desculpas. Deus, já ouvi desculpas demais.
- Sinto muito...
- Não preciso dizer o quanto você passou dos limites. Você matou seu filho, você matou uma pessoa inocente e quase matou a si mesma.
A imagem do meu pai com três dedos erguidos no ar era aterrorizante. Pensei que fosse chorar. Mas não chorei. Acho que derramar lágrimas era algo que estava completamente fora do meu sistema. A tristeza beliscava cada centímetro do meu corpo, mas eu seria incapaz de fazê-la saltar para fora.
- Eu tentei deixar seu emprego em modo de espera até você... Até você ficar boa – disse – mas mesmo tendo estudado com dois dos diretores do conselho, sua demissão foi inevitável.
Eu pouco me importava com aquele emprego idiota. Na verdade, o grande barato de trabalhar com medicina naquele hospital era que eu tinha acesso livre às agulhas.
- Sim senhor.
Meu pai esfregou os olhos com tanta força que eu pensei que ele os arrancaria para fora. A fronte estava vermelha como se ele tivesse tomado a pior insolação da sua vida.
Vê-lo daquele jeito me fazia sentir um vazio esquisito e doloroso dentro do peito. Acho que chamam isso de culpa.
Eu tinha uma pergunta, mas não sabia bem se era apropriado fazê-la. Tinha certeza que ele me responderia tranquilamente – embora com aquela mesma cara tachada com decepção e desgosto - por que meu pai não perdia a calma, nunca.
- Pai. – eu disse – tem notícias do Marcos?
Dito e feito. Ele me olhou com aquela expressão, como se tivesse acordado no dia da criação e nunca mais adormecido.
- Não faço idéia do que aconteceu aquele vagabundo. E se souber... Se eu souber que você falou com ele mais uma vez nunca mais te chamarei de filha. Está entendendo?
Eu não respondi.
- Você entendeu?
- Entendi.
Sentia saudades do Marcos, mas nunca mais o vi. Ele não apareceu no hospital e nem tão pouco me procurou depois que eu sai daquele lugar.
Para ser bem sincera, eu o procurei uma vez, ligando para antigos amigos. Mas ninguém sabia onde ele estava. Uma coisa que descobri – tarde demais – é que no meio dos viciados em drogas, sua única companheira é a agulha. Ninguém sabe ou se importa por onde os outros andam e para eles, pouco ligaria se Marcos estivesse preso ou esmagado contra a traseira de um caminhão, tão achatado que só poderiam retirá-lo com uma pá...
A última vez que o vi foi naquela noite de abril, um dia antes de parar no hospital.
Eu estava chapada. Deus, estava tão chapada que eu já havia passado por todos aqueles estágios da fissura. Eu já tinha vomitado, tremido e rido como uma louca.
A sensação é de poder sentir com clareza outra mente dentro da própria mente disparando pensamentos, mas não os seus próprios pensamentos. Como se todos os problemas do mundo de repente não parecessem tão ruins. Uma vez, ouvi um pregador de rua dizer que as drogas eram uma ferramenta do diabo para imitar a presença e a transformação de Jesus Cristo na vida das pessoas.
É complicado explicar.
Não me lembro de muita coisa. Havíamos transado, disso eu me lembro porque sempre fazíamos sexo no apartamento dele quando eu estava lá. Um sexo doloroso e prazeroso ao mesmo tempo. Com ele em cima e eu de quatro. Era sempre assim. Eu não poderia encarar o rosto drogado dele e não queria que ele visse o meu. E então, depois do sexo, algum de nós dois teve a brilhante idéia de dirigir enlouquecidos pela cidade.
E foi aí que a coisa deu errado.
Tudo o que posso fazer é imaginar o que o garoto – de vinte ou vinte e um anos – pensou quando escutou o barulho da fricção dos freios no asfalto. Eu quase posso ver sua face de espanto, lentamente substituída por uma expressão de horror seguida de pânico. Talvez ele tenha sacado que a morte estava acelerando a cento e vinte e dois quilômetros por hora numa pista de quarenta. Talvez não. Talvez ele ainda tenha tido tempo de uma última redenção, se fosse religioso; ou quem sabe tenha visto um feixe luminoso que lentamente ganhava forma de alguém que ele amava, uma namorada, quem sabe.
Acredito que tenha morrido na hora. Marcos é quem estava no volante – e vejam só como são as coisas – ele não quebrou um único osso, até onde eu sei, mesmo com o carro capotando para fora do acostamento.
Eu me ferrei. Não tanto quanto o garoto que matamos, mas quebrei dois braços, perfurei um dos pulmões e transformei minha gravidez num risco de morte.
O que levou a um aborto irremediável.
Só me contaram depois de três dias, embora eu já soubesse que não havia nada além de um útero vazio dentro de mim. Uma mãe sempre sabe. Sempre. Queira ela admitir ou não. Mas eu evitava pensar no assunto porque de certa forma, nunca seria uma boa mãe.
- Eu estou indo – disse papai.
- O senhor virá de novo?
- Mandarei alguém buscá-la quando receber alta.
- Certo. Eu agradeço.
- A.A e reabilitação.
- Sim senhor.
Papai saiu sem olhar para trás batendo a porta do quarto e me deixando sozinha com os ruídos sonolentos do monitor cardíaco.
Aquele foi uma das piores noites da minha vida. Um dos pontos altos em estar maluco é que você não dorme, mas apaga. E apagado não se sonha. Não se têm pesadelos como aqueles que me assombrariam durante todo o resto da minha vida.
Sonhos vívidos, reais, tão verdadeiros que eram quase sólidos. Tão intensos que eu podia sentir os cheiros e ouvir os sons que entravam pelos meus ouvidos e gelavam minha espinha. Pesadelos que começavam com um feto humano irrompendo através da minha vagina numa explosão de sangue. Um feto demoníaco, com olhos de lagarto e dentes pontiagudos como os de um morcego. Uma criatura canibalesca e macabra que comia a placenta e arranhava a parede do meu útero se alimentando da carne materna...
Acordei com um sobressalto doloroso. Estava tudo silencioso e escuro. As lágrimas ainda estavam úmidas e quentes no meu rosto.
A experiência fora tão real que eu levantei os lençóis esperando ver um feto maligno olhando para mim através da bata de hospital.
Não havia nada e por mais idiota que pareça, me senti aliviada.
Respirei fundo e fechei os olhos, mas não dormi em momento algum no resto daquela noite.