Trevas

"Ave Femina, Morituri te salutant."

(Brazilio)

Que desgraçada imunda alma jaz nas entranhas do inferno... Que desgraçada!

Andando entre os vivos - amontoados de carne débeis e nojentos - era poderoso e aprumado; não lhe faltavam riquezas, satisfação dos desejos vis, solução aos muitos devaneios coléricos.

Mas morreu. Morreu, como todos morrem, para deixar o luxo do engodo apodrecendo num ataúde de madeira nobre.

Então, conheceu o além. Aquele lugar fantástico e duvidoso do qual todos falam. Olhou em volta, procurou sua mansão, suas joias, seu cofre, seus amigos oportunistas, sua mulher.

Nada.

Apenas a escuridão, vez ou outra interrompida por luminárias opacas, que outros tantos infelizes carregavam, arrastando-se por entre o breu com suas lamentações e incompreensões.

A seda, o linho fino, o couro, a prata e o diamante deram lugar a trapos desgrenhados, de material irreconhecível; sujos, fétidos, envolvendo-lhe a silhueta do que já fora um corpo e deixando-lhe os pés descalços.

Quem antes acreditava ser dono das próprias veredas, sem medo dos inimigos ou das vinganças, agora treme de pavor e insta por socorro. Em vão.

De tanto vagar e vagar naquele abismo invisível, de observar os errantes quando apareciam, esmoreceu. O cansaço pesou-lhe nos os ombros e os pensamentos, antes desorganizados e eivados de temor, acalmaram-se pela própria fadiga; caindo num beco rochoso e lamacento, desistiu de entender ou insurgir-se contra aquilo que parecia ser seu destino.

"És morto!", ouvia ecoar pelas entranhas da gigantesca masmorra. Aos poucos, as lembranças voltavam, até que lhe viesse à tona a cama do hospital, o último rebenque de vida e os sete palmos de terra escura. Sim, era morto. Convenceu-se, afinal.

Ousava imaginar se aquela seria a geena; se fosse, que castigos lhe aguardavam e onde estava o fogo. Padecia de frio. Chorava com discrição, como se ali a discrição fosse relevante, ou a vergonha.

Em verdade, sentiu vergonha. Num primeiro momento, das vestes que usava; num outro, de ter tido vergonha das vestes que usava! Um paradoxo de sentimentos com as propriedades suficientes para levar à debilidade total.

Permanecer onde estava parecia a melhor das opções. Não tinha mais ânimo para caminhar e não possuía sequer uma lamparina. Se já estava morto, morrer não poderia. Se aquele era o inferno, por tudo que ouvira enquanto vivo, não sofria a pior das mazelas. Talvez, habituando-se ao frio, à solidão, aos detalhes horrorizantes na escuridão, poderia suportar a eternidade ali.

Mas não foi assim.

Na parede de rochas úmidas do beco escuro arregaçou-se uma passagem. Redonda e flamejante, psicodélica e perturbadora, ainda assim tinha a vantagem da luz, e atraiu o desafortunado feito a lâmpada ao inseto.

Entrar naquele turbilhão colorido foi como morrer de novo. A dissociação de todas as condições do homem ali era possível; os sentidos não se relacionavam mais, e nada do que podia ver ou ouvir parecia real. Abominável viajem até o desconhecido.

Do outro lado, o mundo tridimensional de Euclides inexistia. As formas eram complexas e a ideia de largura, altura e profundidade não se aplicavam. Ainda que o breu permanecesse, algumas figuras humanoides dentro de formas geométricas iluminavam de vago o ambiente. Erguiam-se e desmoronavam instantaneamente homéricas paredes em fileiras, a formar e derrubar barreiras entre um ponto e outro.

Antes que pudesse vertiginar, precipitou-se em queda livre por um buraco aberto debaixo de seus pés, que lhe atirou a um breu intenso novamente, ainda mais profundo que o inicial.

Só pôde ver a paisagem ao redor quando, ao longe, romperam relâmpagos avermelhados no horizonte, seguidos de abafados trovejos. Estava agora imerso numa horrível natureza que parecia um pântano.

À sua frente, havia um colossal portão de ferro retorcido, enferrujado, rodeado por árvores e rochas. Atrás de si, não havia nada se não o breu; ante a si, não havia nada se não o portão. E no portão havia uma placa de mármore. "Tenebris".

Rangindo, agônico, vagarosamente, o portão abriu, gentil e aterradoramente oferecendo entrada. Não havia escolha além de entrar.

Compelindo-o ao interior da horrenda floresta pantanosa, o portão fechou-se com desacorsoante estrondo.

