Diário de Bordo - DTRL 21

Seria mais constrangedor dormir no chão, se houvesse alguém ali para me ver encolhido como uma criança que caiu da cama. Naquele dia, eu acordei confuso, dolorido e enjoado como nunca antes estive. Da noite anterior apenas me lembrava de não conseguir dormir, virando-me na cama indefinidamente antes de ouvir ou sonhar com um som parecido com um cantarolar doce e suave como uma seda que vinha não sei de onde, mas que me envolvia e era persuasivo feito o chamado da natureza.

Levantei massageando o ombro em uma tentativa de amenizar pelo menos em parte o torcicolo e olhei a distância na apertada cabine entre a cama onde eu deveria estar e a soleira da porta onde acordei. Se não fosse minha certeza de que não sofria de nenhum sonambulismo ou teria ficado louco diria que caminhei enquanto dormia e fiquei contente por ter o hábito de trancar a porta, mesmo não estando totalmente convencido de que poderia sair para o convés e pular no mar no meio da noite.

É nesses momentos que fico pensando em como a solidão pode te deixar esquisito, sabe? Pode fazer você adquirir hábitos como dormir no chão ou ter a impressão de ouvir vozes que outros estranhariam e no mínimo evitariam andar em companhia de alguém assim. Talvez fosse como se o convívio fosse ficando um pouco mais difícil, a pessoa vai dando vazão a manias até ficar dependente delas e se enfurecer sempre que são frustradas por outro alguém. Pode ser um exagero, claro, mas tenho pensado bastante nisso nos momentos de reflexão que ultimamente têm tomado maior parte do meu tempo. Às vezes até tenho pesadelos no qual eu vou menosprezando aos poucos as regras básicas de etiqueta até me transformar em um troglodita, arisco a qualquer aproximação feito um bicho e avesso à mera idéia de passar mais de uma hora com outra pessoa. Sem dúvida é algo para se preocupar, ainda assim não abro mão da vida que escolhi no meu veleiro branco.

Tentei esquecer os meus devaneios sobre isolamento depois de tomar o café e retomar as minhas atividades cotidianas, verificando as coordenadas, examinando as cordas dos mastros, as velas e o resto das atividades de praxe da rotina de navegante. Viajar o mundo de barco era um sonho de infância realizado e ser agraciado com os lugares por onde já andei fazia valer a pena ter somente a companhia das águas ora turquesa, ora esverdeadas dos mares que encontrava.

Tinha os momentos de tédio nisso tudo, como não poderia deixar de ser. A vastidão do oceano não era feia, mas depois de alguns meses comecei a ter a necessidade de ver algo mais do que aquele espelho de água que me cercava por todas as direções, então adquiri um pequeno hábito que praticava para me distrair. Foi isso que eu fiz no tempinho de ócio depois do almoço.

A tarde estava tranqüila, com o clima ameno e pouco sol, mesmo não tendo previsão para chuva. Sentei perto da proa e tirei um pequeno caderno do bolso do meu casaco azul, folheando rapidamente as páginas rabiscadas por mim. Aquilo era como um diário de bordo paralelo no qual gostava de registrar pequenas reflexões em forma de versos sobre os sentimentos e pensamentos que me ocorriam durante a viagem.

Na última folha escrita estavam linhas que tinha começado no dia anterior que diziam “segredos repousam nessas águas como navios naufragados”. Depois da noite complicada que tive, fiquei pensando que tipo de inspiração em que eu tinha ficado a deriva me fez escrever sobre barcos naufragados. Com toda a sinceridade, não era para ser algo a se ficar imaginando quando se estava sozinho em um veleiro há dias sem ver terra firme.

Levantei meus óculos escuros para ver melhor o resto do poema. “Eles virão um dia, fantasmas navegando ao serem chamados, emergindo e se revelando” terminava a estrofe. Relendo, vi que estava soando bastante obscuro, diferente do soneto das gaivotas que tinha terminado há uma semana e me perguntei se não seria melhor escrever alguma coisa mais alegre, mais positiva, digamos. Talvez o que me instigava fosse uma metáfora que via nessas palavras, com os barcos ocultos sob as águas simbolizando o que era deixado para traz. Fiquei imaginando o destino que deveriam ter tomado; quem os esperava com os olhos esperançosos voltados para o horizonte e o que poderia ter impedido esse encontro de acontecer. Tantas histórias tragadas pelo mar, muitas abandonadas além do alcance. Examinando meu poema com mais acuidade, vi que sentia como se fossem tesouros que gostaria de desenterrar, trazê-los novamente à tona.

