Beijo Letal
 
            Procurava me refazer do desastre que era a minha vida naquela região selvagem e desabitada.
            Encontrava-me sentado, sobre as pedras daquele vasto e largo rio. Suas águas cristalinas, somente pelo tom, denunciavam o quanto eram frias. Inspirava profundamente querendo encher os pulmões e afastar os pensamentos de dor. Perdera tudo: esposa, filhos, emprego e amigos. O último furacão varrera bem mais do que o litoral sul da Flórida, varrera a minha própria vida.
            Foi naquele instante de profunda e mísera dor, que vi movendo-se sob as águas uma forma estranha e negra. Pensei ser um cardume, talvez folhagens, mas a mancha subia contra a correnteza, afastava-se para a outra margem e depois até se aproximava de mim. Distraído, procurei por uma pequena pedra próxima e lancei-a contra a substância. Antes que a pedra a alcançasse, a estranha forma elevou como se fosse um tentáculo de piche e agarrou-a.
            Fiquei estupefato. Era, sem dúvida uma forma de vida. Fiquei em pé para melhor observar. A forma ficara estanque no mesmo lugar como se me observasse de volta. Dei alguns passos para trás e lancei outro pedregulho. Não havida dúvida. A coisa elevou outro tentáculo e agarrou o pequeno pedregulho.
            Meu coração acelerara. O que seria aquilo? No momento seguinte, a criatura começou a avançar na minha direção. Poderia ela sair d´água? Um medo aflito apoderou-se de mim e afastei mais dois passos andando de costas. A mancha aproximava-se rapidamente e, quando atingiu a rocha sobre a qual estava, passou a subi-la devagar. Era completamente negra e brilhante. Fiquei temeroso, embora guardasse ela certo encanto. Repentinamente, subiu completamente na rocha compondo um volume disforme que devia ter cerca de três metros de altura por uns dois de largura. Girando e movimentando-se sobre si mesma a forma foi adquirindo um contorno mais rígido e compacto. Aos poucos fui divisando que ia se transmudando até adensar-se configurando o vulto de uma mulher, uma indígena americana com longos cabelos a cobrir-lhe parte do majestoso corpo nu.
            Fiquei mudo e paralisado de medo e encanto. Gradativamente aproximou-se de mim, adotando um tamanho normal para uma mulher e, sem que pudesse resistir envolveu-me com seus braços em um longo e terno beijo. Fiquei ali, petrificado e apaixonado enquanto a vi partir para a água e desaparecer no líquido voltando a aparentar uma mancha.
            Tentei me mover. Era estranho. Não conseguia levantar os braços, nem andar ou fazer qualquer gesto. Tentei gritar, mas nenhum som conseguia emitir. Ao mesmo tempo, passei a perceber que podia olhar em qualquer direção e escutar muito além da minha capacidade normal. Os dias e noites correram e, apesar da fome e sede que sentira no início, fui deixando de perceber aquelas sensações e, após um tempo que não sei definir qual não sentia mais fome, frio, sono ou sede. Os dias corriam naquele ponto esquecido do rio. Vinham invernos e verões. Sucedia-se a chuva, a neve e o sol abrasador, porém eu permanecia indiferente.
            Por mais umas duas vezes aquela forma voltara, transmudava-se para a bela nativa, acariciava-me e seu toque era a única coisa que ainda me fazia sentir-me vivo e partia de volta ao rio, tão silenciosamente quanto chegava, deixando-me ali, sem saber o que eu agora seria, se uma rocha, se uma árvore ou a se apenas a sombra de uma tristeza eterna...