Voz do Inferno
"Do latim VENTER - 'estômago' e LOQUI - 'falar'."
- Ei, Fred! Você sabe do que a plateia gosta?
- Ora bolas, Ed. Eu posso não saber, mas você sabe, não é mesmo? Vejam que boneco espertalhão temos aqui! Diga a todos, Ed. Por que suas bochechas são tão rosadas? Você usa maquilagem ou o quê?
“Hahahahaha!”
O teatro estava lotado naquela noite. Não para o número do ventríloquo Fred e seu boneco Ed, e sim para o musical das dez. O artista, contudo, não desanimava, via uma boa oportunidade; o dinheiro não era muito, mas a apresentação era curta, coisa de meia hora, e as crianças gostavam.
Frederico era um jovem carpinteiro, e já na infância apaixonou-se pela arte de Bergen. Construía seus próprios bonecos, dos quais o preferido era Ed, embora houvessem vários. Era realmente bom no que se propunha, tanto na carpintaria como na ventriloquia. Em sua oficina, havia uma área reservada apenas à fabricação dos fantoches de madeira.
- Parabéns, meu jovem. Sabe, estamos em 78, e quase já não temos pessoas que se dediquem a este tipo maravilhoso de espetáculo.
Fred havia acabado de descer do palco quando foi interceptado por aquele homem. Apresentou-se como Otávio, dispensando elogios entusiasmados e mostrando-se muito simpático. Aparentemente, era o típico burguês excêntrico de meia idade; roliço, bem vestido em linho nobre, fumando um charuto caro que segurava de forma a resplandecer um invejável anel de rubi.
- Obrigado, senhor! É surpreendentemente agradável receber o reconhecimento do público além dos pequeninos.
- Eu sou um grande fã da ventriloquia. Na verdade, meu pai foi ventríloquo na Alemanha; era seu passatempo e amor.
- Que magnífico. E o senhor, nunca pensou em seguir os passos de seu pai?
- Oh, não. Digo que na verdade tentei, mas não levo jeito. Prefiro apreciar talentos como o seu. Veja, estou de mudança para a cidade, e gostaria muito que o moço me visitasse. Aqui, eis o meu endereço. Que tal amanhã, às sete?
- Eu agradeço o convite, mas geralmente estou trabalhando nesse horário.
- Não precisa ser uma visita longa. Só gostaria de lhe mostrar a coleção de bonecos que herdei de meu pai. Ficaria muito feliz em mostrá-la; ademais, dê seu endereço que meu schoffer vai até sua residência no horário combinado.
Fred ficou empolgado. Uma coleção de bonecos de um ricaço? Só poderia ser fantástica! Não teve como recusar o convite. Anotou o próprio endereço naquele papel e o devolveu.
No dia seguinte, à hora marcada, o schoffer apanhou Frederico. Rodaram por cerca de setenta minutos até que chegassem aos portões da mansão, que era um pouco afastada da cidade. Foi recebido pelo próprio Otávio, que se apressou em exibir o prometido.
Passaram por uma sala grande até chegarem a um estreito corredor, que tinha pequena porta embutida, pela qual Otávio passou com certa dificuldade, acompanhado de seu visitante.
- Aqui, meu jovem. Eis meu inestimável legado. Fique à vontade!
Frederico estava extasiado. Quantos bonecos... E que tão particularmente lindos! Eram diferentes de tudo o que já conhecera. O formato da face esculpida na madeira, as cores vibrantes, os detalhes do corpo, das roupas. Alguns ostentavam gravatas borboletas brilhantes, chamativas; outros, cartolas de todos os tamanhos e modelos, igualmente brilhosas e exageradas. Todos tinham alguma peculiaridade fabulosa, e passavam de cinquenta na quantidade.
- E então, meu jovem? O que achou?
- É maravilhoso! Fantástico! Não posso compreender como se dá a movimentação deles, apesar... Assim, numa primeira olhada, me parece completamente estranho o feitio...