- Segredos repousam nessas águas como navios naufragados – entoei em voz alta, levantando o caderno à altura dos olhos – Eles virão um dia, fantasmas navegando ao serem chamados, emergindo e se revelando – li, caprichando o melhor que pude na eloqüência. Pigarreei e proclamei as mesmas linhas como se cantasse, rendendo-me mais uma vez a uma das minhas manias que tinha adquirido nos dias ermos de marinheiro.

Desejando ouvir alguma voz humana e usar minhas cordas vocais para que não acabassem atrofiando, passei a cantar, já que falar sozinha iria me fazer parecer ainda mais um marujo louco. Nunca fui bom com canções, devo admitir. Na maior parte das vezes mal me lembrava dos refrões, mas os poemas que escrevia serviam ao menos para isso. Cantei os versos como há muito tempo não fazia, degustando de sua poesia, o que corroborou minha tese de que para sobreviver eu precisava ser melhor velejador do que poeta. Não que realmente me importasse se não estavam bons. Não era como se eu tivesse uma platéia.

Guardei o caderno no bolso do casaco e antes de me levantar vi algo parecido com uma cauda não muito longe, destacando-se e depois sumindo no reflexo esbranquiçado do céu no mar. Depois de tudo, quem diria que tinha sim um público, só não sabia dizer se era um golfinho ou uma baleia, mas não vi diferença, nenhum deles criticaria meu péssimo desempenho.

Após o cair da noite, preferi permanecer na cabine ao invés de observar as estrelas espetacularmente claras em alto mar, como previamente planejava antes de começar o preparo do meu jantar que era basicamente um bocado de macarrão instantâneo que não tinha gosto de macarrão. Fiquei sentado olhando os fios amarelados na vasilha se misturando, se enrolando e desenrolado no gafo que eu meneava sem muito interesse.

Pela escotilha do meu lado na mesa não se via nada, o breu imperava tal como o silêncio na cabine entrecortado pelo arrebentar sutil das marolas no casco e pelas oscilações preguiçosas da embarcação. A calmaria no pequeno recinto que chamava de lar, no entanto, não era um sinal de que não teria problemas para dormir.

Passei o dia me sentindo desgastado e ansioso como se tivesse passado por uma provação e não melhorei depois do pôr do sol; cheguei a tentar escrever mais algum poema ou melhorar os já existentes, mas os ventos da inspiração cessaram de soprar sobre mim e meu caderno permaneceu aguardando no meu bolso sem que eu tivesse ânimo para escrever uma linha sequer.

Sabia que essa minha dificuldade para relaxar tinha muito a ver com a última noite. Não exatamente por causa das dores musculares por ter dormido muito tempo no desconforto do chão, mas devido à canção exótica e envolvente que pensei ter ouvido.

Aquilo não me saía da cabeça de jeito nenhum, apesar de não lembrar com precisão de como ela era. Tentei fazer um retrospecto das horas nebulosas da madrugada, mas elas escoavam pela minha mente deixando rastros de imagens e sensações indistintas que eu tentava montar em algo que tivesse significado.

Quando pensava que estava perto de recordar da canção que tinha ouvido, ela me escapava novamente, feito um peixe escorregadio na água. Concentrei-me um pouco mais, fitando um olhar perdido para algum lugar da cabine e ela acabou voltando. Pude recordar da maneira que soava, uma voz doce e suave como uma seda que me envolvia e me carregava em seu encanto.

Não compreendia o que dizia, ainda assim parecia que falava diretamente na minha alma, era como uma navalha penetrante espalhando um veneno entorpecente no meu sangue. Sentia os pelos se eriçar pelo meu corpo e meus batimentos cardíacos aumentarem, inundando-me de uma excitação obscena. De repente, queria somente me unir à canção que me evocava, ela clamava por mim e resistir parecia a cada instante mais difícil, até que ela cessou e pisquei atordoando, voltando por um momento ao controle da minha vontade e me dando conta, confuso, de que estava diante da porta, quase pegando a maçaneta.

Ter levantado da mesa e caminhado até a porta sem perceber não me causou tanta surpresa como quando a canção voltou mais insistente após alguns segundos e vi, horrorizado, que não estava simplesmente lembrando-me dela, mas a ouvindo novamente. Ela rondava o barco em um cerco sinistro, martelando nos meus ouvidos com uma clareza que não me deixava duvidar de que fosse real.

Rapidamente levei as mãos à cabeça em uma tentativa de proteger minha audição daquele narcótico, apertei com força, lutando para que ele não subjugasse minha mente e me afastei da porta sem condições de confiar em mim mesmo. Pular em alto mar não parecia tanto uma idéia absurda enquanto ouvisse aquilo.

