O Golem (continuação)
...E então, eis que a criatura passou a cobiçar cada parte do corpo responsável por um sentido ou sentimento que ela desejava ter. Ora, com o tempo ela passou a perceber que o amor, por exemplo, brotava do coração. O paladar, da língua... A sabedoria e a inteligência, do cérebro... (quanto a isso Manolus podia ficar despreocupado). E assim, de observação em observação, o golem decidiu que tinha meios de se tornar humano.
Um dia, não muito tarde a partir dali, um dos filhos de Manolus acordou sem os olhos, desesperado, gritando que havia trevas por todos os lados! Houve correria e desespero, e em meio ao sangue que ainda vertia, perceberam na janela a cabeça do golem observando... agora com olhos próprios! Não era preciso ser um gênio para entender o que estava acontecendo. Trancaram-se todos dentro de casa, e por longos dias acompanhavam o ruído do golem lá fora, tentando entrar...
Por um tempo conseguiram afastá-lo, mas um dia, quando a noite caiu e todos dormiram, inclusive um dos filhos que deveria ficar de prontidão, uma outra criança despertou, agora sem o couro cabeludo!
Foi uma outra correria, não entendiam como a criatura entrara... e lá fora, degustando o sofrimento dentro da cabana, a criatura de barro, agora com uma sinistra e pegajosa peruca loira.
E assim, conforme os dias iam passando, surgira um banguela... um desnarizado (talvez essa palavra não exista), um sem orelha... sem lingua... Até sem bilau, porque pelo que me constou depois, o golem queria era ser macho...
Até que perceberam que faltavam apenas duas coisas para satisfazer o desejo terrível da criatura em ser humana. Um cérebro e um coração!
Manolus ainda não havia sido violado, e a sua esposa também não. A coisa estava tensa. Um espirro na escuridão era a certeza de um sopapo na orelha... de quem tinha...
Nove dias sem sair da cabana... quatro sem comer... Até que alguém bate a porta:
Toc, toc... - Sempre quis escrever essa onomatopeia...
Manolus abriu a porta, embora o golem não costumasse bater antes de entrar, Manolus também não costumava usar muito o cérebro, como visto.
Era o Mago! Sim, lá estava ele. Contemplando aquela cena dantesca, dos moradores da cabana brancos como fantasmas, por não verem a luz do sol já a algum tempo, e magros como pescoço de peru, por não comerem nada há dias. Um lhe sorriu sem os dentes, o outro estava sem orelha, a outra sem cabelo, e aquilo parecia que as portas do inferno haviam sido abertas.
-Onde está ele? Onde está ele? - quis saber Manolus.
-Partiu, foi-se.- respondeu-lhe o mago.
-Como pode, ele não completara a sua transformação? Ainda falta-lhe o coração e o cérebro.
-Não Manolus, meu filho. Você se engana, ele está completo sim.
Ele desejava ser um humano, e tornou-se um. Primeiro, antes mesmo de roubar-lhes a primeira orelha, quando cobiçou, desejou e invejou... Ali, a sua transformação já estava completa. Quanto ao cérebro e ao coração... São usados por poucos, principalmente os dois ao mesmo tempo. Se ele os possuísse, não seria mais humano, seria tudo, menos humano.