Inesperado sacrifício
Todos, absolutamente todos, sempre o julgaram como uma pessoa de má índole. É certo que a sua cara fechada e comportamento por vezes temerário ajudaram nesse ruim julgamento. Vivia só e era de poucos amigos, por vezes passava dos limites na bebida alcoólica, caindo pelas ruas e bancos da praça da cidade interiorana de Mundica. Lugar que, por ser pequeno, tinha por característica a vida alheia como distração principal, assim como acontece em micro municípios repletos de pessoas desocupadas. João, nome do personagem, trabalhava na roça, na lavoura, tinha uma ocupação, mas poucos gostavam dele. Pesava ainda o fato de não ser muito dado a religião e demonstrar pouca ou nenhuma crença no cristianismo. O certo é que isso pouco contou quando a boiada do fazendeiro Ismael, rico e bajulado, saiu do controle dos seus vaqueiros.
Como se fugissem dos demônios do inferno o gado, um rebanho numeroso, invadiu a praça São Francisco, que fica nas imediações da igreja de mesmo nome, e avançou, atropelando tudo. As pessoas correram, buscaram abrigo, pensando, antes de tudo, na própria sobrevivência. O solitário e carrancudo João, que minutos antes tomava uma pinga no decrepito bar de Seu Benvindo, inicialmente tentou o mesmo, mas ao avistar uma criança que de longe aparentava ter pouco mais de dois anos, no meio da rua, e no caminho dos bois que a esmagariam, não hesitou, piscou ou refletiu. Renunciou à fuga e correu em sentido contrário, indo até a criança, cujos pais, aparentemente bastante desleixados, não se avistavam. Estava só.
Correndo a passos largos, deixando as chinelas de dedo pelo chão, quebradas, João alcançou a garotinha, era uma pequena menina. Linda, bochechas cheias, cabelinho castanho, e atípicos olhos verdes. Pegou-a nos braços enquanto ela parecia alheia àquela situação absurda. Um estouro de boiada, algo que não se via em décadas! Correu cortando os pés nas pedras de calçamento enquanto os bois chegavam rapidamente.
O mais improvável dos heróis despendidos percebeu rapidamente que não era possível fugir da boiada. Ele havia atravessado a praça e estava com a criança no meio da rua, nos braços. Correu em direção a Igreja que ficava ao lado e, de lá se aproximando, jogou-a sobre a calçada. A queda causou-lhe arranhões e escoriações pelo corpo, mas nenhum golpe sofreu na cabeça.
João, por sua vez, foi pisoteado, esmagado, vários de seus ossos quebrados pelos cascos pesados dos animais furiosos. Os bois passaram, e devagar as pessoas foram saindo das casas, comércios e até árvores onde haviam se abrigado. No chão, desprovido de vida, deformado, estava o corpo de João. A grande maioria viu o que ele havia feito. Aproximaram-se e viram que nada mais podia ser feito. Morrera.
O homem a quem julgavam como um vilão, deu a vida por uma garotinha, causando constrangimento, arrependimento, vergonha em todos. A bermuda azul desbotada que vestia, a camisa de botões, branca e com remendos, a sua, estavam manchadas pelo sangue vermelho e viscoso, que também deixou uma mancha indelével nas mentes dos seus concidadão. Pelas décadas e gerações vindouras a população preconceituosa sentiria o peso do remorso. De cabeça baixa olhavam para o herói. Lágrimas tardias rolavam pela face ingrata de tantos. Era tarde para qualquer arrependimento. Fariam homenagens, mas de que adiantaria? João morrera e nada poderia ver. A culpa os afligiria.
Do outro lado
Espíritos sombrios e humanoides brotavam do chão. Viam, aos gritos mais horríveis cuja mente humana não seria capaz de conceber. Queriam levá-lo para a morada de dor e sofrimento eterno. Parada, a alma de João os olhava aterrorizado, enquanto se aproximavam e o circundavam, mas antes que pudessem arrastá-lo para baixo, os céus se abriram. Uma luz límpida desceu e os deteve, envolvendo o espírito de João. Uma força maior reconheceu o seu inesperado sacrifício e decidiu guiá-lo para um lugar bonito, como um jardim de paz. A sua abnegação lhe garantiu a vida eterna. Era todo reconhecimento do qual precisava.