Sentei no chão, comprimindo as orelhas ao ponto de doerem. Ainda podia ouvir resquícios da música, mas sua força sobre mim tinha decaído. Olhei em volta me sentindo indefeso, desolado naquele cubículo sem ter por quem pedir por ajuda. Não podia ficar a noite toda do jeito que estava; meus braços começavam a cansar, indicando que cedo ou tarde teria que soltar e arcar com as conseqüências que viriam depois disso.

Por mais que quisesse permanecer sentado com os olhos fechados, fazendo sucessivos pedidos silenciosos para adormecer e acordar somente no outro dia, eu sabia que não seria atendido. Precisava fazer alguma coisa concretamente. Flexionei os joelhos e forcei os calcanhares, esforçando-me para levantar sem contar com os braços. De pé, movimentei-me jogando meu peso para frente e para trás, de um lado para o outro, para compensar as oscilações do barco e me equilibrar. Andei não muito trôpego graças ao hábito.

Inicialmente não sabia o que fazer. A pressão por saber que aquela canção poderia me matar fazia minha mente ficar em branco, demorando a decidir do que precisava, até que me ocorreu o kit de primeiros socorros que guardo para emergências. O passo seguinte seria chegar até ele. Firmei os pés tentando não cair com o balançar cada vez maior do barco e caminhei até me abaixar em uma gaveta abaixo da pia. Respirei fundo, concentrando-me para isolar os sons a minha volta e soltei as mãos das minhas orelhas que certamente estavam avermelhadas, mas o que ouvi abalou minhas defesas.

“Segredos repousam nessas águas como barcos naufragados” os versos que escrevi eram cantados, adquirindo um tom entre o sublime e o aterrorizante “Ele virão um dia, fantasmas navegando ao serem chamados”. O frio que subiu pela minha espinha me fez arrepiar e mesmo não tendo um espelho para me ver, sabia que estava pálido.

Não quis parar e apreciar minha composição repetida mar afora pela voz entorpecente. Não podia me deixar levar, não importava a letra. Trêmulo, abri a gaveta procurando pela caixa de metal branca enquanto sentia minhas forças me deixarem à medida que ficava mais exposto. Puxei a caixa do fundo, abrindo-a, e, de entre rolos de esparadrapos e cartelas de comprimidos, tirei um tufo de algodão de um pacote. Levantei e umedeci o algodão na pia, dividindo-o em duas partes.

“Carcaças esquecidas se levantam e se mostram como são” ouvi o último verso antes de tampar os ouvidos com um quê de arrependimento por ter escrito algo com aquele mau gosto. O algodão estava bem acomodado, incutido nos meus ouvidos e privando-me dos sons externos o suficiente para que eu não sentisse mais os efeitos da canção. Virei um pouco mais calmo e segurando-me no que podia, caminhei devagar com a cabeça fria o bastante para avaliar qual era a minha situação.

Podia quase sentir o rangido da madeira enquanto o veleiro balançava, mesmo não podendo ouvir. Tinha eliminado na maior parte o problema da canção, mas ainda tinha muito no que me preocupar. Dei passadas largas rumo à porta com cuidado para não acabar caindo de mau jeito com os movimentos do veleiro.

Com um salto desajeitado cheguei a ela agradecido por ter permanecido de pé. Abri um pouco atrapalhado com o vaivém e alcancei as escadas para o convés. Poucos minutos antes seria insensatez sequer considerar a sério a idéia de subir com a voz me puxando sabe-se lá para onde, mas com a audição bloqueada não podia ficar parado enquanto minha casa era tratada como um joguete na fúria repentina e inexplicável do oceano.

Chegando à parte externa, contemplei o escuro no qual me encontrava sem ver nada que desse uma pista do que estava acontecendo. Nenhum indício de mau tempo ou outra coisa similar, apenas rastros sombrios de ondas perdidas na noite, aparentemente uma resposta em coro à canção que marcava sua presença mesmo não sendo mais ouvida.

Deslizei até a borda, pondo as mãos no aço gélido da amurada e semicerrei os olhos perscrutando o breu que a tudo devorava sob o céu estrelado. Não enxerguei nada que não fosse mar revolto com brisa suave. Avancei mais um pouco para perto da proa sem soltar a barra e com uma vista melhor continuei procurando ao redor. Antes de voltar e ir ao leme para conduzir o veleiro para um lugar mais seguro vi algo indistinto surgir em meio às ondas. Não sabia o que era aquilo, não possuía uma forma identificável, mas parecia algo sólido assomando-se nas trevas.