Que desgraçada imunda alma jaz nas entranhas do inferno... Que desgraçada!

Cada vez mais dentro de seu próprio calabouço, cada vez mais próximo da tortura sem precedência. Sempre que o relâmpago sanguinolento cortava a cúpula semi-céu, enxergava pouco a pouco os pormenores daquele lugar nefasto.

Aves primitivas sobrevoavam as montanhas cinzentas; animais rastejantes de todos os tipos engalfinhavam-se no meio da lama e dos barrais; serpentes de olhos faiscantes enrodilhavam-se nos troncos das deformadas árvores enegrecidas; alguma criatura qualquer espreitava por entre os matagais sinistros.

Andando, às resvaladas, por um estreito caminho que se estendia a perder de vistas, deparou-se com um amontoado de casebres na encosta de um barranco.

Bateu à porta daquele que parecia ser o menos precário. Abriu a portinhola um homem velho e cego, que esbravejava em um idioma desconhecido; estava completamente desfigurado e poucos traços guardava ainda de ser humano.

Vendo o velho, correu como conseguiu pela estrada escorregadia, e andou, por mais alguma distância.

Não pôde nunca deduzir o tempo. Sempre era noite. Entendeu então que o tempo, em verdade, não existe; era contado através de fenômenos, e onde ele estava, os fenômenos eram muito diferentes e impossível contar minutos, horas ou dias. Poderia estar ali há cinco minutos, uma hora, um dia... Não lhe importava muito encontrar um método para descobrir.

Embora cansado, sujo e com frio, não sentia fome ou sono. Tinha dor nos pés e nos olhos. Procurava alguém ou alguma luz qualquer. Em vão.

Ouvia grunhidos estridentes, tosses secas, choros distantes. Procurou abrigo naquela noite sem fim, nada encontrando. Antes, foi encontrado.

"Quem conhece a face das trevas jamais suportará a luz".

Era um rosto pairando no ar, ou ainda uma máscara análoga a um rosto. Aparecia e sumia no meio do escuro, deixando rastros de fumaça. Ao surgir, emanava certo brilho branco nos contornos, dando-lhe expressões que iam do rude ao alegre.

Foi perseguido pelo esquizoide ente planador até esbarrar num áspero muro. Pareceu-lhe o fim da jornada, o fim do caminho.

"Tu!"

"És"

"Morto!"

Três enormes lobos negros de pelo ouriçado, dentes curvos e olhos vermelhos se aproximavam, falando, quase poeticamente...

"Tu!"

"És"

"Morto!"

A presa, encurralada contra o muro, ficou paralisada de pavor. Um assovio atravessou o pântano. Os lobos, agitados, deram volta em disparada para o denso mato.

Embora a estrada lodosa tivesse acabado no muro, o matagal certamente não era mais receptivo. Simplesmente esperou.

"Queres luz?"

Um pequenino duende perguntava.

"Queres luz? Queres luz?"

Seguiu o elemental por estreita trilha no mato. Só enxergava a frente e ao redor quando trovejava, o que era constante. Chegaram na beira de um precipício, onde havia uma ponte encoberta por nuvens grises.

"Queres luz? Queres luz? Do outro lado, tem luz."

Ainda que mal pudesse ver o próximo passo, atravessou. Do outro lado, viu o fogo que subia do chão, entrelaçando-se, dançando, bufando. No meio das labaredas viu uma criatura encapuzada, que segurava uma haste com bonita luminária na borda superior. A criatura, sem rosto, sem mãos, estendeu-lhe o objeto.

Não hesitando em agarrá-lo, pôs-se logo em fuga ligeira dali, pela ponte de corda e madeira.

Mas a ponte rompeu no meio. Antes que pudesse vertiginar, precipitou-se em queda livre por um buraco que se abriu debaixo de seus pés, atirando-lhe a um breu intenso novamente, ainda mais profundo que o posterior ao inicial.

Apesar da luminária, não enxergava quase nada, até que lhe bateram às costas. Era outro homem, jovem, carregando uma luminária igual, e com os olhos esbranquiçados.

"Já quase não enxergo." Assim desculpou-se o jovem.

Aos poucos, via a escuridão ser entrecortada por aquelas luminárias, e então percebeu que estava onde esteve no começo. Era só mais um na escuridão sem fim.

Que desgraçada imunda alma jaz nas entranhas do inferno... Que desgraçada.

Femina Morituri
Enviado por Femina Morituri em 13/04/2015
Reeditado em 17/04/2016
Código do texto: T5205783
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