- Não fique curioso, rapaz. Pegue um, escolha um e o experimente!
Não conseguia decidir. Tinha vontade de inquirir todos para compreender seus projetos. Mas o dono dissera um, apenas um; então, deveria ser aquele que lhe saltasse aos olhos. Ficou uns dois minutos apenas olhando, quando foi tomado por súbito encantamento por um boneco, em específico.
- Aquele!
Apontou para a parte mais alta da prateleira.
- Aquele...? Mas, aquele...
Otávio transparecia estar desconcertado, desconfortável.
- Algum problema, senhor? Peço desculpas, é que o senhor me disse para escolher um e...
- Claro, claro.. É só que aquele está muito no alto, vou precisar pegar uma escada. Um momento.
Frederico percebeu. O anfitrião ficara mesmo confuso, desorientado. Talvez fosse porque era gordo e precisaria subir na escada. Pensou imediatamente em se oferecer para tal esforço quando ele voltasse.
- Aqui, aqui está. É só abrir.
- Pode deixar que eu subo!
- Tudo bem, vá em frente.
Agora, olhando o boneco de perto, era ainda mais impressionante. Tinha as feições pontiagudas; nariz, queixo, dedos das mãos, os sapatos, pontudos e torcidos para cima como pequenos chifres. Essa estética bizarra, por si só, contrariava a lógica da movimentação dos encaixes.
A pintura também era curiosa. A madeira fora tingida de vermelho bem vivo, certamente com tinta de ótima qualidade; as maçãs do rosto eram de um roxo que pendia para o púrpura, acompanhando dos lábios e a ponta do nariz; os olhos tinham contornos bem marcados em preto e não eram móveis, embora estivessem colocados como se fossem.
Contrariando ainda mais o comum, os olhos não eram redondos e simpáticos. Na verdade, pareciam olhos de répteis ou de felinos, dada a posição das retinas e a forma como foram desenhadas: pretas em um fundo amarelado. Não tinha cílios ou sobrancelhas.
Os cabelos, feitos de material sintético próprio, não tinham nada de muito especial, a não ser pela cor púrpura e as ondulações. Não havia roupa, era apenas a madeira vermelha contrastando com os sapatos esculpidos e as pontas dos dedos das mãos, que também eram de cor púrpura.
Finalmente, Frederico retirou o estrambólico boneco da prateleira e desceu. Otávio secava o suor do rosto com um lenço de algodão.
- Que títere interessante!
- Pois sim, pois sim... Deveras...
E suava frio.
- Posso?
Frederico sentou-se com o boneco no colo.
- Eu já lhe disse, fique à vontade.
O ventríloquo examinou o boneco. Era bem engenhoso. Jamais ele próprio teria pensado em algo tão complicado e funcional ao mesmo tempo. Testando, pode ver que o boneco movia-se muito bem, à excessão dos olhos, que não haviam sido feitos para tal. Observando melhor a madeira das costas notou algo gravado.
- Algum problema, meu jovem?
Acendeu um de seus perfumados charutos.
- Não, senhor. Só reparei nesta inscrição aqui.
- Bem, é a data de fabricação.
- 1921?
- Exatamente.
Frederico estava quase em transe. Otávio, suando cada vez mais, escondendo-se na cortina de fumaça. De repente, algo passava-se pela ideia de Fred, algo que ele sabia ser tolice, mas precisava... Ele sentia que precisava tentar.
- O senhor não estaria disposto a vendê-lo?
- Vendê-lo?
Tossiu. Sofreu um afogão.
- Rapaz, como eu lhe disse, são inestimáveis...
Houve um momento de silêncio intenso. Otávio encarava o boneco assustado.
- Mas para a sua sorte sou um homem generoso!
Iria vender? Frederico ficou feliz e preocupado. Certamente o preço seria absurdo, ao menos para o seu bolso. Ficou aguardando a proposta ao invés de fazê-la.