Devo ter me curvado demais sobre a amurada para tentar ver melhor o objeto estranho. O barco se inclinou e senti apenas o golpe do meu corpo na água em um mergulho no abismo frio e desconhecido. Submerso, tentei reagir rapidamente virando-me para cima e dando braçadas rumo à superfície. Despontei ofegante em um lugar longe de onde julguei ter caído. Já podia ver o barco por inteiro a metros de mim, subindo e descendo no vale de ondas.

Nadei o melhor possível com todas as forças que me eram disponíveis, mas a experiência náutica de anos não aparentava ser o bastante ante aquele mar.

- Não! – gritei, vendo desolado meu veleiro se distanciar, suas luzes perdidas na noite além do meu alcance. Continuei nadando com afinco em meio à maré que insistia em frustrar meus esforços, fazendo-me vagar sem acertar o rumo, ora ou outra sendo subjugado pelas ondas ameaçadoras que me empurravam para baixo.

A cada vez que eu subia à tona estava mais perto de perder o barco de vista. Minhas esperanças se esgotavam em consonância com minha disposição consumida pelo frio implacável, meu corpo afligido pelo desgaste clamava por piedade na luta que travava contra meus limites humanos.

Parei um pouco para respirar melhor, reunindo quantas forças podia e senti uma corrente nova e diferente me empurrar. Quando virei, vi um paredão emergindo do mar e se impondo sobre mim com o peso do destino. A água descolada com o súbito aparecimento me arrastou para longe do volume misterioso sem que eu me importasse. Aquilo não tinha a aparência de algo vivo, ou de qualquer coisa que já tivesse visto e eu ficava grato em manter distância.

Ao ficar coberto pela espuma das ondas senti meus pés encostarem-se a uma superfície plana e áspera que atingiu todo o meu corpo e pareceu me elevar. A água diminuiu, deixando-me no raso e escoou em uma direção para a qual fui jogado junto com ela, até atingir outra superfície perpendicular a primeira e me deixar vencer pela exaustão.

Novamente eu estava deitado no chão, abraçando minhas pernas dobradas junto ao peito em busca de algum aquecimento e conforto tal como na manhã anterior, mas diferente desta, não sabia onde estava. Ainda estava bastante escuro para saber precisar exatamente em quê estava deitado, sabendo apenas que era molhado e grosseiro pelo tato. Levantei e fiquei sentado com as costas encostadas na parede que tinha batido antes de perder os sentidos. Ela não era muito alta. Ergui-me um pouco para ver sobre ela e reparei em esquisitas silhuetas parecidas com o que vi antes. Estavam dispersas sobre o mar, cercando-me em todas as direções como uma cidade silenciosa e sem luzes.

Tudo o que deduzi depois foi que estava em cima de uma delas, abandonado sobre um objeto estranho com frio, dolorido e sem fazer idéia de onde meu veleiro estaria. Fechei os olhos e estiquei as pernas com cuidado. Não atingi nada e sem ter nenhuma certeza da firmeza da superfície onde deveria pisar, preferi não ficar de pé.

Nos minutos que fiquei esperando me recuperar hesitei em abri os olhos. No fundo, talvez tivesse uma esperança por menor que fosse de que acordaria do pesadelo, riria dele enquanto tomava o café da manhã olhando o oceano pela escotilha e provavelmente escreveria um poema ruim sobre o mesmo no meu caderninho. Uma esperança pequena diante da verdade que se manifestava em cada dor no meu corpo.

Abri os olhos e contemplei o céu mais claro com a iminência do amanhecer. A claridade me fez ver melhor no que estava sentado e senti um nó na garganta ao começar a entender do que se tratava a grande estrutura de metal tomada por ferrugem e corais. Beirando a incredulidade, fiquei de pé cautelosamente e me virei para o mar, testemunhando as silhuetas tomando formas mais nítidas com a vinda da manhã, seus detalhes aparecendo e suas aparências disformes se revelando.

“Fantasmas navegando ao serem chamados” ecoou na minha mente quando, estupefato, vi as dezenas de navios boiando imóveis como cadáveres no oceano. As carcaças cheias de corais e parcialmente submersas mantinham pouca distância umas das outras, algumas tortas e outras emborcadas, pareciam firmes em seus lugares, não importava a aparência decadente e putrefata.

Absorto na improvável paisagem, eu levei a mão ao bolso quase sem perceber, apalpando algo quadrado. Tirei o caderninho, pegando em suas capas encharcadas que nem o tecido impermeável do casaco tinha livrado da água. Com o ele em mãos, abri as páginas na maior parte grudadas uma nas outras e com as bordas enrugadas. As letras estavam borradas, transformando os textos em basicamente manchas pouco inteligíveis de tinta azul, mas providencialmente as últimas folhas escritas não tinham sofrido tantas avarias.

