Bad Moon Rising
SÃO PAULO – 00:17
O casal interrompe a conversa para observar o adolescente no assento oposto, duas fileiras a frente. Magro e de aspecto doentio, ele treme encolhido contra a janela do ônibus. Seus gemidos se tornando cada vez mais audíveis. Longos lamentos angustiados que causam calafrios.
Além do trio e do motorista o ônibus está deserto.
A moça se agarra ao companheiro com medo. O rapaz resolve checar o que se passa com o garoto e se levanta.
– Ô baxinho, tudo bem?
Como resposta recebe apenas uma pausa nos gemidos e resolve se aproximar. Como se pressentisse o pior, a namorada agarra a manga de seu moletom e suplica com o olhar. “Não vá!”, ela quer dizer, mas as palavras congelam em sua garganta e o rapaz se vira. Dá mais um passo. Dois. Os gemidos recomeçaram, agora soam como rosnados febris. O ônibus passa por um túnel e o corredor mergulha em escuridão. O rapaz paralisa por um momento, invadido por um inexplicável medo que lhe causa náuseas. O viaduto passa e o corredor é banhado novamente pelo luar intenso. O rapaz retoma sua lenta aproximação, os lamentos ficando mais altos a cada passo. Não é mais a curiosidade que o impele, é o receio de passar vergonha. Ele estica o braço e toca o ombro do garoto:
- Ei, tudo bem? – ele se força a dizer.
Repentinamente o garoto se vira e um calafrio percorre a espinha do rapaz. Encarando-o ainda sentado está um ser abominável, com certeza um drogado ou fugitivo de um sanatório. Os olhos arregalados quase não têm pupila, com íris amarelas que irradiavam ódio, pálpebras e gengiva indicando inicio de sangramento conforme a criatura arregaçava os dentes e rosnava a modos de cão. Uma característica mais macabra era que os pelos que cobriam o queixo, pescoço e as orelhas do garoto estavam eriçados e longos, ficando muito claros ao luar.
O namorado recua um passo vacilante, suas pernas pesadas como sacos de cimento. Com o angulo de visão desobstruído a garota é atingida pelo pavor e emite um breve grito antes de cobrir a boca com as mãos. O silvo corta o silêncio como uma faca. A criatura fica em pé em um salto e agarra o rapaz ainda paralisado de medo. Ele retoma o controle das cordas vocais tarde demais e articula um gorgolejo que pretendia ser um grito de dor quando as mandíbulas do animal se fecham sobre sua jugular. A garota grita novamente, o som estridente e longo fere os ouvidos do animal. O motorista, curioso com o barulho mais alto que seus fones de ouvido, freia bruscamente ao ver a cena pelo espelho interno do ônibus. O rapaz e a criatura são arremessados para a frente.
O gordo só consegue pensar que está preso em um pesadelo, mesmo quando a criatura se choca violentamente contra o painel. Atônito, ele observa a fera que lembra pelas roupas e pelo porte o moleque febril que subiu no ônibus três pontos atrás. O animal o encara, com olhar demoníaco e dentes sanguinolentos. Só teve tempo de o reconhecer por um segundo, antes que a criatura cravasse as unhas em seu rosto gordo e puxasse para trás como se quisesse arrancar a cabeça dos ombros. Os retalhos no rosto queimam como ferro derretido e o sangue encobre sua visão, fazendo com que ele sinta apenas com os outros quatro sentidos a dor lancinante, o cheiro pútrido e o calor nauseante de suas tripas sendo arrancadas e derramadas por seu colo.
O gordo está morto, mas o animal não se banqueteia da gordura. Ele fareja, acima de todos os cheiros que invadem a suas narinas, o rastro que o impele, a vibração vinda do centro do ônibus.
Com o impacto, a garota provavelmente quebrou algumas costelas no banco da frente, e por isso perdeu o fôlego. O animal sente sua pulsação. Uma fêmea no cio não se disfarça tão facilmente em um ambiente fechado. Seus instintos vibram do fundo de suas entranhas.
Ela está agonizando, caída sob um banco e se mexendo. O animal passa pelo rapaz semi-degolado no assoalho e saboreia cada passo conforme seu ângulo de visão o permite vê-la saindo para o corredor. Ela tem lágrimas no rosto e sangue na boca da língua mordida na queda. De fato ela tem uma mão pressionando o tronco na altura do pulmão esquerdo, e com dificuldade para respirar.
Ele a observa se rastejar, lenta e agoniante, sem tirar os olhos cheios de pavor dos seus, seu jovem corpo pulsante, transpirando e sangrando. Um banquete para o olfato. Ela soluça e tenta articular uma suplica, mas a falta de folego não melhorou seu timbre. Os ouvidos do animal reclamam e ele salta sobre a tenra carne. O grito da garota sobe um tom quando ele cai com o joelho sobre seu tórax e começa a rasgar seu pescoço. Os gritos rapidamente se tornam gorgulhos e o sangue respinga em seu rosto, bolhas se formando com o ar expelido dos pulmões. Com a carne e sangue quente descendo ao estomago e se sentindo plenamente vivo, o animal ergue o focinho molhado de sangue e uiva com todo o seu ser.
Num raio de dois Quilômetros pôde-se ouvir a canção da criatura, um arrepiante som que crescia em dois tons e decaia longa e lamuriosamente. Não havia dúvida para quem ouvia, petrificado, de que um animal terrível e macabro havia acabado de abrir sua temporada de caça.
Entre sangue e intestinos no assoalho do ônibus, os fones de ouvido ainda presos ao MP3 surrado, começam a emitir os primeiros acordes de um clássico da banda Creedence Clearwater Revival...