A Necromante

A sala de espera era simples: um cômodo de dois metros quadrados, com cortina de bambu no lugar da porta; nas paredes de madeira, decoração variada do tipo artesanal feita com palha seca. Para sentar, um velho sofá-cama vermelho, com o tecido do assento quase sem cor, encostado na parede, à direita de quem entra.

- Passa, moça.

A mulher segurava uma cesta de vime com uma trouxa de panos sujos dentro. Assim que chamada, levantou-se, forcejando com o objeto enganchado no braço.

- Pode entrar com isso daí não, dona. Deixa ali, no sofá, que eu cuido pra senhora.

Um pouco desconfiada, acatou.

No “consultório”, ainda menor que a sala de espera, e separado desta por uma porta de plástico improvisada, esperava Mãe Dadá. Não era exatamente uma mãe-de-santo; suas técnicas eram controversas. Ao que se sabia, tinha vasto conhecimento de vudu, algum de candomblé e muitos outros de origem duvidosa, talvez druídicos, celtas e semelhantes. Dizem os mais antigos que a velha bruxa podia falar com os animais, ler pensamentos e mergulhar no rio por mais de hora, sem precisar emergir à superfície.

- Entra, filha. Senta. Vai querer as cartas? Runas? Búzios?

- Não. Eu vim lhe procurar por conta de outro tipo de serviço.

Mãe Dadá suou na testa. Já sabia do que se tratava.

- Já tem tempo que eu não faço mais, filha.

- Mas eu pago, pago bem. Se for verdade que...

- A verdade nem sempre é boa. Paga bem quanto?

- Pago um milhão.

- Já me pediram por mais.

- Ora, pago dois!

- E que garantia eu vou ter de que vai pagar? A moça é desconfiada; não vai querer pagar adiantado, e depois de estar feito, está.

- A senhora não precisa ter preocupações. Sou uma mulher rica, e não seria estúpida de não lhe pagar. Afinal, se a senhora pode fazer isso...

- Entendi, entendi. Não carece de nenhum oráculo pra ver que a moça é rica. Preciso de analisar o caso. Não garanto nada. Traz aqui.

E lá foi a jovem buscar a cesta de vime.

- Com licença. Vim pegar. Mãe Dadá mandou eu pegar.

A “atendente” franziu a testa. Entregou à cliente seu pertence, que voltou para a sala de consulta.

- Aqui.

Tirou a trouxa de panos sujos de dentro da cesta e começou a desenrolar. Mãe Dadá já sabia do que se tratava. Antes que a mulher terminasse, perguntou:

- Quanto tempo viveu? Tem quantos dias que morreu?

- Viveu menos de um dia. Morreu há dois dias.

Dizendo isso, expôs o conteúdo do embrulho na trouxa de panos sujos. Era um recém-nascido, morto.

- Hum... Mas a moça não é mãe dele. Filha, de quem é a criança?

- É de minha irmã mais nova. A coitada está em choque; não sabe que eu trouxe o corpo aqui. Nós só vimos que estava morto ontem... Ela pensa que estou providenciando o velório com a funerária; como se acha muito mal do parto, preferiu não presenciar.

- Olha, filha... Eu sei que pode dar mais que dois. Dois e meio e eu faço.

- Eu dou um jeito.

- É bom que dê, viu, filha. Vai me custar dois dias de vida, e eu já não tô lá muito nova...

Muitos eram os boatos a respeito da idade de Mãe Dadá. Madalena foi morar na casa retirada da mata quando ainda era muito jovem, coisa de vinte anos. Dizem que a aparência dela deteriorou-se rápido; em pouco menos de cinco anos, já aparentava ter uns cinquenta e poucos; agora, sessenta e poucos, oito anos depois de ter chegado nos arredores.

- Jandira, acomoda aqui a moça. Serve café e uns bolinhos daqueles, que hoje a noite vai ser comprida. Fecha a casa, não atende mais ninguém hoje.

Jandira, a ajudante, jovem de tez muito negra e olhos expressivos, observava mais do que falava; pouco abria a boca, sempre ocupada com um cigarro.

Mãe Dadá enrolou o pequeno defunto novamente e o deitou num canto da sala. Depois, pegou um saco de estopa e foi mata adentro.

- Vou buscar umas coisas na mata. Antes do sol se por, tô de volta. Assim que a noite entrar, a gente começa. Ninguém toca na criança.

Demorou-se coisa de duas horas. Quando o sol já era quase posto, voltou, com o saco de estopa cheio de plantas como cipó, galhos secos e ervas, e mais um pote de lama.

- Ajuda cá, Jandira. Vamo, leva lá pra dentro. Agora eu vou ali no rio atrás da casa, me lavar. Vou ficar por ali até que anoiteça.

O sol enfim se pôs; a velha reapareceu com os pés descalços e molhados.

- Vamo, tá na hora. Fecha a porta, Jandira. A moça, tira também os calçados. Tira tudo que for de metal. Tira esse brinco aí do umbigo também.

"Eu estou de casaco" pensou a moça. "Como ela sabe...?".

Jandira já estava descalça e sem adornos. Mãe Dadá fez um gesto, indicando passagem da sala de espera para a sala de consulta. Entraram todas.

- Acende a lamparina - ordenou à ajudante.

Mergulhou um pedaço de madeira seca que tirou do saco no pote de lama, e com ele riscou no chão da sala alguns símbolos, cheios de enlaces e pontas, fazendo ao redor do desenho um círculo. Depois, tirou de dentro de um pequeno armário uma caixa de metal; da caixa, tirou um athame, um pedaço de barbante cru, uma caixa de fósforos e duas velas, uma preta e outra branca.