“Segredos repousam nessas águas como navios naufragados” li os versos que me causaram mais náuseas que a maresia “Eles virão um dia, fantasmas navegando ao serem chamados”. Meus ossos estremeceram e inevitavelmente perturbado com as palavras joguei o caderninho no ar, suas as folhas abrindo e batendo como asas antes de se estatelar em um ponto qualquer do oceano. Bati no meu rosto até a pele arder e a sensação quente me fez pensar com clareza. Não podia me deixar enlouquecer simplesmente com a visão do meu poema tornado realidade. Tinha lidado com a canção infernal na noite anterior e não perderia a cabeça depois de tudo.

Coloquei os dedos nos ouvidos, lembrando-me dos algodões e não fiquei surpreso ao saber que tinham saído após eu tanto rolar pela água antes de atingir a amurada do navio. Sem dúvida era algo para se preocupar, mesmo assim precisava me manter firme na calma e perseguir minhas principais metas no momento que era avistar e, principalmente, chegar ao meu veleiro.

Estava claro que não podia sair andando pelo convés do velho navio da marinha em que acordei. O piso carcomido pela ferrugem já tinha feito muito não quebrando sob meus pés onde estava de pé e me fazendo cair lá dentro, entre o acúmulo de anos de sujeira e bichos exóticos do fundo do mar. Subi na amurada, abrindo um pouco os braços para manter o equilíbrio e lancei um demorado e clínico olhar em volta, examinando cada embarcação apodrecida longe ou perto.

Foi com um júbilo indescritível que vi as hastes com mantos brancos dos meus mastros não muito distantes. Era como encontrar uma ilha, a tábua de salvação de um náufrago desiludido. Andei na amurada até perto da ponta da proa como se estivesse em uma prancha e encarei as águas abaixo de mim. Não sabia que poderia estar oculto sob elas, mas se quisesse sobreviver teria que confiar no meu espírito de marinheiro, se é que isso existia.

Recuei poucos passos para trás, respirei fundo e corri ao encontro do que seria um dos meus mergulhos mais difíceis de esquecer. Paralelo a uma enorme corrente que descia da lateral do navio, eu cortei o ar em vertical e sumi no turbilhão de bolhas ao adentrar na água. Impulsionei meu corpo para cima e nadei na direção em que avistei as velas, usando as embarcações como referência. Inicialmente abrindo os braços a minha frente, feito o andar de uma tartaruga, passei a dar braçadas mais amplas para tentar ir mais rápido, sem deixar a cautela. Não sabia o que podia me espreitar entre as carcaças silenciosas e não perturbar a calma fúnebre do lugar parecia ser o melhor a fazer.

Como o único habitante daquela cidade flutuante em ruínas, avancei o mais rápido que consegui, mantendo distância daquelas embarcações de aspecto nada convidativo. Independentemente do que existisse em suas sombras, deveria continuar sem notar minha presença.

Durante um tempo que pareceu uma vida inteira, remei com braçadas determinadas, locomovendo-me pelos canais entre as naus em busca do meu propósito, até que em dado momento me virei para trás e vi o navio da marinha longe, quase sumindo pequeno atrás de outro mais antigo que prendeu minha atenção. Ele era todo feito de madeira, cheio de corais e flagelado pelos anos no fundo do mar de modo a se tornar difícil de imaginar como ele seria no passado.

Olhando para os buracos em suas laterais, possivelmente de canhões, e para os mastros esqueléticos despidos de suas velas que apontavam para o alto em um estado pior do que a figura de uma mulher guardando o navio na proa, eu fiquei me perguntando que tipos de tesouros estariam esperando serem descobertos dentro dele, não apenas a história que carregava, na qual me inspirei para compor o poema, mas em bens palpáveis, abandonados pelos náufragos que fugiam da morte certa.

A curiosidade gananciosa que experimentei se mostrava sedutora como a canção da noite e tal qual esta tinha tudo para me levar para a destruição. Dei meia volta e continuei minha jornada sem lamentar por não poder explorar aqueles navios em buscas de preciosidades esquecidas. O simples ato de considerar a possibilidade de procurá-las era uma distração que poderia me atrasar, mas no momento era uma distração que ocupava minha mente, fazendo-me não pensar no pior.

Não sabia como estaria o meu veleiro após a tormenta e a preocupação me sufocava, tirava o meu fôlego e me esmagava como se estivesse a metros abaixo da superfície. O medo de ficar preso ali, definhando ilhado em navios fantasmas, era um tormento angustiante e fugindo disso cobri a nado uma distância imprecisa antes de ter minha alma acalmada com a visão do meu barco não muito longe.