- Admiro profundamente a sua dedicação. Acho que meu pai ficaria orgulhoso se um jovem como você possuísse um de seus queridos bonecos. Pode levar, rapaz! É todo seu.
Dizendo isso, o homem, gordo e corado, parecia sentir extremo alívio. Frederico, por sua vez, animação e felicidade.
- Não sei como agradecer! Prometo cuidar com grande esmero dele, tal qual o senhor e seu pai fizeram.
- Obviamente, meu jovem... Obviamente que sim. Oh, veja a hora, que voo... Tenho um compromisso, já havia até esquecido.
- Não quero lhe atrapalhar...
- De maneira alguma. Podemos repetir a visita em outro momento, com mais calma. Por gentileza.
Estendeu a mão à porta de saída da saleta. Otávio, que antes estava muito contente com a visita do talentoso ventríloquo, de súbito mudou de intenção e desejou que ele fosse logo embora.
- Vá em paz, meu jovem! Faça bom uso do boneco. Nos falamos, nos falamos em breve... Até mais.
Precipitou o moço a delicado, ainda que notório, toque de saída pela porta da mansão. O choffer já aguardava.
Mais setenta minutos até o bairro da casa de Frederico e, naquela noite, ele não quis mais trabalhar. Preferiu recolher-se cedo para apreciar sua nova aquisição. Passou horas observando, manuseando aquele pseudo-brinquedo.
Diferentemente dos demais, o que incluía seu favorito Ed, o boneco vermelho não ficou na oficina, mas no quarto. Frederico acordava algumas vezes, durante a madrugada, e ficava apenas olhando para o boneco, recostado na banqueta lateral. Tinha a sensação de que o olhar era recíproco.
Desde aquele dia em que esteve na mansão de Otávio, Fred havia feito quatro apresentações com Ed. Flagrava-se muitas vezes pensando no homem bondoso e intrigava-lhe o fato de nunca mais tê-lo visto entre a plateia. Então decidiu visitá-lo.
- Bom dia! O senhor Otávio está?
Foi atendido por um jardineiro, no portão.
- E o senhor...?
- Fred. Frederico. Estive aqui há cerca de duas semanas. Gostaria de falar com ele novamente.
- Infelizmente não será possível, senhor. Ele mudou-se há alguns dias. A casa está sendo reformada para venda, por isso estou aqui. Não é fácil cuidar de um jardim imenso como este aqui. Imagine que ontem mesmo tive um problema com as cercas-vivas e...
- Entendo, entendo. Mas e o senhor Otávio? Disse para onde foi, deixou contato com alguém?
- Não que eu saiba, senhor.
- Obrigada. Passar bem.
Estava explicado o porquê da ausência dele nos espetáculos. Mas Frederico ficou chateado; apesar do pouco contato que tiveram, estimava o desconhecido por suas afinidades e generosidade, e lembrava com carinho daquela sua forma simpática de dizer "meu jovem". Fazia-lhe recordar seu tio mais velho Benedito, que só via nos finais de ano.
O absurdo aconteceu num sábado, às vésperas de uma apresentação. Frederico ensaiava um novo número com Ed quando resolveu distrair-se um pouco e criar algo para Med, nome que dera ao boneco vermelho; meio que inconscientemente, chamava-o de medonho, então resolveu nomeá-lo Med.
Arregaçando as mangas, pôs Med no colo e procurou pensar em alguma frase de efeito, para a abertura. Como nada lhe vinha à mente, perdeu algum tempo repetindo os números de Ed com ele, até intentar o começo de dar uma personalidade ao boneco.
- Med, Med... Sobre o que nós poderíamos falar? Seria uma boa se você me ajudasse. O problema é que você não é do tipo fanfarrão, me parece! Hahaha!
"Aaaaargh!"
Soltou um grunhido. Dobrou-se de dor. Tentou levar as mãos à boca do estômago, onde doía, mas não conseguiu desfazer-se do boneco. A mão estava presa nele. Sentiu um tremendo mal-estar, esmoreceu; achou que fosse desmaiar. Esforçou-se para levantar, mas caiu, sem ânimos. E Med ainda preso na mão direita.