Pegou no colo a criança e a depositou no centro do círculo, nua. Fez uma espécie de coroa com as plantas que recolheu na mata ao redor do pequenino. Tocando- o com os olhos fechados, concluiu: "É. Morreu afogado no vômito". Deu de mãos no athame.

- Filha, vem aqui. Estica o braço.

- A senhora vai me cortar?!

Mãe Dadá fez cara de brava; levou as mãos à cintura. A moça então estendeu-lhe o braço direito.

- Esse não, filha. O outro.

- Ai!

Jandira, com um pequeno recipiente redondo de madeira, aparava o sangue que caía. Depois, entregou à feiticeira.

Mãe Dadá despejou o sangue na boca do menino. Depois, amarrou uma ponta do barbante no próprio tornozelo direito, e a outra ponta no pulso esquerdo da criança; enfiou, com alguma dificuldade, a vela branca por entre os dedinhos do bebê, pois o corpo já estava rijo e roxo-esverdeado. Segurou ela a preta e ficou em pé. Jandira riscou um fósforo e acendeu ambas.

- Muito bem. Filha, não pode sair da sala. Paga pra ela (Jandira), porque eu vou estar fora nos dois dias que vem. Jandira, quando ele voltar, já sabe o que fazer.

Dizendo isso, ficou em pé e entoou um canto ritualístico esquisito. Depois, ficou em silêncio alguns segundos e caiu inconsciente.

- Mas o que...

- Shhhhhhh!

Ouviu-se um choro. Era de criança. Imediatamente, Jandira apagou as velas e as atirou longe; com o athame, cortou pelo meio o barbante que ligava a velha ao bebê e, erguendo-o do chão, entregou-lhe à tia, vivo e bem corado.

A jovem não conteve a emoção e o espanto. Chorava junto com o sobrinho, enrolando-o naqueles panos sujos novamente. Enquanto isso, Jandira posicionou o corpo de Mãe Dadá o mais próximo do meio do círculo possível, e cobriu com um pano branco.

- É dois e meio, dona. Pra amanhã cedo.

- Claro, amanhã bem cedo eu venho! Não sei como agradecer! É maravilhoso.

- É batizado?

- Como?!

- O menino, dona. É batizado?

- Ainda não, não deu tempo.

- Então, não pode mais batizar. Passa longe de água benta. Tem que esconder do sol amanhã, põe um pano grosso nos olhos, não pode ver luz do dia por sete dias. Bota oito, pra não ter perigo.

A moça não questionou nada. Calçou os sapatos e foi embora, o carro estava estacionado ali perto.

No dia seguinte, bateu à porta da casa na mata, com uma maleta de couro nas mãos. Jandira atendeu.

- Aqui! Dois milhões e meio, como combinado! Pode contar.

- Carece de contar não, moça.

- E Mãe Dadá, está bem?

- Vai ficar. Preocupa com a criança só. Vai s'imbora e nunca mais volta aqui.

- Mais uma vez, muito obrigada! Minha irmã mal cabe em si de felicidade. Disse a ela que os médicos haviam se enganado, e que...

- A dona tem que ir agora.

E a moça foi.

Dois anos haviam se passado e aquela sala de espera não havia mudado quase nada.

- Jandira? É Jandira, né? Eu preciso falar com Mãe Dadá.

- Hoje ela não pode.

- Mas é urgente. Eu vim aqui há dois anos atrás, com um bebê...

- A senhora! Eu disse pra madame que não podia voltar!

- Deixa, Jandira.

Era Mãe Dadá, saindo de dentro da sala de consultas. Agora, parecia ter setenta anos.

- Filha, não é pra vir aqui mais.

- Mas eu estou desesperada. As coisas saíram do controle. Até um incêndio aconteceu lá em casa, queimou tudo! Menos o quarto do Henrique... Graças a Deus.

- Aí já nãe é comigo. Eu lhe disse quando veio aqui que a verdade nem sempre é boa. Queria a criança viva, eu lhe dei a criança viva. Dali pra frente, a dona estava por conta. Vai embora ou vou ter que pôr a senhora pra fora.

E a moça foi, chorando, desconcertada.

- Mãe, já é tempo da senhora me ensinar...

- Não, Jandira. Nem todo o dom presta. Este, morre comigo. Olha essa pobre moça, coitada. E a gente depois não pode ajudar mais. Sabe, da última vez, aqueles dois dias que andei no inferno, vi que lá vai ser meu lugar quando eu morrer...

- Credo, mãe. Fala assim não!

- É verdade. Quanta coisa ruim eu fiz, quanta alma tirei de lá pra botar em defunto... Mas tá bem. Eu já sabia. Fiz muita coisa boa também. Deixo uma filha rica, longe de tudo isso. Jandira, escuta bem. Quando eu morrer, quero que pegue tudo e vá pra outros lados, bem longe daqui. Taca fogo na casinha e me enterra aqui na mata.

- Mas, mãe...

- É assim que eu quero, não discute comigo.

Cinco anos depois, a casa da mata foi incendiada; Mãe Dadá morreu de ataque cardíaco e ninguém sabia onde a filha tinha a enterrado. Da Jandira, aliás, também ninguém sabia. No lugar onde antes havia a casa, a terra ficou diferente. Nasceu por ali variada vegetação, já que ficava pertinho do rio. Dentre as flores selvagens que nasceram, uma chamava a atenção; era quase negra de tão escura e só abria à noite, exalando um inconfundível perfume. O pessoal que ia pescar ou caçar na mata gostava muito daquela flor, e como a desconheciam, lhe puseram um nome. Madalena.

____________________________________________________Morituri

Femina Morituri
Enviado por Femina Morituri em 24/03/2015
Reeditado em 01/04/2015
Código do texto: T5181431
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