Estava inclinado, encostando sua lateral em um barco de pesca um pouco maior. Nadei com o ânimo renovado, dando a volta no veleiro para chegar à outra embarcação que estava com a proa submersa. Segurei a amurada com as duas mãos e pus o primeiro pé no metal nenhum pouco confiável do barco pesqueiro, preparando-me para a escalada rumo ao meu convés.

Com um impulso saí da água e coloquei o outro pé na frente do primeiro. Segurei mais adiante na amurada e a passos lentos e cuidadosos fui subindo a inclinação da embarcação, resistindo ao peso das minhas roupas encharcadas que me empurrava de volta para baixo.

Passava da metade, perto da base de um gancho parecido com um pequeno guindaste, quando um estalo no piso molhado e quebradiço me fez parar. Olhei de lado, procurando por uma rachadura e ao não encontrar olhei para a água abaixo da amurada, vendo o meu reflexo, ou o que pensei ser meu reflexo. Não estava certo. Era um rosto humano e como eu estava sozinho não poderia ser de outra pessoa, mas minhas feições não eram delicadas daquela maneira, meus cabelos pareciam mais longos com uma cor muito mais clara e, com certeza, não tinha um sorriso malicioso como o que via. As distorções dos reflexos podem nos pregar peças, ainda mais com o meu grau de cansaço.

Não dei importância e continuei a pequena subida que nas minhas condições parecia mais um desfiladeiro. Alcancei a proa do barco, subi na amurada e com um salto meus esforços foram recompensados. Caí no convés do meu veleiro e permaneci um tempo deitado, um pouco descansando, um pouco abraçando meu barco com a sensação de alívio me fortalecendo. A dose de euforia pelo feito de chegar ao veleiro não me fez esquecer o resto do problema, todavia. Minha situação tinha melhorado consideravelmente, mas não podia passar o resto da vida no meio do cemitério náutico.

Levantei e fiz meu caminho aos trôpegos por causa da inclinação até a porta da cabine. Desci as escadas e me deparei com o ambiente bagunçado; meus pertences se encontravam jogados por tudo o que era canto graças ao sacolejar das ondas horas antes. Mesmo diante do caos, agradeci em silêncio por não ter sinal de dano comprometedor. Passei pela vasilha caída aos cacos no piso, espalhando o macarrão instantâneo e encostei-me a pia, divagando no que deveria fazer. O que estava acontecendo não era exatamente previsto em nenhum manual de sobrevivência e temia que minha experiência não fosse suficiente parar saber lidar com aquilo. Porém, algo teria que fazer, e logo. Ficar parado não iria resolver nada.

Abaixei-me para pegar dois tufos de algodão no kit de primeiros socorros e após os umedecer na pia tampei os ouvidos novamente, por via das dúvidas. Praticamente surdo, subi para o convés e me dirigi ao painel de comando externo, alcançando a roda de leme. Acionei a chave e o veleiro vibrou suavemente, roncando, e uma corrente espumosa saiu da traseira, seguida de um estampido quando o casto se desencostou do barco de pesca. Meu menino estava pronto para a viagem, precisava apenas transpor uma cadeia de carcaças flutuantes que o cercava, bloqueando o caminho.

O veleiro avançou pouco até outro barco e a proximidade me fez perceber melhor que o espaço entre ele e outro não era suficiente para a passagem. Virei a bombordo apenas para me decepcionar novamente. As embarcações estavam muito próximas uma das outras, formando um labirinto de vielas estreitas demais para o veleiro atravessar com segurança. Queria voltar e seguir na direção em que tinha vindo, passando pelo navio da marinha, onde era mais largo, mas dá a ré em meio a tantos obstáculos era complicado e como se a dificuldade para manobras não bastasse, havia ainda a incerteza quanto a ter sucesso em furar o bloqueio em outras direções. Seja com partes ou embarcações inteiras, estando elas expostas ou submersas, o mar em que me encontrava era um campo minado, cheio de corpos podres de madeira e metal ávidos por me abater.

Retrocedi, ficando perto do barco de pesca e, tentando girar o veleiro, confirmei o meu receio. Manobrar um barco não era fácil e não teria como fazer isso naquele espaço sem ficar preso ou bater em algo. Definitivamente, eu estava preso com nenhuma ou, no mínimo, pouquíssimas alternativas de ação.

Tirei os algodões do ouvido e não ouvindo nenhuma canção infernal que me fizesse querer me jogar ao mar, passei os minutos seguintes tentando entrar em contato com alguém pelo rádio VHF, o que se mostrou um esforço em vão. O rádio provavelmente estava fora de alcance ou um movimento brusco na tormenta noturna havia prejudicado a antena. De todo modo, estava impossibilitado de pedir socorro por ele.