Contorcia-se involuntariamente, espasmando de dor, quando ouviu um grito. Por um instante, a dor parou, mas ainda não conseguia mover-se direito. Tentou raciocinar sobre como pedir ajuda, já que morava sozinho e não tinha fôlego para falar alto o suficiente a ponto de ser ouvido por alguém. Então sussurrou. "Socorro"...
- Chegou o meu dia.
Era uma voz masculina muito grave e rouca. Vinha do chão. Frederico procurou ao redor. Ninguém.
- Finalmente, cinquenta e sete anos depois! Estou liberto!
A voz não vinha do chão, concluiu desgraçado o moço. Cavernosa e eufórica, vinha de seu próprio estômago! Impressionado, arregalou os olhos e tocou a barriga com a mão esquerda. Pôde sentir movimentos buliçosos e frenéticos dentro de seu aparelho digestivo. Estava horrorizado.
"Mas o que...?"
Sequer conseguiu balbuciar a indagação de espanto quando foi tomado por intensa dor novamente. Trêmulo, com a mão sobre a barriga, sentiu o morno do sangue encharcando-lhe a camisa.
Estava explodindo de dentro para fora, e mal podia falar! Ninguém lhe ajudaria, ninguém poderia ver... A não ser Med! Sim, o boneco definitivamente estava olhando para ele com um sorriso diabólico nos lábios púrpura! Foi a última coisa que Frederico viu antes da escuridão.
O jovem só foi encontrado dois dias depois, quando vizinhos notaram o mau cheiro e resolveram arrombar. Do lado do corpo, estava um boneco, "feio de assustar", como disse dona Inês, que o recolheu e levou para a loja de quinquilharias do marido Ubaldo.
A polícia estava investigando um assassinato agora. Procurando por um maníaco estripador ou coisa do tipo. Ao boneco encontrado com Fred, atribuíram o trabalho do moço que, por não ter família próxima, não seria reclamado por ninguém, e seu Ubaldo poderia vendê-lo. "Tirar alguma coisa boa da tragédia", dizia o velho de má reputação com as questões do dinheiro.
E passaram-se os anos.
- Pois não, menino?
- Seu Ubaldo, a mãe mandou comprar um leque novo, daqueles que o senhor sabe.
- Certo, vou buscar.
- Ei, seu Ubaldo! O que é aquilo lá?
- Ah, é um desses bonecos de madeira em que você finge que ele fala, sabe?
- Sei sim, como o tal Fred fazia... Ouvi as histórias.
- É, é. Aqui, o leque. São duas pratas.
- E quanto é o boneco?
- Quanto você tem?
- Cinco pratas...
- Só isso? Ah, toma, pode levar. Quem iria querer essa porcaria mesmo...
A visão estava turva quando acordou. Os sons, embaraçados. Balançava muito. Não conseguia mover-se, ou aos olhos. Estava numa cesta de bicicleta. Viu um menino.
- Haha! Você é feio! Vou te chamar de Vermelho!
A bicicleta parou. Foi pego pelo braço e pôde ver partes de si mesmo. Vermelho, dedos pontudos, curvos e púrpura. O corpo de madeira remexia-se ao sabor do movimento da corrida do menino que o tinha.
- Ei, mamãe! Olha só! Uma pechincha! Não é legal?
- Ora, que péssimo gosto! Tem uma coisa escrita aqui. 1978. Deve ser o número de série, sei lá... Ou o ano. Vá tomar seu banho, guarde isso. Não quero essa coisa feia dando sopa pela casa.
E o menino foi.
As coisas na vida eram um pouco diferentes de como Frederico lembrava. Embora não aceitasse o destino, não podia contra ele, e inutilmente tentava sentir qualquer afeto pelo ursinho que ficava do seu lado, na prateleira.
___________________________________________________ Morituri