Desci de volta para o interior atordoado. Comecei a limpar a cabine, juntando meus pertences e pondo tudo em seus lugares enquanto sofria com um aperto no peito por ver minhas possibilidades de sobrevivência escasseando. Eu tinha suprimentos que me precaveriam por dias, mas não sabia quanto tempo poderia ficar a espera de um regaste, com aquela floresta de restos náuticos irredutível. Nenhuma maldita embarcação se movia ou dava sinal de que voltaria para o fundo, de onde nunca deveria ter saído.

O dia avançava e não tive sequer vontade de almoçar. Fiquei horas com a cabeça apoiada nas mãos, sentado à mesa, meditando no que tinha aprendido nesses anos de navegação e constatando cada vez mais que não estava preparado para uma situação incomum como aquela, um desafio que saia do padrão do que geralmente era enfrentado por veleiros do mundo inteiro.

O sol declinou no horizonte e os barcos foram mergulhados nas sombras da noite, reduzidas novamente a silhuetas montanhosas que rangiam ao sabor dos ventos. Não fui para a cama e fiquei caído na mesa olhando fixamente pela escotilha como se esperasse que um auxílio aparecesse, um anjo de luz rompendo as trevas em meu socorro. Nada apareceu. Vi somente uma mancha luminosa se elevar de detrás dos monstros disformes iluminando o céu e mostrando que eles eram as velhas embarcações fincadas sobre o mar, firmes e inclementes.

Havia em mim uma teimosa esperança de que quando o sol nascesse elas teriam sumido com a mesma rapidez com que tinham aparecido e o engano me deu a convicção de que aquilo não se enquadrava de jeito nenhum nas minhas hipóteses racionais. O que quer que fosse fugia da minha compreensão e, portanto, a resolução da questão estaria fora do meu entendimento.

Eu não sabia como proceder se a situação saísse da ordem natural e foi ponderando sobre como problemas extraordinários pedem soluções extraordinárias que me veio à mente uma luz improvável. A idéia que me ocorreu era assumidamente absurda e a descartaria se não tivesse passado por uma boa quantidade de absurdidades por um dia. Considerando todas as coisas, a tentativa era válida. Era o que eu tinha em mãos.

Levantei e subi para o convés, indo para o painel de comando externo. Não somente tinha uma visão melhor, como também me sentia mais seguro ali, onde a figura de capitão que assumia me deixava mais confortável, mais forte; talvez por isso esse fosse o melhor lugar para a atitude que escolhi tomar, para a tarefa complicada, arriscada e na qual teria que apostar minhas últimas fichas.

- Mortos voltam ao túmulo quando o sol levanta – cantei repetidamente, forçando as cordas vocais – Os cadáveres navegantes retornam adormecidos para os seus leitos, descansam com a voz que para seus lugares chama – terminado os versos improvisados, apertei as extremidades da roda de leme, apreensivo. Fiquei esperando alguma coisa enquanto o sol nascente banhava o mar com sua luz, mas não houve qualquer sinal de canção, nem que me enfeitiçasse, nem que comandasse as embarcações segundo o que diz a pobre rima que tinha acabado de compor.

Escorei os braços na roda de leme e descansei a cabeça neles, envergonhado por ter achado que cantar funcionaria. Por mais que não soubesse o que tinha acontecido antes, muito menos se o fenômeno se repetiria, foi frustrante comprovar que não podia contar com isso, não de uma forma que me fosse útil.

Sentindo o peso do fracasso, fiquei pensando na minha ingenuidade por crer que poderia controlar o que não compreendia e nesse momento cabisbaixo de reflexão fui atraído por um barulho na água. Levantei o rosto e observei com a discrição de quem temia afugentar um animal selvagem com o mais sutil dos movimentos. Uma sombra no mar deslizou para mais perto com a graciosidade de uma truta no rio, a parte posterior que supus ser a cauda afundou, deixando visível apenas o leque de finíssimas algas, uma pequena mancha esvoaçante abaixo das marolas feito uma labareda dourada.

Um pouco menos de ceticismo e eu acreditaria que eram cabelos de uma pessoa ereta abaixo da água me observando. E não só me observando como também esperando por algo. Voltei à minha postura inicial, suspeitando do que aquilo estava querendo. Depois de tudo, não era ridículo o se passava na minha mente.

- Mortos voltam ao túmulo quando o sol levanta. Os cadáveres navegantes retornam adormecidos para os seus leitos, descansam com a voz que para seus lugares chama – repeti e em seguida instaurou-se um silêncio mortal. O vento cessou e o ranger do madeiro e do metal foi suprimido, sufocado em uma calmaria densa. A mancha dourada que se assemelhava a uma cabeleira sumiu sob as águas e por um momento pensei que tinha sido inútil, até que a estranha e bela canção veio, trazendo minhas palavras de volta para mim.

“Mortos voltam ao túmulo quando o sol levanta” retumbou pela manhã, aparentemente despertando as naus que reagiam ao seu som. Tirei o algodão do bolso, onde tinha guardado antes de cantar e o recoloquei nos ouvidos sem dar tempo de a canção me afetar, ainda assim a podia ouvir muito baixo, repetindo as frases que cantei acompanhada do acorde de carcaças ruindo, se chocando e afundando.

Os barcos até então inertes se mexeram, primeiro lentamente, navegando como um dia teriam navegado, e depois tombando na agitação das águas onde sucumbiam em uma sinfonia perigosa. Esforçando-me para não ceder às investidas de ondas e despojos de naufrágios libertos de suas prisões centenários, guiei sobre a sopa caótica o veleiro que era sacolejado sadicamente pelo mar revolto.

Subindo e descendo, indo de um lado a outro, mas sem propriamente avançar além do raio de alguns pés na horizontal, sentia-me uma folha solta em uma poça d’água durante a chuva, castigada pela fúria da natureza em uma prova de fogo imposta para testar sua resistência. Minha fé passava pelo crivo da tribulação, enquanto testemunhava solitário um espetáculo catastrófico que nunca tinha visto igual. Barcos de pesca de diversos tamanhos, um ou outro navio da marinha imponente de canhões mortíferos, um cruzeiro ao longe de beleza maculada, e tantas outras embarcações de histórias e estilos que não sabia identificar, dos mais variados lugares do mundo, todos sumindo, desmoronando na desordem.

Por pouco meu veleiro também não se juntava aos condenados, a correnteza de destroços pesados e pontiagudos o ameaçando, passando a polegadas do casco branco. Naquela tempestade ensolarada, cheguei a acreditar que iria ser vítima das minhas palavras cantadas; meu barco ironicamente estava prestes a obedecer à sentença de morte que eu mesmo tinha proclamado e esse seria o fim da minha jornada, se instantes antes do pior a cordilheira de restos navais não tivesse se aplainado, voltando para a obscuridade do oceano e abrindo a oportunidade para a fuga. Sem perder tempo, liberei as velas que se inflaram com os ventos que no momento me eram favoráveis e fui levado nessa jangada para longe, fazendo meu caminho entre os últimos resquícios do povoado de embarcações que voltavam para onde vieram. Se olhasse para trás, não veria mais nenhum sinal patente do que presenciei e do que passei, somente a beleza turquesa do mar.

Estava distante quando realmente acreditei estar fora de perigo. Não sei onde ou em que hora a canção deixou de ser cantada pelo que quer que fosse, mas posso afirmar que isso não importava. Ela ecoava em minha mente e se tornou uma marca entranhada em meu espírito, assombrando-me em dias em que olhava o oceano esperando alguma coisa emergir, e em noites mal dormidas nas quais eu acordava de pesadelos com as mãos em volta da cabeça, assustado, principalmente quando percebia que não estava com os fones de ouvido que me habituei a usar.

Apesar dos eventos traumatizantes, nunca desisti completamente da minha vida no veleiro, nem mesmo de escrever poemas, evitando neles referências à história que ainda não tive coragem de contar a alguém pessoalmente. De todo modo, não importa se estou ancorado em um porto ou navegando, ainda sinto a figura misteriosa e sua canção me acompanhando, sua presença me rodeia por mais que tente ignorá-la.

Todos que tento alertar sobre um perigo que não especifico na região onde por pouco não morri dizem que passam por ela sem nenhum problema e que nunca viram ou ouviram nada fora do comum, e com isso me pergunto o que aquilo teria visto em mim, já que não é possível que tenha sido um delírio.

Fico mais tempo dentro da cabine do que no convés, tentando esquecê-la. Não canto, nem recito mais meus poemas em voz alta, tomando muito cuidado com o que ouço e, principalmente, com o que pode me ouvir, evitando as conseqüências imprevisíveis disso, mas ela continua comigo, segui-me onde quer que eu vá, como um peso na consciência. Não tenho certeza do quanto é ruim, do quanto poderei conviver com isso, mas nunca mais fui o mesmo e com a canção em meu encalço impregnada a mim feito uma sombra, não fiquei mais sozinho.

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Tema: Música.

Jorge Aguiar
Enviado por Jorge Aguiar em 06/04/2015
Reeditado em 08/04/2015
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